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Li, nalgum lugar, que poesia não vende. Duvido. Porque as editoras — como a Iluminuras, a Relicário, a Companhia das Letras, a Todavia, entre outras — persistem lançando livros de poetas patropis e globais. Pode até ser que prosa venda mais, mas nós, brasileiros — os russos dos trópicos —, apreciamos a arte dos grandes bardos.

A seguir, elaborei uma lista com livros de poetas que, se quiserem, os leitores poderão comprar para presentear aos amigos e conhecidos no Natal e no Ano Novo.

Claro, há muito mais e, como se sabe, todas as listas são lacunares. Deixei de fora bardos que me são caros — como Walt Whitman, Emily Dickinson, William Carlos Williams, Wallace Stevens, Marianne Moore, Elizabeth Bishop, Edival Lourenço, Yêda Schmaltz (a melhor poeta que saiu do Grupo de Escritores Novos-Gen), Audre Lorde (aprecio sua fúria engajada; sua poesia é para cérebros fortes e preconceitos fracos), Sylvia Plath (a “Poesia Reunida”, com tradução de Marília Garcia, é de excelente qualidade), João Cabral de Melo Neto, Ana Cristina César, Regis Bonvicino (um poeta superior ao mitificado Augusto de Campos, que, por sinal, quiçá de maneira irônica, nem se considera poeta, e sim “intérprete”. O livro de Regis é “A Nova Utopia”), Bruno Beber (“Veludo Rouco”), Roberto Piva (Morda Meu Coração na Esquina”), Louise Glück, Edival Lourenço, Aidenor Aires, Gilberto Mendonça Teles, Pio Vargas, Oswaldo de Camargo (“30 Poemas de um Negro Brasileiro), Angélica Freitas.

Em tempos de populismo literário (Carolina de Jesus está sendo transformada praticamente em par literário de Lima Barreto, o que, claro, não é. Pagu vai acabar se tornando maior do que Oswald de Andrade), os livros listados abaixo são um alento… É boa poesia.

1

Poemas e Elegias — José Décio Filho

Dizem que José Décio Filho (1918-1976) “enlouqueceu” — era “esquizofrênico” — e teria chegado a andar nu pelas ruas de Goiás. No poema “Os loucos” ele menciona “meus irmãos, párias sem consolo”.

O que importa mesmo é que sua poesia é de uma lucidez extrema, de uma beleza que lembra, aqui e ali, a poesia de Hölderlin, embora os escopos sejam diferentes, é claro. De acordo com Gilberto Mendonça Teles, citado pelos autores da apresentação, a poesia do bardo goiano é “marcada por um vínculo profundo de beleza e imensa amargura pessoal”.

Mesmo doente, José Décio Filho articulou, em 1954, o 1º Congresso Nacional de Escritores, em Goiânia, e foi presidente da União brasileira de Escritores-Seção de Goiás.

Transcrição do poema “Os Loucos”: “Como todos os meninos,/ eu temia os loucos./ Mas me aprazia olhar/ seus estranhos olhos/ fixos em alguma coisa/ que de longe os atraía/ como um poço fundo/ de mórbido segredos./ E aqueles gestos ríspidos/ de braços automáticos/ como que esgrimindo/ como um fantasma elétrico.// Uma vez me contaram/que os loucos não dormiam;/ passavam a noite inteira/ dialogando com a sombra/ e vigiando o cadáver/ de suas próprias almas,/ que os espíritos daninhos,/ habitantes do espaço,/ queriam carregar./ Em busca do mistério,/ eu me ditava, insistente,/ ideias caprichosas/ sobre aqueles seres/tão desconfortados/e presos para todo o sempre/ em nuvens muito espessas/ de lentas agonias./ No fundo, sem o saber,/eu vivia perigosamente/ os tormentos sem fim/ desses meus irmãos,/ párias sem consolo.// Profundas confusões/estrangulavam seus sonhos/ —cogumelos noturnos/germinando aos milhões/no subsolo do ser.// Ó loucura — sol do caos/e luar de abismais sepulcros!/ Ó loba faminta a uivar/ pelas noites do mundo!/ entrega à morte teus filhos:/eles serão anjos errantes/ ou santos às avessas/ amordaçados na terra/ entre os homens sensatos!”.

A primeira edição de “Poemas e Elegias” foi publicada em 1953 — há 70 anos. A nova edição saiu, em 2014, graças ao empenho de Sérgio Marinho e Mário Zeidler Filho,

Editora Caminhos, 127 páginas.

