Júlio Dantas é um escritor português do porte de Eça de Queiroz e Alexandre Herculano

16 agosto 2014 às 12h59

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O autor, além de escrever prosa, poesia e teatro, era apaixonado pela literatura brasileira

Alexandre Herculano e Eça de Queiroz
Júlio Dantas (1876-1962) foi um dos escritores portugueses de maior produção literária, embora grande parte de sua fama venha apenas de uma pequena peça teatral, traduzida para uma vintena de línguas: “A Ceia dos Cardeais” (1902).
Médico que praticava a medicina, Júlio Dantas escreveu teatro, romances, história, poesia, contos e crônicas. Traduziu Shakespeare para o português. Foi deputado e diplomata. Casou-se aos 66 anos, e viveu até os 86. Além da vasta obra que viu publicada, três livros seus são póstumos: “Revoada das Musas” (1965), “Lisboa de Nossos Avós” (1966) e “Páginas de Memórias” (1968).
Seu livro “Pátria Portuguesa” (1914) reúne um grupo de novelas históricas que vão da formação de Portugal, no século XII, até a era dos descobrimentos, contando, em linguagem entre atraente e emocionante, os principais episódios da epopeia portuguesa que elevou o pequeno país a nível de império. É uma das mais belas e importantes obras no gênero, que não fica atrás das escritas por Alexandre Herculano, Eça de Queiroz ou Henrique Lopes de Mendonça.
Júlio Dantas tinha muitos laços com o Brasil, atados pela literatura e pela diplomacia. Cultivou muitas amizades brasileiras. Viu seus livros exportados para cá ou editados aqui, onde nunca lhe faltaram leitores. Foi condecorado pelo governo brasileiro com a comenda da Ordem do Cruzeiro do Sul e era membro honorário da Academia Brasileira de Letras e da Academia de Medicina do Rio de Janeiro.
No seu livro “Eles e Elas” (1918), Júlio Dantas, mais que comenta, festeja o livro de Martins Fontes — “O Verão” —, lançado naquele ano, e dedica ao poeta brasileiro todo um capítulo. Lembra, no comentário, outros poetas patrícios: Olavo Bilac, Alberto de Oliveira, Raimundo Correa, Luiz Murat; e os prosadores Coelho Neto e Euclides da Cunha.
Em outro livro, “Mulheres” (1916), Júlio Dantas comenta o livro “Trovas Populares”, reunião folclórica feita por Afrânio Peixoto, e a poesia de Catulo da Paixão Cearense, que lhe causou enorme impressão, a ponto dele se referir a Catulo como “Vergílio caboclo”, adaptar algumas trovas para o português clássico e divulgá-las, quando a intelectualidade portuguesa nelas encontrou similitude com a obra do famoso poeta luso Antônio Correia de Oliveira (1879-1960).
Em “Páginas de Memórias”, Júlio Dantas faz muitas menções afetuosas ao Brasil, que visitou várias vezes, a primeira em 1923. Dedica um capítulo a sua atuação no diário carioca “Correio Da Manhã”, onde escrevia a convite de Edmundo Bittencourt, fundador do jornal e seu amigo. O escritor dizia que de todas as profissões que havia exercido, a mais gratificante ao espírito era a de jornalista. “Não sei de função mais nobre, nem de magistratura mais elevada do que aquela que se destina a dirigir a opinião, a esclarecer as inteligências, a elevar os corações, a estimular as energias coletivas, a acordar na alma do povo sentimentos generosos, a formar nas consciências o culto da justiça, da fraternidade, da ordem e da paz”, dizia.
(A opinião é diametralmente oposta à que têm os radicais de esquerda incrustados hoje no governo brasileiro. Não veem nobreza na atividade jornalística independente, a ponto de agredirem até jornalistas que lhes dedicam simpatia, como a colunista de economia Miriam Leitão. Para eles, simpatia é pouquíssimo. A orfandade do stalinismo só aceita a subserviência. Afinal, Stálin reunia no Kremlin a nata da literatura soviética, para dizer a ela o que escrever. E a desobediência acabava no Gulag, na Lubianka ou no paredão.)
Voltemos a Júlio Dantas. Ainda em “Páginas de Memórias”, o ilustre português conta como conheceu Olavo Bilac, de quem ele admirava já de sobra a obra poética. Foi na última viagem de Bilac à Europa (1916?), na visita que o poeta patrício fez à Academia de Ciências de Lisboa. A admiração, diga-se, era mútua. Festejaram terem se conhecido pessoalmente e o encontro redundou em amizade e correspondência. Mas Bilac morreu logo depois (em 1918), bem antes de Júlio Dantas.
