Há uma falsa polêmica quando se fala em composição de ministérios e que foi bastante levantada à época da eleição de Jair Bolsonaro pelo então PSL (hoje União Brasil), em 2018: a adoção de um quadro técnico ou político no primeiro escalão do governo. Uma das bandeiras do agora ex-presidente (e quase ex-político) era ser contra a negociação de cargos em troca de votos. Há vários vídeos em que ele condena concessões ao Centrão, eixo estrutural do Legislativo brasileiro.

Diz um ditado estrangeiro que na vida só há duas coisas inevitáveis: a morte e os impostos. No caso particular do Brasil, pode-se tranquilamente acrescentar a política de coalizão, do toma lá dá cá, da qual o Centrão é protagonista. Da mesma forma que não adianta protestar contra a mordida do Leão ou a finitude da existência, é preciso aceitar que a hegemonia fisiológica no Congresso.

Isso não significa, porém, ir do 8 ao 80, como ocorreu com o inepto Bolsonaro. Ao assumir, o capitão da reserva achou que poderia governar sambando em cima das votações, fidelizando a maioria dos deputados (de direita e grande parte autodeclarados conservadores) com pautas liberais e de costumes em vez de cargos e emendas. Foi um desastre para o comando do Planalto que freou o desgoverno – no que, por ironia, talvez tenha contido seus males.

Mesmo com sua gestão seguindo sem rumo e sem perspectivas, foi somente quando a pandemia apertou-lhe o calo e a impopularidade foi ao teto que o então presidente viu que só sobreviveria politicamente até o fim de 2022 pelo “caminho do meio”. Quando fez esse movimento, foi um giro de 180 graus completo: os olavistas foram jogados fora na curva e os ministérios se abriram generosamente para o Centrão no caminho da volta. Salvaram-se na carona os militares, mas acomodados em pastas que não interessavam ao grupo que chegava.

Mais do que isso: sem saber governar – e, muito provavelmente, querendo ele mesmo se livrar dessa inconveniência, enquanto fazia campanha andando de jet ski e puxando motociatas –, Bolsonaro assinou uma procuração de plenos poderes para Arthur Lira e sua banda a que se deu o nome de orçamento secreto.

A nova manobra de compra de apoio legislativo fez mensalão e petrolão parecerem uma vaquinha entre amigos. Foram-se os anéis, ficaram os dedos de Bolsonaro fazendo arminha para a população.

Vieram a eleição e a primeira derrota de um presidente em busca da reeleição. Para o Centrão, também seria um revés, já que ter o capitão por mais quatro anos na cadeira principal do Planalto seria renovar o contrato do orçamento secreto. Outro revés foi a queda do orçamento secreto por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF).

Mas o uso do termo “revés” em vez de “derrota” para Lira e cia. não ocorre à toa. E, depois de um período de reconhecimento do terreno durante a transição de desgoverno para governo, com a votação da proposta de emenda à Constituição (PEC) que tornou factível o orçamento de 2023, o grupo mostrou a força já no primeiro dia da nova legislatura, com o comandante do bloco reconduzido à presidência da Câmara dos Deputados praticamente por aclamação, do PL ao PT.

Do outro lado da Praça dos Três Poderes está o Palácio do Planalto, de onde Luiz Inácio Lula da Silva tenta dar ritmo a seu governo. Meio ano já se passou e a equipe ministerial sofreu apenas uma baixa: caiu o general Gonçalves Dias, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), substituído por Marcos Antonio Amaro dos Santos, de mesma patente. Outra ministra chega como sobrevivente, mas sem muitas perspectivas de seguir: Daniela Carneiro, do Turismo, cuja permanência descontenta o próprio partido, o União Brasil (UB), que está na base do governo, mas sem dar os votos necessários para merecer três pastas – as outras são Comunicações, com Juscelino Filho, e Integração, com Waldez Góes, este do PDT, mas na cota do UB.

O presidente da Câmara tem buscado “cercar” Lula em busca de mais espaço para si e seus amigos de Centrão no governo federal

Ou seja, contados os transtornos desde o início do ano, marcado pela tentativa de golpe de 8 de janeiro e pela briga com o Banco Central pela queda da taxa de juros, a equipe ministerial resistiu relativamente bem. Aqui é que Arthur Lira volta ao texto, após um parágrafo e meio.

Vivendo o que poderia ser chamado de ressaca da mosca azul – já que com Bolsonaro era uma espécie de vice-rei –, o presidente da Câmara tem buscado “cercar” Lula em busca de mais espaço para si e seus amigos de Centrão no governo federal. Diz que o governo precisa “melhorar a articulação”, “entender as demandas”, critica ministros que fazem o contato político com os deputados e até já está dando palpite na questão sucessória do próprio presidente com seis meses de governo.

Já faz pelo menos um mês, o alvo principal do Centrão é o Ministério da Saúde. A pasta é, para os partidos e seus líderes, uma galinha dos ovos de ouro: uma imensidão de recursos para ser geridos, contratos mil e dinheiro rodando de forma bem dinâmica, pelo caráter muitas vezes emergencial das necessidades da pasta. Ser administrado por alguém de competência técnica, que trabalhe de forma ética, é o melhor dos mundos para a população, mas isso gera uma “obediência” à burocracia e aos rigores da lei que gente com intenções escusas geralmente não gosta.

Nísia Trindade, uma socióloga que se tornou doutora na área de Políticas Públicas para a Saúde, ganhou destaque por presidir a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) no meio da pandemia de Covid-19. Durante a gestão, que passou por uma recondução em 2021, sua equipe criou um novo centro hospitalar, no câmpus de Manguinhos, no Rio; houve a participação no ensaio clínico Solidarity, da Organização Mundial da Saúde (OMS), para testar medicamentos contra a Covid-19; aumentou a capacidade nacional de produção de kits de diagnóstico e processamento de resultados de testagens; organizou ações emergenciais junto a populações vulneráveis; ofertou cursos virtuais, para profissionais do SUS, sobre manejo clínico e atenção hospitalar para pacientes com Covid; lançou um manual de biossegurança em escolas; e tornou a Fiocruz laboratório de referência para a OMS em Covid-19 nas Américas.

Mas o ponto alto foi Nísia ter coordenado o acordo de encomenda tecnológica fazendo a articulação entre Ministério da Saúde, Universidade de Oxford, a farmacêutica AstraZeneca e as unidades de produção locais, visando realização dos testes clínicos, registro sanitário e a produção de milhões de doses de vacina contra a doença.

Nísia Trindade, no Ministério da Saúde, talvez tenha sido a decisão mais acertada de Lula em todos os ministérios – e é bom lembrar que houve outras que se mostraram ótimas, como Fernando Haddad na Fazenda, Flávio Dino na Justiça e Silvio Almeida nos Direitos Humanos.

Ao mesmo tempo, mantê-la no cargo é o maior desafio de Lula diante da sanha de partidos e blocos de olho na graúda verba da Saúde. Mas ter alguém tão pertinente ao cargo – o que já não ocorre, por exemplo, no Ministério da Educação, com o ex-governador do Ceará Camilo Santana (PT) no comando – é um símbolo importante demais, diante do momento atual, para ser descartado. Principalmente depois de um governo que colocou no cargo, em meio ao morticínio do coronavírus, um general de três estrelas que confessou não saber o que era o SUS.