2

Dupla Noite — Lezama Lima

Cuba, uma ilha menor do que Goiás, tem uma poeta gigante: José Lezama Lima (1910-1976), autor de “Paradiso” (Estação Liberdade), o mais importante romance da história da literatura da ilha. É um livro que fica de pé e não pede bênção para “Madame Bovary”, de Flaubert, “Em Busca do Tempo Perdido”, de Proust, “Ulysses”, de Joyce, “O Som e a Fúria”, de Faulkner, “A Montanha Mágica”, de Thomas Mann, e “Grande Sertão: Veredas”, de Guimaraes Rosa.

O leitor brasileiro tem uma sorte infinita: “Paradiso” chegou às suas mãos numa tradução escorreita de Josely Vianna Baptista. A tradução é tão boa, dialoga tão bem com o original, que fica-se com a impressão de que Lezama Lima escrevia não em espanhol, e sim em português. Sua linguagem barroca — e para além do barroco — brilha intensamente na língua de Graciliano Ramos e Clarice Lispector.

Se se tem “Paradiso”, o que falta: a poesia finíssima de Lezama Lima? Não falta mais. O leitor brasileiro agora tem acesso a “Dupla Noite — Antologia Poética”, com seleção e tradução (precisa) de Adriana Lisboa e Mariana Ianelli.

Confira a perícia de Adriana Lisboa e Mariana Ianelli: “Ah, que tu escapes no instante/ em que já havias alcançado tua melhor definição./ Ah, minha amiga, que não queira crer/ nas perguntas desta estrela recém-cortada,/ que vai molhando suas pontas em outra estrela inimiga./Ah, se pudesse ser certo que à hora do banho,/ quando numa mesma água discursiva/ banham-se a imóvel paisagem e os animais mais finos:/ antílopes, serpentes de passos breves, de passos evaporados,/ parecem entre sonhos, sem ânsias, levantar/ os mais extensos cabelos e água mais lembrada./ Ah, minha amiga, se no puro mármore dos adeuses/ tivesses deixado a estátua que nos podia acompanhar,/pois o vento, o vento gracioso,/se estende como um gato para se deixar definir.”

Selo Demônio Negro, 172 páginas.

3

Poemas, Solilóquios e Soneto — Edna St. Vincent Millay

A americana Edna St. Vincent Millay é uma grande poeta e foi traduzida no Brasil (e em Portugal), de maneira esparsa, por Carlos Drummond de Andrade (“Canto fúnebre sem música”), Jorge Wanderley (sua versão para “Lamento sem música” é belíssima), Breno Silveira (“O mundo de Deus”), Alphonsus de Guimaraens Filho (“Canto fúnebre”), Sérgio Milliet (“Os lábios que meus lábios beijaram”), Anna Amélia de Queiroz Carneiro de Mendonça (“Soneto II”), Paulo Vizioli (“Eu logo o esquecerei, meu bem”, “Lamento” e “Primavera”), José Lira (“Viagem”), Vasco Graça Moura (“Que lábios já beijei, esqueci quando”), Jorge de Sena (“What lops my lips have kissed”), Rodrigo Garcia Lopes (“O amor não é tudo”) e Paulo Mendes Campos (“O amor não é tudo”. Primeira estrofe: “O amor não é tudo: nem carne nem/ bebida, nem é sono, lar da gente,/ nem a tábua lançada para quem/ se afunda e volta e afunda novamente”.

Mas ousadia mesmo coube a Bruna Beber, responsável pela tradução (e organização) de vários poemas, reunidos no livro “Poemas, Solilóquios e Sonetos”. A perícia da tradutora é visível. A poesia de Edna St. Vincent Millay parece simples, mas é um engano. Porque é complexa e impõe dificuldades ao tradutor, sobretudo se apressado. Bruna Beber, poeta, se sai muito bem da empreitada. Na apresentação, assinala: “Chega ao país de 2022 a primeira antologia brasileira de Vincent, de cuja lira ressoa o romantismo extemporâneo mais vigoroso do grão da vida: amor e morte”.