No mesmo “Páginas de Memórias”, Júlio Dantas conta ainda como foi assinado o acordo Brasil-Portugal para a unidade da língua portuguesa escrita. Foi um trabalho de Fernando de Magalhães, presidente da Academia Brasileira de Letras, e do próprio Júlio Dantas, presidente da Academia de Ciências de Lisboa, que coroou o acordo, assinado em 30 de abril de 1931 pelos dois presidentes e pelos embaixadores José Bonifácio de Andrada e Silva, do Brasil em Portugal, e Duarte Leite, de Portugal no Brasil.
(Curiosidade: os presidentes das academias, por cuja força firmou-se o acordo ortográfico, não eram filólogos. Sequer eram homens formados em letras. Eram ambos médicos.)
No conjunto do trabalho de Júlio Dantas, parece ter sido a obra poética a parte menos expressiva. Talvez por isso apreciava muito a poesia, e seguia o que de bom se imprimia em Portugal e no Brasil. Comentava, como dissemos acima, em seus livros e trabalhos jornalísticos, a produção dos novos poetas que lhe parecessem promissores.
Em outro livro, “Abelhas Doiradas” (1920), dedica uma crônica ao poema “Juca Mulato”, de Menotti Del Picchia, impressionado ao ponto de vaticinar sobre o poeta: “Fixem este nome. Ou me engano, ou há de ser, amanhã, o de um dos maiores poetas brasileiros”. Não se enganava.
Falei antes na peça “A Ceia dos Cardeais”. Se o leitor nunca a viu representada, e se tiver a grata oportunidade, não a perca. Não é à toa que essa pequena peça, em um único ato, com três atores apenas, é um estrondoso sucesso — é a peça escrita em língua portuguesa mais traduzida e mais representada em todo o mundo, mesmo hoje, mais de um século depois de sua primeira apresentação.
Escrita em apenas oito dias, a pedido de um nobre português para uma noite de homenagens, junto com outras peças curtas, a um ator lisboeta famoso, ela é uma obra-prima de cenografia, monólogo e psicologia. Embora os personagens sejam três cardeais que ceiam em deslumbrante cenário interior ao Vaticano, o tema é o amor. E a visão que dele têm — ou teriam — e revelam em aprimorados monólogos, os espanhóis, encarnados no Cardeal Rufo, os franceses, no caso representados pelo Cardeal de Montmorency e os portugueses, no sentimento do camerlengo Cardeal Gonzaga e sua surpreendente visão amorosa. Júlio Dantas escreveu uma vintena de peças, e entre elas várias são apreciáveis. Mas “A Ceia dos Cardeais” é uma obra-prima, uma centelha perene de gênio. (No site do jornal, transcrevo a peça para deleite do leitor.) Publico, a seguir, dois poemas do escritor português.
Os desconhecidos
Júlio Dantas
(A Manuel Penteado)
Dois cadáveres — vede — aguardam o meu corte:
Um homem gigantesco e uma mulher perdida.
Dormem nus, sobre a pedra, unidos pela morte,
E talvez, sem se ver, passaram pela vida.
Ele, o morto, na seca e descarnada espalda
Tem nomes de mulher e várias tatuagens;
Treme de nojo o sol na sua pele jalda
E abrem-lhe a boca verde uns esgares selvagens.
De tórax d’esmeralda, asa tecida d’ouro,
Uma nervosa mosca, em passos indolentes,
Para entrar-lhe na boca aflora o buço louro
E começa a descer pela escada dos dentes.
Morto há dias, olhai que a rigidez se perde
E que o seu corpo está gelatinoso e elástico:
Suas costelas são como um teclado verde,
Digno das longas mãos dum pianista fantástico!
Ela morreu de parto: entre as airosas coxas
Que doira como um fruto uma lanugem pouca,
Um feto mostra ao sol as suas carnes roxas,
Ajoelhado, a rir, sem olhos e sem boca.
Tem rugas sobre o ventre, e lembra, cada ruga,
As que a pedra ao cair traça nos verdes pântanos:
Os seus cabelos são dum ruivo tartaruga,
O seu rictus perturba e o seu olhar espanta-nos.
Bate-lhe em cheio o sol, como losango d’ouro;
Tem no seio listrões de sangue que secou:
E pelo flanco enorme, e pelo púbis louro,
Lembra os ventres brutais que Van Miéris pintou.
