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Adeus a Ursulino Leão

Extasiado, ao final da leitura de “Confiteor[i]”, de Ursulino Leão (1924-2018) pergunto-me: como transmitir esta emoção ao leitor da “Destarte”? À leitura deveria suceder um momento de reflexão mais profunda para que o cronista pudesse, então, trazer aos leitores desta coluna uma luz ainda que suave do clarão que exala dessas páginas, mas não... [caption id="attachment_152241" align="alignright" width="300"] A fazenda São João - palco em que a maior parte das memórias foi composta...[/caption] Rompo meu voto de sempre fazer uma reflexão posterior à leitura. Hoje deixo a emoção falar mais alto, quando o normal é a razão pontear as crônicas e ensaios sobre minhas leituras. Eis a resenha impossível de um livro memorável. É muito bom saber-me acólito e contemporâneo deste ser humano admirável que foi (que é!) Ursulino Tavares Leão. Lembro-me de uma página de Albert Béguin ao falar do “peregrino do Absoluto” (Léon Bloy) que afirma que sua vocação não era literária – era ser santo. Sobre o Ursulino dessas confissões finais cabe advertir ao leitor que, embora tenha obtido êxito em duas outras carreiras (a de advogado e de político), a vocação dele era a literatura. Literatura que, a exemplo de Bloy, Ursulino praticou sempre e até este final exuberante, com “o sentido, a necessidade e o instinto do Absoluto”. Confiteor é livro de um homem no pleno domínio de suas habilidades, no exercício da virtude da prudência, um crente que se permite ceticismo diante do mundo e das escolhas que não o façam sempre e antes e conscientemente um servo do Deus Vivo. É um que pode sempre dizer ao final: “Laus tibi Deo”. “Todo o Louvor a Deus” – sim, esta pode ser a fórmula da vida do escritor e conservador católico goiano Ursulino Tavares Leão. O dom que nos é dado pelo Criador, às vezes, demora a ser revelado. Insistimos, como Ursulino insistiu com as petições e os habeas-corpus. A Academia Goiana de Letras (AGL), onde o Autor manteve longa convivência, “transformou em paixão o dom de escrever que o Senhor me concedeu” – confessa em Confiteor, XII, pág. 47. Porque não escolhemos nossos temas, relembra-nos Ursulino, e sim por ele somos escolhidos. A frase completa é citada de leitura feita nos escritos de Mario Vargas Llosa: “o escritor não escolhe seus temas, é escolhido por eles” – afirma Ursulino na p. 46. O tema que me escolheu neste livro foi o da “busca do Sagrado” em Ursulino. Ele é tão evidente, que o leitor atento poderá ir garimpando nos algarismos romanos dos capítulos, como se fosse um catecismo. Procure, dileto leitor, no sábio que escreve este livro, verdades sob a legenda do jurista romano Eneu Domício Ulpiano (Séc. II d.C.): “na verdade, sou apenas um homem que desde a infância tem procurado cumprir as incumbências naturais de todo ser humano: viver com honestidade, não causar dano a ninguém, dar ao dono o que é seu” (pág. 22). O leitor encontrará muitas, como esta: “O irmão que eu não tive” – o irmão nosso e do aprendiz de fazendeiro de Crixás é o que ele reconhece como “o Cristo, Filho de Deus, concebido pelo poder do Espírito Santo, nascido da Virgem Maria, como meu irmão” (pág. 24). [caption id="attachment_152242" align="alignleft" width="300"]Ursulino na Fazenda São João, 94 anos de acúmulo de sabedoria Fazenda São João, um dos cenários em que "Confiteor" foi gerado (c) 2018. Contato Comunicação.[/caption] O homem que, como Cícero em seu “De senectude” (no ano 43 a.C.), exalta a chegada da velhice e procura aceita-la, há de reconhecer em Ursulino um clássico do sertão. “Acaso os adolescentes deveriam lamentar a infância e depois, tendo amadurecido, chorar a adolescência? A vida segue um curso muito preciso e a natureza dota cada idade de qualidades próprias. Por isso a fraqueza das crianças, o ímpeto dos jovens, a seriedade dos adultos, a maturidade da velhice são coisas naturais que devemos apreciar cada uma em seu tempo.” (Cícero, em "A arte de envelhecer", 43 a.C.) É muito parecido ao que Ursulino diz sobre a sequência das fases de nossa vida: a infância, a meninice, a adolescência, a