Confira o poema “Tristeza”, na versão de Bruna Beber: “Tristeza, chuva permanente/ Que venceu meu coração./ Pessoas retraídas, dor senciente —/ Mas o amanhecer sempre reprisa;/ Não exalta nem ameniza,/ Não cessa nem faz concessão.// Elas se vestem e rumam à cidade;/ Eu fico aqui sentada./Meu pensamento é tardo, sem claridade:/ Se estou de pé ou pensa/O vestido não faz diferença/Nem o sapato que me agrada.” O poema “O amor não é cego” é belo e ganhou uma tradução praticamente perfeita.

A biografia “Edna St. Vincent Millay — Belleza Salvage” (Circe, 639 páginas, tradução de Beatriz López-Buisán), de Nancy Milford, é essencial para entender tanto sua vida quanto sua obra — o quão estão impregnadas.

Diz-se que há poetas e indivíduos à frente de seu tempo? Talvez não seja bem assim. Há poetas que enfrentam seu tempo — e a obra de outros bardos — em busca, quem sabe, de tempos mais memoráveis e complexos, não necessariamente melhores (ficções utópicas ou distópicas). Nancy Milford assinala, na página 11: “Edna St. Vincent Millay foi a precursora da nova mulher. Fumou em público quando era ilegal que as mulheres o fizessem, viveu em Greenwich Village durante os dourados dias da deslumbrante boemia, se deitou com homens [por exemplo, o crítico literário Edmund Wilson] e mulheres e sobre isso escreveu versos e sonetos de uma flamante sabedoria e uma ousadia sexual que cativou a nação inteira”. Ela foi a primeira mulher a ganhar o Prêmio Pulitzer de Poesia.

Editora Âyiné, 271 páginas

4

Meditações — Jamesson Buarque

Há um poeta circulando pelas ruas deste Brasil, desta Goiânia. Trata-se de Jamesson Buarque. É um grande poeta. “Meditações” é um livraço — editado com capricho e leveza pela Editora Martelo (o poema longo “Depois de hoje” aparece disposto na parte interna da contracapa) — que merece mais repercussão no país.

Quando penso na poesia de Jamesson Buarque lembro-me, de cara, tanto da poesia do britânico John Donne quanto da poesia de Konstantinos Kaváfis. É possível que haja um quê do grego — ou da cultura do poeta que nasceu em Alexandria — nos poemas reflexivo-existenciais do bardo recifenho de 50 anos.

Jamesson é, por assim dizer, o típico modernista (filho de Mallarmé) que dialoga, indo além — não se perdendo em passadismos —, com a cultura clássica. Como se disse: o que o clássico pode sugerir ao moderno e, ao mesmo tempo, como o clássico pode renovar o moderno.

Na nota editorial, Miguel Jubé cita a poesia meditativa, “cujo primeiro ápice se nos logra com John Donne”; depois, “rechega” com T. S. Eliot, autor, quiçá, do mais importante livro-poema do século 20: “A Terra Devastada”.

Com percuciência, Miguel Jubé frisa que Jamesson Buarque “consegue o refinamento de uma poesia filosófica (diga-se igualmente meditativa) à vera filosofia experimentada por aqueles que se entregam efetivamente à existência do ser humano — a meditação própria da práxis e da matéria”.

O poema “Da separação” seria um homenagem direta ou indireta a João Cabral de Melo Neto: “À precisão das facas/cabe às cartas/ destinatário e endereço certo”.

“Da expectativa de vida” inicia-se assim: “A cada dia, amanhã novamente e hoje e a esperança/Se mais velhos ontem, ainda mais velhos hoje/ e amanhã a morte, seja a distância do horizonte”. Recolho apenas um trecho e, por isso, recomendo ao leitor que avance e, quando puder, leia mais, o todo.

Uma das curiosidades do poemário de Jamesson Buarque é que, em alguns poemas, trechos parecem autônomos. Se cortados, resultam num poema vivo, independentemente do seu complemento.

Colho um poema inteiro, “Da permanência”: “Quando a gente não pode mais amanhecer/nem dorme, inverte as auroras/ enxerga os círculos quadrados/ parece criança fazendo de pedra brinquedo// Quando a gente desiste de morrer, permanece/ na alvura até se fazer de vermelho/ entre as folhas por trás dos ninhos/ parece uma bicicleta se acordando levemente”.

Em “Ainda Marabá” se diz: “Não queria ter unhas nem sentir sono/ As unhas coçam por dentro/ e o sono permite o sonho”.

