No domingo, 22, enquanto os argentinos iam às urnas para escolher seu próximo presidente, os brasileiros assistiam à situação de camarote – nem todos, alguns preferiram atravessar a fronteira para fazer campanha, como veremos. Em meio à crise no país vizinho, que tem a maior inflação dos últimos 30 anos, na internet rolava por aqui uma enquete bem irreverente e nada empática, diga-se.

A pergunta era: “Em relação às eleições na Argentina, você está torcendo para: A) Sergio Massa, porque sou peronista; B) Patricia Bullrich, porque sou macrista; C) Javier Milei, porque sou brasileiro e quero mais é que a Argentina se dane!” (não era exatamente esse verbo, mas outro, menos publicável).

Assim como aconteceu com o Brasil há cinco anos, lá agora um personagem histriônico e radicalizado à direita está roubando a cena e centralizando o debate: é o tal Milei, o qual – diz a lenda confirmada por ele mesmo – tomou a política como missão depois que o espírito de seu cachorro de estimação, “falando” por meio de uma vidente (por acaso, ou não, irmã do candidato), vaticinou que seu destino era a presidência da Argentina.

Assim como por estes lados de cá, o representante portenho do “conservadorismo” (na verdade, palavra mal usada, mas preferida pelos adeptos, em vez de “reacionarismo”, que é o que de fato praticam) abusa do exagero de todas as formas. O objetivo é este mesmo: fazer muito barulho para cativar os eleitores de uma população desalentada.

Mas não precisaria nem chegar ao ponto de ter alguém nesse perfil para que os “hermanos” corressem um risco grande demais de se danarem. Melhor dizendo, de continuarem se danando – pelo menos em um futuro próximo. É que, resumindo de uma forma extremamente simplista, a Argentina hoje é uma empresa essencial que mais do que tudo precisa funcionar, mas não tem capital de giro para se manter.

A história dos conterrâneos de Gardel, Borges, Maradona e Messi é uma eterna relação de amor e ódio com o dólar pelo menos desde o fim do século 19 e o início do século passado, quando o país era uma das maiores economias do mundo e “rico como um argentino”, uma expressão comum entre os franceses – em 1896, o PIB per capita de nossos vizinhos era o maior do planeta. Uma série de golpes de Estado, de opções desastrosas para o próprio desenvolvimento e de políticas econômicas erradas, liberais e intervencionistas, fez o que era o eldorado da América Latina se transformar, neste novo milênio, em um pesadelo continental só não mais terrível do que a Venezuela de Nicolás Maduro.

E aqui entra nosso esquisitíssimo personagem. Queiram seus críticos ou não, Milei é a única coisa revolucionária que apareceu na Argentina em muito tempo. Depois de uma ditadura sangrenta, uma redemocratização complicada, uma crise político-financeira resultante da dolarização – que, no fim, confiscou economias (o “corralito”) e fez a Casa Rosada ter cinco presidentes em 12 dias entre dezembro de 2001 e janeiro de 2002 – e os vaivéns entre o peronismo e a direita no poder… o saco do “hermano” já está de fato saturado. A ascensão do cabeludo radical e fanfarrão que faz carreata erguendo uma imitação de motosserra é quase uma mistura de voto de protesto com um auto de rendição.

A bem da verdade, o argentino é muito mais antissistema do que seu correspondente brasileiro, Jair Bolsonaro

Durante toda a campanha, os partidários do extremista souberam trabalhar esse sentimento de revolta – e, mais do que isso, de rebeldia, também. O eleitoral de Milei é formado por uma maioria de jovens que veem na figura do candidato o símbolo máximo da contestação. Quase como um ídolo do rock (e Milei já teve uma banda de garagem na adolescência). Sim, corre por lá um processo bem semelhante ao da idolatria que colocou um teflon ético em Jair Bolsonaro por meio da anedota do “mito”.

A bem da verdade, o argentino é muito mais antissistema do que seu correspondente brasileiro. Bolsonaro, apesar de ter surfado no apoio de grupos como o Movimento Brasil Livre (MBL) para se criar como alternativa pretensamente “de fora” do establishment, vivia da política já havia 30 anos em 2018. Empregou toda a família como parlamentares ou com cargos com parlamentares, fora as acusações sobre rachadinhas, crime comum no Legislativo.

Já o “anarcocapitalista”, “ultraliberal”, “extremista de direita”, “libertário” Javier Milei é um economista de 53 anos que entrou na vida pública tardiamente e, em tempos de redes sociais, ganhou holofotes como deputado. Seu assustador brilho no olhar quando fala contra a “casta” (o equivalente a “sistema”, em sentido bem pejorativo) revela que ele demonstra acreditar nas sandices que espalha em entrevistas e comícios. Quer dolarizar a economia, acabar com o Banco Central, eliminar praticamente todos os ministérios – inclusive os da Educação e da Saúde. Quer privatizar todas as estatais, quer fechar as portas às transações com o que considera governos “comunistas”, inclusos aí a gigante China e o fronteiriço Brasil. Eleito, diz que vai facilitar extraordinariamente a aquisição de armas de fogo e pensa até em permitir a venda de órgãos humanos. Mas só é liberal radical até começarem a discutir a legalização do aborto.

Liderando a frente A Liberdade Avança, diz que justiça social é uma forma de roubo, porque ela viria com o dinheiro tirado dos impostos dos mais ricos. Em entrevista ao ícone da extrema direita estadunidense Tucker Carlson – apresentador demitido da Fox News por espalhar uma fake news sobre urnas nos EUA que custou à empresa uma indenização de US$ 800 milhões –, ele conseguiu deixar perplexo até o comunicador reacionário. Um feito que nem Bolsonaro havia conseguido.

Para a votação, no domingo, a extrema direita argentina teve como reforço insólito na boca de urna a chegada de parlamentares brasileiros, a começar do “03”, o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP). O saldo de sua passagem por lá: ficou marcado por viralizar nas redes sendo sumariamente tirado do ar pelos apresentadores de um debate na TV no dia da eleição, ao defendendo o direito dos argentinos de se armarem enquanto conceder entrevista ao vivo. “Os argentinos são generosos demais por receber esse tipo de gente”, desabafou um dos âncoras.

Ao fim da apuração, uma ducha de água fria foi jogada na turma de Milei. O ministro da Economia e candidato dos peronistas/kirchneristas, Sergio Massa, ganhou o primeiro turno. Milei ficou em segundo e eles encaram as urnas de novo em 19 de novembro.

Apesar da derrota em primeiro turno, na reta final o sujeito despenteado com cara de maluco parece ter muito mais condições de expandir seu eleitorado do que o rival. Tanto a 3ª colocada Bullrich como o ex-presidente Mauricio Macri declararam apoio pessoal – por enquanto, não partidário – ao ultradireitista. Ou seja, da mesma forma que no Brasil e nos Estados Unidos a direita tradicional já se entregou ao extremismo. E, pelo visto, grande parte da Argentina já tem um desejo inexorável de buscar o caos completo.

E o Brasil com isso? Ora, a Argentina é nosso terceiro maior parceiro comercial em termos de países, atrás apenas de China e Estados Unidos, nessa ordem. Não dá para lidar com o risco Milei usando só irreverência futebolística. Para o bem de ambos os lados, o jeito é torcer para que, se eleito, em termos efetivos o argentino seja tão ineficiente para implantar seu desgoverno quanto seu correspondente tupiniquim.