Dir-se-ia que o morto a olha, — reparai,
E lhe espreita e deseja as carnes violadas;
D’aí, quem sabe lá se ele seria o pai
Daquele feto roxo a rir às gargalhadas!
Virgindade
Júlio Dantas
Ó gótica beleza iluminada e viva!
Sê esquiva para mim; quero-te sempre esquiva!
No amor, a dor é tanta e a volúpia tão pouca!
Foge das minhas mãos, foge da minha boca!
Ser honesta é vestir uma roupa de estrelas:
Há flores no teu peito; hás de ter conta nelas.
Nunca me ouças de perto as ânsias e os segredos:
Quebram flores de vidro os meus impuros dedos,
Rasga sedas, no escuro, o meu brutal namoro…
É tão fácil quebrar uma cintura d’ouro!
Magoando-te a carne, em ânsias de mordê-la,
Serei sempre um leproso a babar uma estrela,
Um sapo que polui, arrebentando em pragas,
A santa que o buscou para sarar-lhe as chagas.
A Ceia dos Cardeais (Parte I )
Peça em um ato em verso, representada pela primeira vez no antigo teatro D. Amélia, em 28 de março de 1902
Júlio Dantas
Uma grande sala, no Vaticano. Paredes cobertas de panos de Arras – Amplos tectos de caixão, com apainelamentos de talha doirada – Um retrato de cardeal vermelho, sobre o fogão – À D. baixa, o cravo, o violoncelo e o violino de um terceto clássico – Estantes altas de coro – Luzes – Ao fundo, largo tamborete onde repousam as capas, os chapéus, os bastões – À E. baixa, grande armário pesado de baixela de oiro e prata lavrada – Quase a meio, bufete onde ceiam os três cardeais: toalha de holandilha, picada de rendas; serviço de Sèvres, azul e oiro; cristais.
CARDEAL GONZAGA, CARDEAL RUFO, CARDEAL DE MONTMORENCY, sentados ao bufete, ceando; os fâmulos, vestidos de verde e prata, servem-nos, de joelhos.
CARDEAL RUFO, visivelmente agastado.
Será já amanhã!
CARDEAL RUFO, a outro fâmulo
Xerez.
Continuando, a de MONTMORENCY:
Roma! Roma! Que viu pela primeira vez,
Benedito XIV, um para receber
Conselhos de Inglaterras e cartas de Voltaire!
CARDEAL DE MONTMORENCY, grandioso
As cartas de Voltaire honram!
CARDEAL RUFO, num sorriso de desdém
É natural.
Fala como francês.
CARDEAL DE MONTMORENCY, com dignidade
Falo como cardeal!
CARDEAL GONZAGA, intervindo de novo
Mas, perdão… Não será política demais
Para uma ceia alegre? Enfim, três cardeais
Não salvam Roma …
CARDEAL RUFO, numa grande atitude
Pois, em minha consciência,
Bastava um só para salvar!
CARDEAL DE MONTMORENCY, com ironia
Vossa Eminência?
CARDEAL GONZAGA, conciliando docemente
Deixemos isso a Deus. E, na divina mão.
Roma repousará
CARDEAL DE MONTMORENCY, num sorriso
Vamos nós ao faisão?
Trinchando, com galanteria:
Se permitem, eu sirvo. É um faisão doirado,
Mau político, sim, mas todo embalsamado
De trufas. Nunca fez encíclica nenhuma;
Não usou solidéu por sobre a áurea pluma,
E, se um dia assistisse a qualquer consistório,
Dormiria como eu – e como S. Gregório.
AO CARDEAL RUFO:
Eminência, não acha?
AO CARDEAL GONZAGA, servindo:
A perna? A asa? O peito?
Muito superior, sobretudo em direito
Canônico. _ Uma àsinha, Eminência? Talvez
A possa amaciar, regando-a de Xerez.
A ave é rija demais para velhinhos doentes…
CARDEAL GONZAGA, formalizando
Eminência, ainda tenho uns quatro ou cinco dentes.
CARDEAL RUFO, provando o faisão
Benedito talvez não ande muito mal
Ser der ao cozinheiro o chapéu de cardeal!
CARDEAL DE MONTMORENCY, ao CARDEAL RUFO
Inda agora, a Eminência agastou-se comigo.
Confesse…
CARDEAL RUFO
Eu?
CARDEAL DE MONTMORENCY
Agastou.
