História de um duelo, com revólveres, entre professor da UFG e advogado famoso de Goiânia

14 julho 2024 às 00h00

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São passadas seis décadas, os protagonistas do duelo estão todos (ou quase todos) falecidos, e ele é tão invulgar, que não resisto em relatá-lo para os leitores do Jornal Opção.
Aconteceu no início dos anos 1960. O ano, precisamente, não me recordo. Detalhes há que se perdem nas brumas do passado, cada vez mais densas quando nos avançam os anos de vida. Mas o ano é um detalhe, não invalida a narrativa, que envolve personagens pertencentes às mais clássicas famílias goianas, que listo a seguir.
1
Nigel Guido Spenciere/Advogado
Nigel Guido Spenciere, que os amigos chamávamos de Neco, foi famoso advogado goiano, também deputado, conhecido pelo destemor, pela integridade e pela capacidade profissional. Era, além disso, exímio enxadrista e afamado atirador de revólver, capaz de acertar uma ponta de cigarro a 15 ou 20 metros de distância com um único disparo de seu Smith & Wesson calibre 38.
Quando Iris Rezende foi cassado, em 1969, Nigel abrigou-o em seu escritório de advocacia, e com ele fez sociedade. A talentosa e internacional pianista Belkiss Spenciere era sua irmã.
2
Walter Brockes/Professor da UFG
Walter Brockes era um competente professor da Escola de Engenharia e do Instituto de Matemática e Física da UFG, um intelectual típico, pouco preocupado com a aparência ou com a vestimenta, introvertido, dotado de uma inteligência extraordinária, autor de livros técnicos e de trabalhos científicos reconhecidos. E excelente enxadrista.

3
Paulo Pacheco/Advogado
Paulo Pacheco foi um dos mais polêmicos advogados que já ocuparam uma tribuna nos juris goianos. Inteligente, correto, poeta, dono de uma oratória inflamada, era, como seu colega e amigo Nigel, atirador de elite com armas curtas. E não levava desaforo para casa.
4
Clóvis Fleury/Contabilista e filósofo
Clóvis Fleury era um dos decanos da contabilidade em Goiás, filósofo autodidata, conhecido também pela integridade. Recatado, respeitado pela erudição, foi presidente do Conselho Regional de Contabilidade e, curiosidade, do Partido Comunista em Goiás, na sua época de clandestinidade.
Vejamos como essas quatro figuras relevantes, mas tão díspares, foram se reunir em um acontecimento anacrônico, e que deixou boquiabertos todos nós naqueles dias. Acrescento que fui amigo de todos os quatro, e que o que aconteceu foi de conhecimento apenas de um grupo reduzido de pessoas próximas.
Nigel e Brockes, possivelmente os dois melhores enxadristas de Goiânia, nunca tinham se enfrentado, até aquele dia em que se encontraram no Clube de Engenharia, e alguém teve a ideia de incitá-los a disputar uma partida de xadrez. Não foi uma boa ideia.
A partida começou bem, com os adversários fazendo suas jogadas tensas, bem estudadas e argutas. E continuou bem, até que Brockes, nervoso, fez um movimento infeliz, que permitiu ao adversário uma contra jogada devastadora.

De tão nervoso, Brockes insinuou que Nigel havia feito algo não permitido pelas regras. Foi o bastante para que Nigel, sentindo-se ofendido, se levantasse. Brockes fez o mesmo. Nigel, talvez temendo uma agressão física, aplicou um murro em Brockes, que o derrubou. Os circunstantes já se preparavam para separar os contendores, quando Brockes se levantou, calmamente, e sem erguer a voz, proclamou:
— O sr. acaba de atingir minha honra. Essa mancha só pode ser lavada com sangue. Amanhã, no nascer do sol, vou esperá-lo no antigo aeroporto de Goiânia, um local retirado, próprio para um duelo como o que vamos travar. Compareça armado e acompanhado de um padrinho, pois eu farei o mesmo.
Ao que Nigel respondeu incontinenti:
— Vou estar lá, pode estar certo.
Os presentes, embasbacados, não sabiam o que dizer ou fazer, até que alguém ponderasse aos dois adversários — agora inimigos — que fossem para casa, se acalmassem e esquecessem o desagradável acontecimento, pois duelos não existiam mais.
A maioria julgou que as coisas se esfriariam e ninguém cometeria algo extemporâneo, além de insensato, como se bater em duelo em pleno século XX. Isso era coisa dos séculos XVIII e XIX e de terras distantes, como no duelo que vitimou em São Petersburgo o poeta russo Aleksandr Púchkin, em 1837.
Um pequeno grupo — três ou quatro amigos — resolveu, preocupado, comparecer ao improvisado campo de honra, bem cedo, no dia seguinte. E para sua surpresa, já lá estavam, de um lado, Walter Brockes e seu padrinho de duelo, Clóvis Fleury; e de outro, Nigel Spenciere, apadrinhado por um excitadíssimo Paulo Pacheco.
Enquanto os padrinhos discutiam as regras do duelo, os amigos tentavam dissuadir os duelistas, cada qual com seu revólver à cinta e pronto para o confronto.
Felizmente, os padrinhos demoravam a chegar a um acordo, pois Paulo Pacheco propunha um duelo à moda do faroeste americano, em que, a um sinal, ambos sacassem suas armas e se alvejassem.
Clóvis Fleury, brandindo um livrinho francês e citando um código de duelo irlandês do século XVIII, sugeriu que agissem à moda europeia: de costas um para o outro, dessem doze passos, fizessem meia volta e disparassem.
A demora no discutir tanta coisa obsoleta foi providencial. Os amigos, ainda que a custo, convenceram Brockes a aceitar um pedido de desculpas e retirar o convite do duelo.
Difícil foi convencer Nigel a se desculpar. Temia ser o gesto confundido com covardia. Só aquiesceu, quando alguém ponderou que ele era um ótimo atirador, enquanto Brockes mal sabia empunhar seu revólver. Que o resultado do duelo estava escrito, e que Brockes não tinha nenhuma chance. E que ele, Nigel seria, sim, tachado de covarde, se alvejasse um Brockes atrapalhado com sua arma.
Mais difícil foi convencer Paulo Pacheco, que afirmava não concordar que tudo aquilo, que parecia tão sério, terminasse em “uma palhaçada”. Mas acabou, contrafeito, concordando também.
Nigel apresentou seu tímido pedido de desculpas, prontamente aceito por Brockes, e todos se retiraram, pensando no episódio. Que ninguém poderia classificar como cômico, mas que certamente era anacrônico e que chegara à beira do trágico. Tire dele o leitor suas conclusões. Várias que cabem no caso. Uma delas é a de que a honra, mercadoria hoje em enorme baixa no mercado, tinha um valor incomensurável naquela época. Podia valer mais que a própria vida.
Frise-se que Púchkin morreu no duelo, aos 37 anos. Ele é considerado o pai da literatura russa moderna. Escreveu o notável “Evguiêni Oniéguin”, um inventivo romance em versos. Recentemente, com tradução de Rubens Figueiredo, saiu uma edição pela Editora Companhia das Letras. Trata-se de uma versão direta do russo.