O ‘evangelho ostentação’ que põe neon e futilidade na cruz

09 junho 2024 às 12h12

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Recepção com café e soda italiana, longas filas para entrada, ambiente com paredes negras e luz neon, slogans em inglês e anfitriões vestindo grifes. Uma descrição precisa de uma boate ou clube social em um bairro de classe média alta, recebendo os frequentadores em um sábado à noite. Mas não: trata-se de uma igreja. Não que o conceito da estética, de aparência, tenha algum problema, não é isso. A questão está no fato, justamente, de uma igreja TER e ostentar um conceito estético, e que diz: “Nós temos um público-alvo, e apesar de dizermos o contrário, você pode não estar nele”.
A tal igreja aqui descrita viralizou recentemente na internet – chamou atenção, inclusive, seu perfil no Instagram. Após rolar o feed, é preciso voltar ao início para se certificar de que realmente se está no perfil de uma igreja, e não de uma franquia Zara. Em uma das publicações, é possível ler de uma internauta: “Achei que era um shopping novo”. Mas não é uma exclusividade nesse fenômeno: o de igrejas que fizeram de seus templos um grande clube social, “vi-ái-pi”, com ostentação, aparências brilhantes e aquele ar de “jovens descolados”.
Eis o principal argumento dessas churches que, por óbvio, quase que obrigatoriamente, trazem termos em inglês no nome: atrair o público jovem e “falar do evangelho em uma linguagem que eles entendam”. Claro, aqui falamos de “alguns jovens”, não todos. Afinal, se uma igreja adota um estilo aesthetic, espera atrair um público que se encaixe naquilo. Aos outros, não é proibida a ida, e nem é necessário. Assim como um shopping localizado em um bairro nobre da zona Sul de São Paulo sinaliza o perfil de sua clientela pela imagem que projeta, o mesmo faz uma igreja que, para divulgar sua marca, usa jovens que parecem ter acabado de sair da campanha de marketing da coleção de outono da Prada.
Os cultos são um caso à parte. Luzes, euforia e dinâmicas motivacionais, tudo isso guiado por um líder normalmente jovem, carismático e estiloso. A pregação vira um misto de palestra coaching e frases de efeito, um conjunto endossado por uma interpretação business mindset do evangelho.
É preciso destacar: esse fenômeno e a maneira com a qual ele ocorre não é nenhuma novidade. C.S. Lewis – sim, aquele Lewis – sintetiza bem em seu livro Cristianismo Puro e Simples, da década de 40: “A maioria de nós não examina o cristianismo a fundo para descobrir o que ele realmente diz: nós o abordamos na esperança de encontrar nele apoio para as nossas próprias perspectivas partidárias. Estamos mesmo à procura de um aliado onde, na verdade, nos é oferecido um mestre ou um juiz”. E acaba que, nisso, aquele homem que andou pela Galileia, acompanhado de marginalizados e os defendendo das investidas da elite da época, pregando tolerância, humildade, proteção aos vulneráveis e o desapego às coisas materiais, se torna uma branding, o selo de uma grife.
Em fevereiro deste ano, uma jovem de cabelos cacheados, voz serena e doce, viralizou ao subir em um palco e, de olhos fechados, cantar as palavras: “Fazemos campanhas pra nós mesmos/Eventos pra nós mesmos/ Estocamos o maná para nós/ Oramos por nós e pelos nossos/ O Reino virou negócio”. Entoadas com gentileza, as palavras ressoam com a incandescência de um ferro em brasa, mas ainda ofuscadas pela luz neon que colocaram na cruz de Cristo, que, em sua essência original, é pura e simples de madeira crua, tocável e acessível a qualquer um que seja.
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