maturidade, a velhice – a senectude, de onde com o exercício diário do Autor chegamos a crer que “viver é transfigurar-se” (pág. 117). E quem afirma essa verdade é o autor que admite que “Deus é o timoneiro” da sua (dele) vida – e o deveria ser sempre da nossa: “Bem antes de chegar à velhice (aos trancos e barrancos), senti grande alívio quando fiquei convicto de que Deus é somente amor. Desde então, não o divorcio da minha vida. “Tenho-o nos meus sentimentos, no que imagino, no que realizo, no que recebo, das lágrimas que padeço e, principalmente, nas esperanças que deposito em minha intemporalidade. “Espírito perfeitíssimo, suprema inteligência, infinita misericórdia, bondade sem fim, justiça absoluta, onisciente e onipresente, sem princípio e sem fim, uno e trino, Deus é tudo. “E está em tudo.” É assim que Ursulino Leão, o para sempre “Leãozinho” para seu pai Seu Thomaz, fazendeiro e comerciante, dono da “Casa Maranhense” e para sua mãe Dona Luizinha, sua irmã Nazareth (Zaré) e todos os seus descendentes também poderiam declarar “Alvíssaras”, como ele assim professou aos 94 anos de uma vida exemplar – e nenhum poeta autêntico haveria de contestar:

“Sou quase um nada da criatura que fui pra viver me bastam do pão uma côdea e um pouco de vinho. Tateio na dúvida busco a verdade enxergo o mundo envolto em sombras perdida beleza. O perfume tênue da manhã e da flor um verso esquecido do ruído e das palavras somente ouço o fundo musical que os precede. Desventuras curvaram-me o dorso minhas pernas se escoram numa bengala mas não cedo minhas esperanças aos desenganos. Contudo outro dia minha velhice (marujo atento na gávea da nau) em distante curva descobriu os signos e me preveniu: Alvíssaras meu timoneiro! Avistei a travessia para os mares imensos permanentemente azuis infinitamente lindos em que Deus reside!”
Os “signos indecifráveis” do outono da vida deste profícuo escritor goiano (e universal) – Ursulino Leão – estão postos neste “canto-de-cisne”. Leiam-no. Encantem-se com a sabedoria da mocidade deste nonagenário que tem em seu conservadorismo, em sua elegância de viver e de amar ao próximo, de respeitar sua família e suas tradições – uma lição inolvidável para o século XXI. E para os que nas confissões procuram a fofoca, a declaração inusitada e o fato político, lamento decepcioná-los. Talvez a fraternidade com Pedro Nava, transcrevendo o famoso bordão “eu não tenho ódio; eu tenho memória” (pág. 113) que fala de uma pequena mágoa. E a sua paixão por Lena, a amada de toda a vida de Ursulino, coisa que não é novidade para nenhum iniciado nas artes de envelhecer do Leãozinho (ou do Urbano). Transcrevo abaixo um emocionado réquiem para o "Leãozinho", escrito por seu amigo e confrade na AGL, Iuri Godinho, mas que eu endossaria com orgulho.
“RÉQUIEM PARA URSULINO LEÃO” – Por Iuri Godinho, publicado no Facebook do Acadêmico, em 20/OUT/2018. Ontem pela manhã recebi um telefonema terrível. Paulo Leão, filho do meu confrade da Academia Goiana de Letras, meu amigo, meu confidente, conselheiro Ursulino Tavares Leão vivia suas últimas horas. Uma semana atrás foi internado com problema nada grave nos pulmões. Na quarta-feira teve duas paradas cardíacas em casa e foi para UTI, entubado, de onde não mais saiu. Chorei, chorei, chorei. Nos últimos cinco anos fui o editor de Ursulino. Publiquei suas obras derradeiras. Bebi uísque com ele e bebi dele sua inteligência luminosa de respostas rápidas e deliciosas. Conversar com Ursulino foi musculação pro meu cérebro. Ele ligava, eu ia: "Chegue 4 da tarde porque durmo depois do almoço". Sempre disse a ele que não conseguia acompanhá-lo na bebida. Ele começava com duas taças de vinhos, passava pro uísque. Ria franco, aberto, os olhinhos acesos. Jamais se embriagava. Eu me divertia com a sua birra em não beber em copo de plástico, coisa com a qual nunca me importei. Sabia tudo de Goiás. Viúvo, continuava apaixonado por sua Lena. Católico, dele publiquei um livro com sua visão de Jesus Cristo. Foi vice-governador e aos 94 anos falava de tudo como uma adolescente: "Vou votar nessa bosta do Meireles, mas porque ele