O longo poema “Canção de Mallarmé” (quase um manifesto estético) vale o livro, digamos assim: “O que era insânia arde em palavras/ Agora e sempre no cerne ou vulva das ilhas (…)// Tudo sempre acaba em livro, Mallarmé:/ A história de uma pessoa é a história do planeta/ Inteiro e arde. (…)// Inclusive é mulher a guerra/ E a paz vem sempre no feminino”.

Em “Meditação dos Dias” se tem: “Não apenas de borracha, de horário e farpas/ os dias são feitos. Os dias também são feitos/ de histórias alheias, de amores, de tropeços/ Os dias também cabem entre os dedos, no imo/ de um poro ou outro de esquecido fóssil de pele”. Adiante lemos: “É necessário mentir muito para respirar fora dos cemitérios/e ela ainda já distante nem finge que aquele existe”. E mais: “Para mentir, convide-se a história/ e molde-se suas vísceras evocando mitos”. O poeta acrescenta que “Todas as dores de uma pessoa/doem mais do que todas as dores/de outra pessoa ou de um povoado/senão dir-se-ia da população inteira/deste planeja, a começar pelos mortos”.

Editora Martelo, 134 páginas.

5

A Invenção do Passado — Ronaldo Costa Fernandes

Numa sentada, numa tarde de domingo, li “A Invenção do Passado”, de Ronaldo Costa Fernandes. É o melhor método de leitura? Talvez não seja. Tanto que, em seguida, fiz uma outra leitura, mais cuidadosa, observando detalhes e a perícia deste poeta que, por certo, merece mais consagração.

A releitura mostra que a força do livro permanece. Aqui e ali, me fez lembrar a poesia de Frank O’Hara. Lembrar não corresponde a sugerir que a poesia do brasileiro deriva da poesia do americano. A lembrança tem a ver como Ronaldo Costa Fernandes lida com mestria com as cousas do cotidiano e transforma as miudezas da vida em boa poesia. Ao mesmo tempo, há uma espécie de diálogo “interno” na poesia, em seu interior. É como se ela estivesse contando, por assim dizer, um conto. Contando a si mesma.

De cara, encantei-me com o primeiro poema, “A invenção do passado”: “Sou apenas personagem/de um sonho do qual nunca sairei./E mesmo acordado,/repetirei as mesmas histórias/que chamarei de passado./Ao nascer sonhei que nasci,/mas ao morrer/se apagarão todas as minhas ações/e os outros lembrarão/ como os sonhos que tiveram/com um personagem/ chamado Ronaldo Costa Fernandes”. Belo, não é?

Mas “A invenção do passado” não é o meu preferido; aprecio demais “Encontro marcado”: “Minha poesia é assim:/ às vezes marca encontro./ Outras, chega atrasada/ e não me conta por onde andou. Tem vezes que a encontro ao acaso./ Tem outras que busco e busco/ nos lugares conhecidos:/ a casa, o trabalho,/ o bar que ela frequenta./ Já a vi no trottoir/ das calçadas de má fama./ Quanto mais ordinária/mais me atrai/no seu comércio do corpo/do verbo/ — o verbo é licencioso —/ou da alma/ — os substantivos/ são mais comuns/na periferia do espírito.// O importante é que venha/ com seu vestido de verbos,/ sua girândola de imagens/e sua perversão pelo sublime”.

Editora: 7 Letras, 105 páginas.

6

Compaixão — Anne Sexton

Conhecida como poeta confessional, embora isto não explique toda a qualidade (e variedade) de sua poesia, a americana Anne Sexton é pouco conhecida no Brasil. Denunciando nosso surrealismo típico, sua biografia chegou antes de sua obra publicada pela Editora Siciliano, em 1994. A antologia “Compaixão” chega agora, em edição da Relicário.

Portanto, é graças ao livro “Anne Sexton — Uma Biografia”, de Diane Wood Middlebrook (1939-2007), doutora por Yale e professora de Stanford, que se tem notícia de sua poesia em português.

Internada várias vezes em clínicas psiquiátricas, Anne Sexton matou-se em 1974, aos 45 anos. Era então uma poeta respeitada tanto pelos leitores quanto pelos críticos.

Na introdução da biografia, seu perceptivo psicanalista, Martin T. Orne, sugere que escrever poesia — vocação despertada em larga medida nas sessões de análise — pode ter retardado sua morte. Aos poucos, de tão apaixonada pelo labor poético, as crises depressivas, que a levavam à vontade de se matar, foram transformadas em arte.