CARDEAL RUFO, desculpando-se
Voltaire é um inimigo…
CARDEAL DE MONTMORENCY
E nós amigos. São discordantes fugaces.
Eminências…
CARDEAL RUFO, abraçando-o
Depois…
CARDEAL DE MONTMORENCY, beijando-o
Vem o osculum pacis
CARDEAL RUFO
Sobre um beijo outro beijo e sobre um ano outro ano…
Como envelhece a gente, o Velho Vaticano!
A política… O mal que se faz e desfaz
No mistério subtil destes panos de Arrás…
A intriga na sombra, os passos sempre incertos…
CARDEAL GONZAGA, olhando a estante de música
O que nos vale…
CARDEAL DE MONTMORENCY
Ah, sim…São os nossos concertos.
CARDEAL RUFO
Música de uma unção espiritual tão grande!
CARDEAL GONZAGA, em êxtase
Como a alma sobe a Deus nas fugas de Lalande!
CARDEAL RUFO, a DE MONTMORENCY
Depois, o seu violino… Eminência é artista…
CARDEAL DE MONTMORENCY, a RUFO
E o seu violoncelo…
CARDEAL RUFO
Oh! A perder de vista!
Num sorriso de beatitude:
Só com três cardeais, Roma era um céu aberto!
CARDEAL DE MONTMORENCY, tristemente
Tão longe a mocidade…
CARDEAL GONZAGA, numa lágrima
E o trêmulo tão perto!_
Caiu-nos sobre a fronte a neve dos caminhos…
CARDEAL RUFO
Envelhecemos tanto!
CARDEAL GONZAGA, a RUFO
Estamos tão velhinhos…_
Já fez sol, para nós.. Sol! Pois não é verdade?
CARDEAL RUFO, como num sonho
Sol!
CARDEAL DE MONTMORENCY, a um dos fâmulos
Mais champanhe.
CARDEAL GONZAGA
Sol! _ Nós que somos a saudade.
O pensar que se amou, que se viveu… O amor!
— Um tronco envelhecido a cuidar que deu flor!
Depois, num embevecimento:
Misterioso monte é neste mundo a vida!
Todo rosas abrindo, ao galgar na subida,
E a velhice, ao descer, toda cheia de espinhos…
— Ai, tão velhinhos!
CARDEAL RUFO, tristemente
Tão velhinhos!
CARDEAL DE MONTMORENCY, olhando os dois,
com ternura
Tão velhinhos!
CARDEAL RUFO
Relíquias. Devo ter setenta e três, já feitos.
CARDEAL GONZAGA
Eu tenho oitenta e um.
CARDEAL DE MONTMORENCY, sorrindo a, a olhá-los
São dois velhos perfeitos!
Três… Três velhos sem cor, que a saudade aviventa…
CARDEAL RUFO, a DE MONTMORENCY
Vossa eminência tem, quantos?
CARDEAL DE MONTMORENCY
Tenho sessenta.
CARDEAL RUFO, ao CARDEAL GONZAGA,
olhando DE MONTMORENCY com inveja infantil
Sessenta, só!
CARDEAL DE MONTMORENCY
Sessenta. E a vida já me cansa…
CARDEAL GONZAGA
Vossa Eminência está ainda uma criança!
CARDEAL RUFO, olhando DE MONTMORENCY
Também já fui assim! E que rijo que eu era!
Sessenta anos! Ainda em plena Primavera!
Tal qual assim… Tal qual!
CARDEAL GONZAGA
E eu! O que direi eu!
CARDEAL RUFO
Então, ainda compunha ao espelho o solidéu
E via com amor, sob a seda vermelha,
Uns fios de oiro a rir por entre a prata velha!
CARDEAL DE MONTMORENCY
Mas, Eminência, não! Com sessenta anos feitos,
Não sou, precisamente, uma criança de peitos.
Sou um velho, também… Um velhinho, com o ar
De quem viveu feliz e envelhece a cantar…
CARDEAL GONZAGA
É. É uma criança. Em tendo a nossa idade,
Verá que o relembrar coisas da mocidade
É o prazer maior que podem ter os velhos…
Para nós, recordar é cair de joelhos.
CARDEAL DE MONTMORENCY
Eu sei, eu também sei… Recordar é viver,
Transformar num sorriso o que nos fez sofrer,
Ressurgir dentro d’alma uma idade passada,
Como em capela de oiro há cem anos fechada,
Onde não vai ninguém, mas onde há festa ainda…
Se eu não hei-de saber como a saudade é linda!