é goiano. Depois é que vai valer e vou dar chicotada com Bolsonaro", brincava. Ele não votará no Bolsonaro. Ursulino, como meu amigo, meu confidente, esperou que eu lançasse meu livro na noite dessa sexta-feira, 19 de outubro de 2018, para não me atrapalhar. Como me disse seu filho Paulo, deveria ter ido ontem, mas me esperou acabar de lançar o livro e se foi agora há pouco. Há um mês ele me chamou em seu apartamento no Setor Oeste. Tinha finalmente colocado um ponto final em suas memórias, que eu insistia para que publicasse até ele me chamar de chato. Ficava me enrolando. Ria quando eu cobrava o livro. Naquele dia em seu apartamento disse que estava deprimido, que sabia quando ia morrer, que o momento se avizinhava. Falei para ele parar de bobagem, nunca o havia visto daquele jeito. Tanto repeti que ele, para se ver livre de mim e com um olhar triste — que nunca foi o seu — pediu que eu não me importasse, que aquilo era coisa de velho. Queria, mais uma vez, se ver livre de mim. Quando seu filho Paulo me ligou ontem chorando, pediu para que eu publicasse o último livro de seu pai. Como se isso fosse necessário. O que Paulo não sabia era que naquela última conversa o Ursulino me disse tudo: como queria a capa, a contracapa, o papel do livro: "Vai ser meu último livro, capriche". Queria que eu publicasse a foto de uma árvore velha, encarquilhada, que ficava em sua fazenda. "Ela é como eu". Eu ria: "larga de ser besta". Estou morrendo de saudades do Ursulino. Uma saudade de filho, uma saudade desgraçada. Um misto de agradecido por ter tido a honra de conviver e trabalharmos juntos. Uma raiva porque nunca mais vamos beber uísque e porque eu queria ter nascido uns 50 anos antes para ter aproveitado mais do meu amigo, meu confidente.
Adalberto de Queiroz, 63, Jornalista e poeta, autor de “O rio incontornável” (poemas, Editora Mondrongo, Itabuna-BA, 2017). [i] LEÃO, Ursulino. “Confiteor”. Goiânia, Contato Comunicação, 2018. 244 p. Prefácio de Ângela Jugmann. Autobiografia.

Ursulino Leão: no cronista virtuoso, um homem em busca do Sagrado

Um dos escritores mais editados em Goiás nos últimos três anos, em quantidade e qualidade, é um nonagenário excepcional. Às vésperas de completar 93 anos, Ursulino Leão, mostra vitalidade e energia para lançar livros em sequência. [caption id="attachment_104719" align="aligncenter" width="620"] Escritores Ursulino Leão e Adalberto de Queiroz[/caption] Quando decidi escrever sobre Ursulino, procurei ficar circunscrito à carreira do escritor, do homem que tem uma obra e uma fortuna crítica que, se não ficou no limbo do silêncio nos primeiros anos, tampouco o merece nesta quadra da vida do nonagenário escritor. Portanto, aqui não me interessa focar a carreira exitosa e plena de virtudes do político e do jurista Ursulino Leão. O católico escritor, poeta e cronista é um homem de muitas virtudes e, na arte da escrita, mostrou a alta potência de quem produz em quantidade e qualidade. Este homem que exerceu diversos ofícios com grande maestria revelou, numa entrevista ao escritor Miguel Jorge, seu método de buscar a palavra vagarosamente, “como as trevas buscam a claridade, e a fome busca o alimento”. Inspirado em outro católico escritor de renome (o inglês Graham Greene), conclui ser o ato de escrever “uma forma de terapia”. Sabe-se como próprio da província fazer descer sobre as obras literárias um manto de silêncio, mas há também um nível de silêncio imposto que causa desconforto, constrangimento, quando sabemos que este se instaura por conta de uma atitude premeditada. Um pacto de silêncio é estabelecido em torno de um escritor ou de toda uma obra por razões as mais diversas, entre as quais a divergência ideológica entre analista e produtor da obra de arte. Ainda hoje cultivam-se, na província, os péssimos hábitos de estabelecer-se um rumor surdo (fofoca) que precede ao silêncio, prática daquilo que Unamuno aconselhou o escritor sério a distanciar-se: as “corjas literárias”. Melhor seria que as divergências saíssem da obscuridade em debate pacífico e se garantisse aos jovens escritores o direito de expressão – e, entre esses, o