Daí sua poesia tratar a morte e a dor com tanta intimidade. Era amiga de jornada dos poetas Sylvia Plath (as duas conversavam muito sobre poesia e morte), Robert Lowell (seu professor de poesia), George Starbuck, Maxine Kumin e Adrienne Rich.

O tradutor do ótimo livro de Diane Middlebrook, Raul de Sá Barbosa, presta um enorme serviço aos leitores: verte vários poemas para o português, como um de seus mais famosos, “A imagem dupla” (parece incompleto), que transcrevo a seguir: “Não posso perdoar seu suicídio, disse minha mãe./ E jamais perdoou. Mandou pintar meu retrato/ao invés.// Eu vivi como uma hóspede irada,/ como uma coisa remendada, uma criança que cresceu demais./ Lembro-me de que minha mãe fez o que pôde./ Ela me levou a Boston para mudar de penteado./ Seu sorriso é tal qual o de sua mãe, disse o artista.// Com luz do norte, meu sorriso fica no lugar,/ a sombra ressalta meu osso./ O que eu poderia estar pensando, sentada lá, posando,/ tudo o que era eu à espera, nos olhos, na área/do sorriso, o rosto jovem,/ a sedução da raposa./ Com luz do sul, o sorriso dela fica no lugar,/suas faces murchando como uma orquídea seca/ Meu espelho zombeteiro, meu amor arruinado/minha primeira imagem. Ela me olha daquele rosto,/ daquela cabeça pétrea da morte/que eu já deixara para trás./ (…)/ E essa era a caverna do espelho,/ aquela mulher dupla que olha fixamente/para si mesma como se estivesse petrificada./ Lembro-me de que lhe demos o nome de Joyce/ para podermos chamá-la Joy. (…)/ Eu precisava de você. Eu não queria um menino,/ só uma menina, uma ratinha branca como o leite/ já amada (…)/ Eu, que nunca estive inteiramente segura/ de ser uma menina, precisava de outra/ vida, outra imagem, para me certificar./ E essa é a minha culpa maior; você não podia curar/ nem aliviar. Eu a fiz para me encontrar.”

O poema faz referência à mãe de Anne Sexton, Mary Gray, e à filha caçula da poeta, Joyce-Joy. Diane Middlebrook escreve: “O insight profundo do poema é que dentro de tal mãe existe sepultada uma criança que também foi feita como espelho para a necessidade materna de admiração”.

A edição da Relicário conta quase com 90 poemas e a tradução é de Bruna Beber.

Editora Relicário, 376 páginas.

7

Todo Mundo é Ninguém É Todo Mundo — Pettras Felício

O nascimento de um poeta deve ser saudado pelos querubins celestiais? Creio que sim. Pois Pettras Felício é um poeta que “nasce” bom poeta — vivo, ativo, reverberante.

Pettras Felício se sai bem nos poemas curtos, que são difíceis de fazer — porque, se mal operada, a concentração de recursos (a concisão) às vezes pode matar o poema no nascedouro — e no poema um pouco mais longo. Há poetas que se perdem nos poemas maiores, que se tornam desiguais, os fechos em contradição com inícios e meios, e não por modernismo da poética, e sim, frequentemente, por falta de equilíbrio e, mesmo, perícia “técnica”. Não é o caso do poeta comentado, que sabe manter o ritmo, a cadência.

Percebe-se que há filiações poéticas e de ideias — aqui e ali, por vezes, sentimos a voz de Nietzsche, o filósofo, de Guimarães Rosa, o prosador que também foi poeta (menor do que Manuel Bandeira), e de Carlos Drummond de Andrade, o maior poeta brasileiro (seguido, de perto, por João Cabral de Melo Neto).

Leiamos “Acendemos inúteis fogos”: “Como cegos se guiando no escuro/ caminhamos sobre um muro/ e dormir não nos salva de não poder./ Breve, a carne perde seu verniz,/ como o fruto que não viu mão/ encontra colo na indiferença do chão.// Acendemos inúteis fogos/sem alguém à volta,/ como luares se dando em noites/ em que ninguém mira o alto./ Assim vai escorrendo o tempo,/ inconsútil, imperecível,/e a todos toca uma morte/ de querer o impossível.// Como o silêncio,/ o amor só existe se compartilhado/ e qualquer ruído é faca/ cortando a carne de quem mira um risco/ mas só consegue ver as costas”.