Se eu não hei-de saber! _ É curioso, Eminências.
Não fizemos ainda as nossas confidências,
E somos como irmãos… Tão amigos!
CARDEAL RUFO
É certo!
CARDEAL GONZAGA
Confidências?
CARDEAL DE MONTMORENCY
Então… A morte vem tão perto!
Olhemos para trás, lembremo nos da vida…
A saudade de um velho é uma estrada florida!
CARDEAL RUFO
Confidências de amor!
CARDEAL DE MONTMORENCY
Porque não há-de ser?
Em toda a mocidade há um rido de mulher.
Contemos esse rido uns aos outros…Nós três…
Recordar um amor é amar outra vez!
Ninguém nos ouve…
CARDEAL GONZAGA
Mas, Eminência!
CARDEAL DE MONTMORENCY
O maior
Amor da nossa vida!
CARDEAL GONZAGA, com pudor, tapando a cara
Oh!
CARDEAL RUFO, como quem sonha
O maior amor!
CARDEAL GONZAGA
Mas nós somos cardeais!
CARDEAL RUFO, entusiasmando-se
O sentimento humano
Em toda a parte vive, até no Vaticano!
E esta púrpura – ai não, seria crueldade! —
Pode matar o amor, mas não mata a saudade!
CARDEAL DE MONTMORENCY, ao CARDEAL GONZAGA
Principie o mais velho… Eminência…
CARDEAL GONZAGA
Não, não…
Por Deus!
CARDEAL RUFO, a DE MONTMORENCY
Seja o mais novo.
CARDEAL DE MONTMORENCY, escusando-se,
polidamente num gesto
Oh!
CARDEAL RUFO
Serei eu, então.
Pensando um instante
Que lhes hei-de contar?
Erguendo a cabeça, os olhos brilhantes,
como quem encontrou:
Uma aventura linda,
Cheia de coração! Ai, não ter eu ainda
Mocidade na voz para a saber contar!
Eminências, perdão se eu acaso chorar…
Se uma lágrima… _ Enfim, são tudo impertinências
De velhos…
CARDEAL DE MONTMORENCY, convidando-o a principiar
Eminência…
CARDEAL RUFO, depois de um ligeiro cumprimento
a ambos
Eu começo, Eminências. —
Aos vinte anos, ou vinte e dois, proximamente,
Fui eu, por gentileza a um fidalgo parente,
Com minha capa negra e minha volta branca,
Ler cânones e leis na Douta Salamanca.
Era então um pequeno, espadachim e ousado,
O feltro ao vento, o manto ao ombro, a espada ao lado,
Tendo o instinto da frase e a intuição do gesto
— Um Velásquez no trajo, um Quixote no resto _,
Que seria talvez, por suprema façanha,
Capaz de desafiar o próprio rei de Espanha!
Nem pode calcular sequer, Vossa Eminência,
Como o meu buço loiro irradiava insolência!
Não matei em duelo o Sol, pelas alturas,
Só para não deixar Salamanca às escuras!
A respeito de amor, como essência divina,
Imitei o Don Juan de Tirso de Molina:
O amor, por mais ardente ou mais puro que fosse,
Morria, ainda em flor, com a primeira posse!
Detestava a mulher depois de conquistada:
A conquista era tudo: o resto, quase nada.
Queria lá saber de aventuras serenas!
Para mim, o amor era o duelo, apenas,
Batia-me ao acaso, enfim, por qualquer cousa,
Um beijo, uma mulher, uma pedra preciosa,
Uma flor que se atira, asa de oiro pelo ar,
A esmola de um sorriso, a graça de um olhar…
Já não tinha valor para mim nenhum bem,
Se não fosse preciso ir disputá-lo a alguém,
Lutar, vencer, rasgar, ardendo de desejo,
Com a ponta da espada o caminho de um beijo,
Pomar de assalto o Amor, ao Sol de mil perigos,
Como um rubro estandarte entre mãos de inimigos!
Assim vivia eu e os outros estudantes,
Lendo pouco Platão, lendo muito Cervantes,
Quando entrou de jornada em Salamanca, um dia,
Sobre carros de bois, a maior companhia
De cósmicos que eu vi ainda em toda a Espanha!
CARDEAL DE MONTMORENCY, num sorriso
Se visse a de Molière… Oh!
