Como o extremismo destruiu uma polarização que poderia ser saudável

21 janeiro 2024 às 00h33

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Dizem cientistas políticos renomados e estudiosos da área que toda democracia só pode ser considerada amadurecida quando se torna bipartidária. Ou seja, a multiplicidade de partidos se reduz e aparecem duas forças antagônicas que vão atrair os cidadãos e suprir a indefectível sopa de letrinhas do cardápio eleitoral. Como a que ainda há hoje no Brasil, mas que já foi maior: recentemente, o Brasil chegou a ter quase 40 partidos e hoje há menos de 30, alguns deles reunidos em federações – como o PSDB e o Cidadania em uma; o PT, o PCdoB e o PV em outra; o PSOL e a Rede Sustentabilidade em uma terceira. Outros se juntaram – a última das fusões foi entre o efêmero Patriota e o histórico/decadente PTB, que se tornaram o PRD, sigla para Partido Renovação Democrática.
Se até o início da década passada a discussão dos termos “direita” e “esquerda” no Brasil se concentrava basicamente no mundo da política, no estudo das ciências humanas nas universidades, nas editorias de política e em bate-papos às vésperas de eleições, o cenário mudou completamente nos últimos anos. As redes sociais popularizaram – e também simplificaram – os conceitos, que passaram a ser usados não como referência ao oponente ideológico, mas como uma forma de insulto.
Com as novas tecnologias de comunicação trazidas com o advento das big techs e dos aplicativos de conversação, os brasileiros se polarizaram de tal forma que não há absolutamente nenhum assunto discutido no Instagram, no Facebook ou no X/Twitter que não possa esteja passível se tornar uma provocação ao adversário ideológico.
Um exemplo colhido quase instantaneamente agora, ao redigir este texto, por este colunista: no Instagram, um vídeo resgatado de uma entrevista de Jô Soares com os Mamonas Assassinas – banda cujos cinco integrantes morreram em um trágico acidente aéreo em 1996, no auge do sucesso – mostra todo o quinteto fantasiado de Chapolin Colorado, com o vocalista Dinho cantando e interpretando Robocop Gay, uma canção pop sobre orientação sexual em estilo besteirol, no programa Jô Soares Onze e Meia e tendo o guitarrista Bento Hinoto ao violão.
Dois dos comentários ao vídeo que mais foram replicados: “Hoje eles seriam cancelados pelos conservadores”, disse um perfil; “Se fosse hoje, PSOL, PT já teriam pedido censura do grupo pro kojac [sic] por homofobia etc.”, replicou outro. Kojak – um detetive interpretado pelo ator Telly Savalas, cuja característica era ser completamente careca, em seriado de TV de mesmo nome que fez sucesso nos anos 70 – é um dos apelidos que bolsonaristas dão ao maior desafeto deles, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes.
Esse tipo de tomada de qualquer pauta para a discussão de política é um comportamento que qualquer sociólogo, antropólogo ou analista de comportamento social consideraria doentio. Se se pode dizer que haja algo que amenize esse tipo de constatação, aí vai: o Brasil não está sozinho nessa. O fenômeno do avanço da extrema direita é global e seu radicalismo está cindindo nações e suas democracias em todo o mundo. Como exemplos que corroboram a tese, estão Estados Unidos, Israel, Hungria, Itália, Filipinas, El Salvador e, mais recentemente, a Argentina.
Na semana passada, aliás, dois episódios, um consequência do outro, revelam muito do que é o problema por que o mundo passa: em Davos, na Suíça, discursando no Fórum Econômico Mundial, o presidente argentino, Javier Milei, com seu libertarianismo nonsense, atacou o que, em sua visão conspiradora e conspiratória do que considera “socialismo”, segundo sua fala, teria contaminado países desenvolvidos, meios de comunicação, empresariado e até as organizações internacionais. Pior: ao fim, foi aplaudido por parte da plateia.
Mais do que o auditório presente à conferência, um indivíduo, em especial, sintetizou todos os riscos expostos nos parágrafos acima sobre o fenômeno do avanço extremista e da intensificação da radicalização: incensado mundialmente pelos reacionários, o bilionário Elon Musk publicou, em sua conta na plataforma que adquiriu em 2022 e transformou de Twitter para X, uma imagem em que uma mulher está sentada sobre um homem, ambos nus, ela de costas para ele. A cena simula um ato sexual e o que encobre a região do coito é… um laptop tendo na tela a imagem de Milei discursando em Davos! Mais interessante é o comentário do magnata: “So hot, m…”, que em tradução livre seria algo como “que delícia, m…”. O “m”, parece óbvio, é uma referência ao sobrenome do discursador.
Recorrendo ao trabalho de Sigmund Freud, não poderia haver indício mais evidente de que há uma tara da direita por seu próprio discurso. É uma retroalimentação: o discurso por si traz o regozijo, que atrai mais gente para esse discurso. Nem precisam da prática – embora esses militantes ganhem cada vez mais a oportunidade de exercê-la. Assim como até poucos anos atrás era estranho encontrar um comunista utópico lutando pela “revolução”, pela ditadura do proletariado e outros preceitos semelhantes, já abandonados desde a queda do Muro de Berlim, esse agora é um fenômeno que se revelar no outro extremo – só que em quantidade infinitamente maior e atiçado por CPFs que mandam na economia do planeta.
Assim, fica cada vez mais nítido que há dois lados polarizados no Brasil, mas isso ocorre, na verdade, pela ode ao extremismo. Então, o Brasil corre o sério risco de antes de ver os efeitos de um suposto amadurecimento de seu processo democrático, já estar vivenciando, de fato, seu apodrecimento.
Cortando para algo mais prático: as eleições municipais sempre foram, na maioria das cidades, palco de disputas acirradas pelo poder. Políticos experientes garantiam que o embate entre bolsonaristas e não bolsonaristas (parece ser essa a divisão mais factível hoje) não chegaria a render nas campanhas locais. Parece que esses mesmos políticos estavam errados – tanto que muitos deles que vão concorrer buscam exatamente ser o referencial de um dos lados na disputa.
Este ano, a disputa de votos tem tudo para ser a primeira entre prefeitos e vereadores que será influenciada de maneira plena por esse quadro de duas correntes ideológicas de posições antagônicas. Mas isso já é assunto para outra Conexão.