mais sagrado direito de produção literária – que pode ser considerado como verdadeiro sacerdócio, embora para alguns não passe de exibicionismo ou forma de diferenciação – principalmente em Goiás, onde os leitores são escassos e as tiragens de livros diminutas. Sobre essa espécie de pacto de silêncio em torno de um escritor,  Fabrício Tavares de Moraes, crítico, tradutor e doutor em Literatura diz que “há motivações ideológicas, sim, e não menos uma boa dose de inveja. Tomo sempre o exemplo de Knut Hamsun, que no início simpatizou com o nazismo. Sua obra é sensacional, e recebeu o Nobel. Há o caso de Cornélio Penna, um Faulkner brasileiro, foi esquecido. E lá em Portugal é celebrado; além de outro exemplo, Céline – [por causa] também de sua simpatia pelo nazismo, mas o curioso é que Heidegger e Paul de Man foram nazistas ou simpáticos e ainda hoje são exaltados e justificados. ” Em “Esquecidos & Superestimados” o professor e crítico Rodrigo Gurgel, dando continuação ao que fizera em “Muita retórica – pouca literatura (de Alencar a Graça Aranha) ” elenca “autores esquecidos, sobranceados pelos que, injustamente, se tornaram famosos. Traídos pelas convenções estéticas, pelas panelinhas que controlam os cadernos culturais e pelos críticos obedientes a modismos, esses menosprezados cumprem, no entanto, digno papel: o de aguilhoar o establishment e comprovar que, andando na contramão, também é possível produzir boa literatura. Silentes, preenchendo as prateleiras dos sebos ou o canto úmido das bibliotecas, tais obras sussurram aos novos escritores: “Não receiem tomar emprestados meus acertos e melhores lições”. Deixemos claro que, de um modo mais amplo, Ursulino Leão não poderia (nem deverá!) ser listado nesse rol de escritores esquecidos, depreciados ou abandonados às estantes – por aqueles poucos que, em Goiás, adquirem livros e os leem. Meu ponto é que um escritor dessa grandeza merece recepção mais efusiva à sua obra do que os eflúvios dos coquetéis de lançamento; pois, é no mínimo desagradável que, livro após livro, tenha o escritor como retorno à sua produção só o silêncio por parte da massa de leitores, sem nenhuma avaliação crítica ou de resenhas literárias. A causa desse silêncio constrangedor sobre os escritores de nossa terra está mais para o pecado capital da inveja, nutrido pelo abafado ar provinciano de pouca oxigenação cultural de nossos meios literários. Ocorre que o mau hábito de silenciar-nos sobre a obra do Outro – o que testemunha negativamente a respeito da languidez do pensar a criação literária –, surge em Goiás, misturado a uma boa dose de cálculo maléfico, na espera de que diante do silêncio, o candidato a escritor (ou o repetente) não tome jamais as já minguadas vagas no “status quo” de Escritor e tampouco vagas no coração dos leitores – estes, sim, cada vez mais faltosos. Convenhamos que a fortuna crítica sobre a obra de Ursulino Leão não autoriza este (ou outro) crítico a dizer que sobre ele e sua obra tenhamos feito descer o velho capote do silêncio maldoso e calculista; nada me autoriza a pensar que há silêncio velado, porém, tudo ainda é pouco se dito sobre o que fez e a qualidade do que foi feito, em vista da estatura do escritor aqui focado. Em consequência deste hábito, podem ser contados muitos outros criadores sobre os quais o silêncio é ainda mais constrangedor. No âmbito da poesia, por exemplo, constrange o silêncio que paira sobre a representativa (em quantidade e qualidade) criação de vários poetas, entre os quais os mais gritantes casos são  os de Valdivino Braz, de Sônia Maria dos Santos e de Darcy França Denófrio, esta que, contrariamente a esse movimento denunciado, fez sempre o bom uso da crítica para divulgar a obra dos escritores goianos e, em especial, do amigo emigrado para o Rio de Janeiro, o professor Gilberto Mendonça Teles, entre outros estudos da maior importância para o conhecimento da nossa literatura entre os mais jovens. Fora da Academia, há pouco ou quase nada – no terreno crítico e de divulgação literária sobre Alaor Barbosa, José Décio Filho, Dilermando Vieira, sobre outro goiano (emigrado) Flávio