CARDEAL RUFO, sem se perturbar
Não era tamanha,
Nem tão rica, por certo. Ah! Foi uma loucura
Na Universidade! _ A primeira figura
Do bando era uma viva e linda rapariga,
Um Rubens precioso, uma beleza antiga…
CARDEAL GONZAGA, tapando a cara
Oh!
CARDEAL RUFO
De um loiro flamengo, a cabecita airosa,
toda num garavim de seda cor-de-rosa,
Como um beijo de luz, rescendia inocência…
CARDEAL GONZAGA, estranhando a palavra
Oh!
CARDEAL RUFO
Eu peço perdão se me excedo, Eminência,
Mas aquela mulher era um anjo dos céus!
Se Deus a pretendesse, eu desafiava Deus!
Ver um anjo a dizer-me – ó natureza cega! _
Versos de Calderon e de Lopo de Vega!
A representação foi sobre um pátio velho,
Todo armado à fidalga em damasco vermelho,
Num tapete real de capas de estudantes!
Num desfalecimento, escondendo uma lágrima:
Ai, o que eu sou agora! Ai, o que eu era dantes!
Quanta luz, quanto fogo a velhice nos rouba!_
Representaram não sei bem se a Niña Boba,
Um poemazinho leve onde a graça?
Nisto, em meio talvez da representação,
Ouvi ao pé de mim, dentre um bando folião
De escolares, dizer em voz rouca e sumida:
O rapto será logo, hem? Será à saída,
Na porta dos brasões. Quando a linda “bobinha”
Entrar na sua rica e leve cadeirinha,
Cairemos sobe ela, e…”Não ouvi mais nada.
Inda desembainhei meio palmo da espada,
Mas contive-me. ”Não. Logo é melhor” _ disse eu.
Quando acabou a peça era noite. Desceu
Uma tapeçaria. A cadeirinha, fora,
a porta dos brasões, para sua senhora,
Era um ninho infantil de lúcido brocado.
Perto, o bando escolar aguardava embuçado.
Ocultei-me também nas sombras da viela,
Desembainhei a espada, e. Nisto, assomou ela.
Diz-se: espada e anel, na mão em que estiver.
Mas sempre é forte a mão quando é linda a mulher!
Atirei-me de um salto, e em rápidos instantes,
Sozinho contra vinte e tantos estudantes,
Contra uma Faculdade inteira, expondo a vida,
A capa ao vento, a espada em punho, a pluma erguida,
Talhei, ensangüentei, feri, numa violência…
Esgrimindo, com o bastão, por sobre a mesa:
Assim! Assim!
Parte II
CARDEAL DE MONTMORENCY, defendendo
o serviço riquíssimo
Por Deus! È Sevres, Eminência.
CARDEAL RUFO, sentando-se, num grande gesto fanfarrão
E se não os matei a todos, na verdade,
Foi p’ra não se fechar a Universidade!
CARDEAL GONZAGA, profundamente admirado
Sozinho contra vinte! Uma luta sangrenta!
CARDEAL RUFO
Vinte? Trinta! Ou talvez, contando bem, quarenta!
CARDEAL DE MONTMORENCY
E então a cadeirinha?
CARDEAL RUFO
Ah! — Desapareceu.
CARDEAL GONZAGA
E a cômica?
CARDEAL RUFO
Sei lá!
CARDEAL DE MONTMORENCY
Quê! Não a seguiu?
CARDEAL RUFO
Eu?
CARDEAL DE MONTMORENCY
Não tornou a ver?
CARDEAL RUFO, tristemente
Não. Nunca mais a vi.
Foi por isso que a amei, _ porque não a possuí!
CARDEAL DE MONTMORENCY
No se caso, Eminência, eu…
CARDEAL RUFO
Diga.
CARDEAL DE MONTMORENCY
Se o consente…
CARDEAL RUFO
Seguia a cadeirinha?
CARDEAL DE MONTMORENCY
Imediatamente.
E ao atingi-la, então, curvaria o joelho,
Tiraria o chapéu em grande estilo velho,
E prostrando-me junto à portinha doirada
De corpo ajoelhado e d’alma ajoelhada,
Diria, num olhar cheio de sonhos loucos:
“Senhora, perdoai bater-me… com tão poucos!”
CARDEAL RUFO
Bela frase!
CARDEAL DE MONTMORENCY
Não é?
CARDEAL RUFO
Pena não me ocorrer…
Com tristeza:
Agora é tarde já para eu lha dizer!