Carneiro, Maria Lúcia Félix Bufáiçal e tantos outros de qualidade literária superior, mas que não se postam como superioridades engalanadas no desarranjado cenário da literatura produzida em Goiás. No arco de uma vida produtiva como a de Ursulino Leão, que de romancista (“Maya”, 1949) aos derradeiros livros de crônica e poesia – sobre os quais a imprensa apenas cumpriu (e mal) o papel de divulgar os eventos festivos de lançamento, nada mais se leu. Nenhuma crítica, nenhuma palavra – a mais faltosa sendo, principalmente a de reconhecido agradecimento a um cronista diário que brindou os leitores de O Popular por mais de 40 anos. Exceção Em 2010, a Academia Goiana de Letras (AGL), sob a presidência do médico-escritor Hélio Moreira, lançou uma nova edição crítica de “Maya”, organizada por Licínio Barbosa e Antonio José de Moura, com prefácio crítico de José Fernandes e posfácio da professora Moema de Castro e Silva Olival e diversos depoimentos dos pares de Ursulino na Academia. Embora padeça de falhas de produção, gralhas e erros de edição, o livro é um diamante para o cérebro dos jovens leitores da província que, somente com muita pesquisa e esforços, poderiam ter acesso à edição de “Maya”, feita pela Pongetti (1949) ou a 2ª. Edição de 1975 (feita pela Editora Oriente). Reli o romance com a visão da maturidade, tendo subido ainda mais admiração ao católico romancista do que quando o li, eu, ainda jovem em Anápolis. O estudo da professora Moema nos faz entender que, tendo o jovem Ursulino tomando a senda mais difícil de expressão literária, a trama romanesca realiza-se na pena do estreante porque optou “pela visão de sondagem psicológica, de maior densidade, como Lúcio Cardoso, Cornélio Penna, Octavio de Faria, Cyro dos Anjos” – que é uma espécie do gênero romanesco mais propenso à “busca de conhecimento interior”. Num dado momento da carreira literária, já com a fama rondando a sua porta de cronista do dia-a-dia, em que angariou boa parte de seus leitores assíduos como este que gera linhas em louvor à pessoa humana e ao escritor nonagenário, Ursulino declara que o romance não deveria ser reescrito, mesmo sendo “livro de jovem, elaborado de um jato nas horas que antecediam o jantar...”, pois, para o escritor maduro qualquer interferência seria retirar do livro “o melhor dele: seu sabor de fruto de vez. Doce e acre como os dias que lhe dediquei. Doce e acre era também a minha alma naqueles tempos. Agora, que os tempos mudaram, como estaria ela”. Não tendo o dom de prospecção das almas, hoje cada vez mais raro, busco na releitura de “Maya” e na leitura de “Idílio na serra da da figura”, de “GYN: seleta de crônicas” e, principalmente, do sublime “Lírios do campo para Jesus de Nazaré” a expressão sempre elegante, a capacidade de ler nas dobras da convivência social, a expressão primeira de quem a gera – o ser Humano. Ursulino é antes e, principalmente, o cronista do humano e do sagrado, verticalizando o que há de sonho possível no mortal que lhe passa à frente como material de ficção. Na seleta de crônicas que leva o acrônimo de nossa cidade, na linguagem aeroportuária, há uma pequena obra-prima intitulada “Um burrico e meu (80º.) aniversário”, começa assim: “Dia 10 de setembro de 2004, eu estava andando na fazenda São João. A manhã tentou felicitar-me pelo transcurso dos meus 80 anos de idade. Mas não conseguiu oferecer-me senão a outra face daquela data: havia um mês que os bulcões da morte nos tinham arrebatado a Lena (os horizontes de minha velhice, desde então, possuem cores esmaecidas). “Com o espírito anuviado por tais contrastes, em vez de enveredar-me pela estrada de rodagem em que costumo realizar minhas caminhadas, pegara um esquecido trieiro de gado. “De repente ouvi os passos de equino em minha retaguarda. Supondo fosse a cavalgadura de um desconhecido, que me ultrapassaria no primeiro cotovelo que aparecesse no trajeto, não virei o rosto para ver o sujeito, nem me arredei da trilha para lhe dar passagem. “A curva surgiu e a situação não mudou. Então, bastante intrigado, volvi a cabeça para encarar paciencioso cavaleiro... “Era um burrinho, sem ninguém em cima dele. Queimado, com uma malha branca na testa, pernas rajadas e ares bíblicos. Tive a impressão de que já o conhecia...”                 “Seria um clone do jumentinho que o Cristo montava quando recebeu hosanas de ramos verdes nas ruas de Jerusalém? ...                    “Deixei a senda e parei. O bonito animal parou também, me fitou com seus grandes olhos e abanou as orelhas...                 “– Vamos, siga... “Ele não se moveu. “– Bem, se lhe apraz minha triste companhia marchemos... “Daí a pouco, enquanto procurava encontrar uma nesga de satisfação na caligem dos meus pesares, senti o quente bafejo do jovem muar em minhas costas. Certo de que meu simpático companheiro desejava estreitar nossas relações, escorei-me ao tronco de uma dadivosa árvore. Ele, me imitando, estacou: E assim prossegue a conversa com o burrico, até nos dar confessar o autor que o humilde animal lhe recuperara à memória vivências com a sua amada perdida (Lena) que lhe presenteara quatro décadas antes com um livrinho intitulado “Platero e Eu” (Juan Ramón Jimenez, Nobel de Literatura de 1956), e no qual apusera uma dedicatória afirmando que “gostara do Platero” – Platero, o burrico espanhol tem o dom de trazer das memórias fundas do octogenário de então, a mais doce lembrança do amor perdido. Ao final, Ursulino apõe ao dorso do animal o troféu da lembrança, destacando o burrico entre os animais das criações literárias – como a baleia de Melville, em Moby Dick, o peixe de Hemingway, em “O velho e o mar” e a cachorra Baleia do velho Graça em “Vidas secas”. Em 2016, em viagem de férias, ao fazer o giro pelas livrarias de São Petersburgo, tive a chance de encontrar o livrinho de Jimenez (Platero y yo) em edição bilingue (espanhol-russo) numa grande livraria às margens do famoso rio Neva, e, tocado pela sensibilidade de nosso cronista, o adquiri como quem acha uma relíquia e, assim o mantenho como troféu à admiração que tenho pelo cronista Ursulino. E mais: ainda arvorei-me em dar minha versão poética ao burrico, poema que dediquei ao cronista imortal de nossa terra. É ainda no reino animal de onde retira o Ursulino-contista material para uma outra pequena joia intitulada “Idílio na serra da figura”, que recomendo com entusiasmo. Espero que a história cause no leitor o encantamento que me causou o caso de Sereia e Tigre. Do enleio entre os animais, devem brotar na imaginação dos leitores sensíveis os sons da lamentação triste da perda – que parece humana, feito “pios de saudade profunda, como o canto da jaó chamando o parceiro, como o clamor de uma alma que acaba de receber a estocada de uma notícia cruel” – qualquer que seja desde que transcritos pela pena de um ser humano sensível e dono de estilo único entre os goianos escritores. Dos “Lírios do campo para Jesus de Nazaré”, resta-me no curto espaço desta crônica dizer-lhes: colham todos, pois que o livro é inteiro superior e diz respeito ao Sagrado no humano um livro que, nas palavras do próprio Ursulino, é “singela metáfora daquela braçada de lírios do campo que ofertei a Jesus de Nazaré, na álacre manhã da Fazenda São João em que decidi escrevê-lo”. São flores que fazem um bem enorme ao leitor, principalmente se o leitor é um fiel católico, porque “não são páginas produzidas na estufa do conhecimento” – afirma Ursulino; onde “não buscaram o adubo da beleza literária, mas receberam o sol do meu afeto, floresceram sob o efeito de chuvas da espontaneidade. Derivaram da humildade de minha velhice, como as flores silvestres vingam na aridez dos campos”. Os “Lírios...” tornaram-se aquela obra que animou o escritor já idoso a viajar a Jerusalém, malgrado os transtornos dos deslocamentos intercontinentais na sua idade, mas ao fazê-lo, ao fim e ao cabo da empreitada, arremata com um Deo gratias, declarando como o salmista: “Se porventura eu vier me esquecer de ti, Jerusalém, fique seca a mão com que toco a minha harpa. ” Ave, Ursulino! que Deus preserve sua mão e sua lira, que suas virtudes pessoais e literárias sejam para a glória do Criador – é o que lhe deseja este cronista. Feliz aniversário, dr. Ursulino!