CARDEAL DE MONTMORENCY
Tinha espírito… _ Enfim, o amor, pensando bem
Não é só bravura, é o espírito também,
Essa força, essa chama, imperceptível quase,
Que é a alma do gesto e a nobreza da frase,
Qualquer coisa de fino, e flexuoso, e ardente,
Que nos faz ajoelhar irreflectidamente,
Perturba, vence, infiltra, e, mal afora à boca,
Veste de seda e oiro a confissão mais louca…
Que seria o amor sem espírito, Eminência?
Uma paixão brutal ou uma impertinência,
Sem pureza, sem tudo aquilo que resume
O coração num beijo e a alma num perfume!
Com uns punhos de renda, até a ofensa é linda!
Pode ser fina a espada; a frase é mais ainda:
Uma escola subtil de esgrima delicada…
Procura o coração, a frase, como a espada,
E desfaz-se, ao ferir, em pedras preciosas,
Como os raios de Sol quando ferem as rosas…
Se ao homem vence a espada e se é belo vencer,
O espírito faz mais, _ porque vence a mulher!
No meu tempo, no tempo em que amei e vivi,
Fui o que ainda hoje são os de Montmorency,
O grande espirituoso, o leão da nobreza,
Cabeleira em anéis e gola à genovesa, Passeando o meu orgulho e o meu bastão solene
Pelos vastos salões da Duquesa de Maine.
Ah! Como já vai longe! _ Um dia, o velho Philidor
Dedilhava no cravo um certo minuete,
Um mimo, o que há de mais século XVII…
Querendo recordar-se e cantando:
Lá-ri la-ra, la-ri…
Suspendendo, tristemente:
Já não me lembro bem…
Tudo passa!
Tentando de novo recordar-se:
Lá-ri-la… — Nesse instante, alguém,
Uma bela mulher que eu já tinha encontrado
Nas ruas de Versalhe, em seu coche encontrado
A embaixatriz da Áustria, uma deusa, um assombro,
Poisou, num doce gesto, a mão sobre o meu ombro,
E disse numa voz desdenhosa: “Marquês,
Detesto-os”. Sorri. Nisto, segunda vez:
“Aborreço-os” Ri ainda. Ah, Eminências!
Uma mulher bonita a dizer insolências
É a coisa mais galante e mais deliciosa
Que pode imaginar-se. É como se uma rosa
Soltasse imprecações, vermelha e melindrada,
Contra as asas de Sol de uma abelha doirada…
Nisto, terceira vez: “Marquês, tenho-lhe horror”.
Já não ri. Junto ao cravo, o velho Philidor
Tocava o seu minuete ingénuo e palaciano…
Querendo ainda lembrar-se:
La-ri, la-ra, la … Não… La-ri…
Numa expressão dolorosa:
Há já tanto ano!
Não me lembro… A velhice!
Vendo de repente o cravo, e erguendo-se:
Ah, talvez, sim… Talvez
O consiga tirar neste cravo holandês.
Ferindo as teclas com a mão esquerda, de pé, e continuando a falar para os dois cardeais, enquanto
vai tocando:
La-ri, la-ra… — então, decidi-me, Eminências.
Compus a cabeleira, e em duas reverências.
O pé atrás, a mão na espada, à moda antiga,
Curvei-me ante essa bela e fidalga inimiga,
E disse: “A sua mão. Venha minha senhora.
Não me detestará daqui a meia hora” _
Dançámos o minuete. Ela _ era singular! _
Dava-me a impressão de uma renda a dançar,
Uma renda ligeira, um Saxe transparente
Onde se iam poisar, perturbadoramente,
Como um enxame de oiro, espirituoso e leve,
Desde a breve ironia ao epigrama breve,
A frase à Marivanx, ardente e complicada,
O eterno quase tudo _ apenas quase nada_
O espírito-mesura, o sorriso eloquência…
Ao CARDEAL RUFO, que está mais próximo:
Não sei precisamente o que disse, Eminência,
Mas devia ter sido um requinte de graça,
Galanteio que voa ou perfume que passa,
Poema cor-de-rosa, apaixonado e brando,
Que nos dá a ilusão de que se diz sonhando,
Eloquência d’amor, que perturba a mulher,
E vence quando ajoelha, e beija quando fere!
La-ri-la… Terminou o minuete, por fim.
Meia hora depois, nas sombras do jardim,
A embaixatriz de Áustria, apaixonada, louca,
Unindo à minha boca a pequenina boca,
Dizia-me, a sorrir _ “Como o adoro, Marquês!”
_ O espírito vencera ainda mais uma vez.
E enquanto Philidor, junto ao cravo…
Tocando, à procura, com ansiedade:
Não sei…
La-ri-la…
Depois, numa expressão de súbita alegria, sentando-se
ao cravo, a tocar:
O minuete! Achei! Achei! Achei!
La-ri-ra, la-ri-ra ,la-ra…
CARDEAL RUFO , erguendo-se e aproximando-se
do CARDEAL DE MONTMORENCY
Vossa Eminência
Perdoa-me, talvez, mais uma impertinência…
CARDEAL DE MONTMORENCY , levantando-se do cravo
Era belo, o minuete!
CARDEAL RUFO, sorrindo
É que, para vencer
Nesse jogo floral uma simples mulher
Parece-me demais a sua meia hora…
CARDEAL DE MONTMORENCY
Oh! Pois acha, Eminência?
CARDEAL RUFO
O espírito… demora!
Trinta e tantos brigões, fortes e resolutos,
Venci eu, a poder de espada, em dois minutos!
CARDEAL DE MONTMORENCY, ao CARDEAL RUFO
Seguisse a Niña Boba… A Eminência veria…
Passava a meia hora e não a venceria!
Ao CARDEAL GONZAGA, que pensa, em êxtase:
A Eminência que diz?
CARDEAL RUFO, acercando-se também
do CARDEAL GONZAGA
Em que pensa, cardeal?
CARDEAL GONZAGA, como quem acorda, os olhos cheios
de brilho, a expressão transfigurada
Em como é diferente o amor em Portugal!
Nem a frase subtil, nem o duelo sangrento…
é o amor coração, é o amor sentimento.
Uma lágrima… Um beijo… Uns sinos a tocar…
Uma parzinho que ajoelha e que vai se casar.
Tão simples tudo! Amor, que de rosas se inflora:
Em sendo triste canta, em sendo alegre chora!
O amor simplicidade, o amor delicadeza…
Ai, como sabe amar, a gente portuguesa!
Tecer de Sol um beijo, e, desde tenra idade,
Ir nesse beijo unindo o amor com a amizade,
Numa ternura casta e numa estima sã,
Sem saber distinguir entre a noiva e a irmã…
Fazer vibrar o amor em cordas misteriosas,
Como se em comunhão se entendessem as rosas,
Como se todo o amor fosse um amor somente…
Ai, como é diferente! Ai, como é diferente!
CARDEAL RUFO
Também vossa Eminência amou?
CARDEAL GONZAGA
Também! Também!
Pode-se lá viver sem ter amado alguém!
Sem sentir dentro d’alma – ah, podê-la sentir! _
Uma saudade em flor, a chorar e a rir!
Se amei! Se amei! _ Eu tinha uns quinze anos, apenas.
Ela, treze. Uma amor de crianças pequenas,
Pombas brancas revoando ao abrir da manhã…
Era minha priminha. Era quase uma irmã.
Bonita não seria… Ah, não… Talvez não fosse.
Mas que profunda olhar e que expressão tão doce!
Chamava-lhe eu, a rir, a minha mulherzinha…
Nós brincávamos tanto! Eu sentia-a tão minha!
Toda a gente dizia em pleno povoado:
“Não há noiva melhor para o senhor morgado,
Nem em capela antiga há santa mais santinha…”
E eu rezava, baixinho: “É minha! É minha! É minha”
Quanta vez, quanta vez, cansados de brincar,
Ficávamos a olhar um para o outro, a olhar,
Todos cheios de Sol, ofegantes ainda…
Numa grande expressão de dor:
Era feia, talvez, mas Deus achou-a linda…
E, uma noite, a minha alma, a minha luz, morreu!
Numa revolta angustiosa:
Deus, se ma quis tirar, p’ra que foi que ma deu?
Para quê? Para quê?
CARDEAL DE MONTMORENCY, ao vê-lo
erguer-se, amparando-o:
Oh! Eminência…
CARDEAL RUFO, curvando-se também para o amparar,
comovido:
Então…
CARDEAL GONZAGA
Ai! Pois não via, Deus, que eu tinha coração!
CARDEAL RUFO
Eminência
CARDEAL GONZAGA, caindo sobre a cadeira, a soluçar
Não via! Ah!, não via! Não via!
Julgou que de um amor outro amor refloria,
E matou-me… E matou-me!
CARDEAL DE MONTMORENCY
Eminência…
CARDEAL GONZAGA
Afinal, LITERATURA