O belo título do livro é um poema, digamos um hai-kai — quase um trava-língua.

Editora Kelps, 89 páginas.

9

Cascos e Caminhos — Salomão Sousa

É possível que Salomão Sousa, um dos melhores poetas brasileiros em atividade, tenha livros melhores e, quem sabe, mais bem-elaborados. Mas tenho um apreço especial por “Cascos e Caminhos”. Porque, exatamente, não sei. É um dos livros que mantenho à mão e, em certos dias, abro e leio uma ou dois poemas.

Quem é o poeta Salomão Sousa? Um “filho” de João Cabral de Melo Neto que leu e deglutiu o “bisavô” T. S. Eliot e o “avô” Carlos Drummond de Andrade. É um poeta tão especial — que elabora tanto sua poesia — que a angústia da influência, diria Harold Bloom, pode ser percebida só com muita atenção. Porque nota-se sua identidade, não exatamente a de outros, nas entrelinhas e, por assim dizer, tramas de seus poemas.

Salomão Sousa é o tipo de poeta cerebral, um construtor milimétrico — um engenheiro com a delicadeza do arquiteto —, que sabe que “secura” e “lirismo” não se excluem. Por vezes, um alivia ou reforça o outro. Há um aspecto a ser mais ressaltado pelos críticos: a presença de um humor refinado na sua poesia.

Por que gosto de “Cascos e Caminhos”? Porque, neste livro belo e bem-formatado, Salomão mostra ao leitor que é capaz de fazer poesia a respeito de qualquer tema. Duvido que alguém fique indiferente lendo os poemas “Biografia do natimorto”, “Biografia do jirau em dois tempos”, “Biografia das bordas”, “Biografia da margem”, “Biografia da estrada”, “Biografia do casco do cavalo, “Biografia do balcão”, “Biografia das muitas mortes” (“Alguém acorda cedo na estreia de envelhecer/sem esperança de virar herói, para montar a esteira”), “Biografia da cidade invisível”, “Biografia do berne”, “Biografia do indivíduo”.

Faço a colheita do poema “Intervalo para o vento”: “Até o tempo é uma mercadoria/ que vem junto com o pacote de viagem./ Se não temos o interesse de uma semente/a chuva traz prejuízo e desgaste./ Mas também se somos ácaro/ melhor para sobreviver é a borrasca./Pouco me importa qualquer céu,/ de nublagem, cântaros, sol forasteiro./Dentro de mim é somente o húmus/que quer ser alimentado de qualquer vento/que se apresente à minha porta./Talvez eu me sinta uma semente/rejuvenescida com a fúria do vento molhado/e me enfureça se diante do sol/eu nasça revestido de ácaro.”

10

Mestre dos Disfarces — Charles Simic

Poeta da Iugoslávia (Sérvia), onde nasceu, poeta dos Estados Unidos, onde viveu e morreu, Charles Simic (1938-2023) ganhou excelente tradução de sua poesia, por Maria Lúcia Milléo Martins, e de sua prosa e ensaio, por Maysa Cristina da Silva Dourado. As duas, por sinal, mantiveram contato com o bardo.

Além da tradução cuidadosa, o prefácio de Maria Claro Paro e a introdução de Maria Lúcia e Maysa Cristina são esclarecedores, essenciais como porta-de-entrada na poesia de Charles Simic, espécie de poeta que, visualizando as miudezas da vida, compreendia o todo com precisão e perspicácia.

Maria Claro Paro assinala: “Sua poética é de concisão. (…) Sua temática variadíssima inclui aspectos da vida urbana e do mundo moderno, acontecimentos corriqueiros como também reflexões políticas e filosóficas”. A crítica esclarece que “o disfarce, em poesia, é usado para revelar”.

Maria Lúcia e Maysa Cristina postulam que, “alquimista de miudezas”, “Simic compõe sua arte com brinquedos velhos, luvas esquecidas, trens abandonados e outros objetos corriqueiros, impregnados de história e mistério”.

Confira o poema “Questionário da madrugada”: “Charles Simic tem medo da morte?/ Sim, Charles Simic teme a morte./ Reza para o Senhor lá em cima?/ Não, vadia com sua esposa.// Sua consciência o incomoda muito?/ Aparece para um bate-papo vez ou outra./ Está pronto para encontrar seu Criador?/ Tanto quanto um esquilo atravessando uma estrada.// Como lata de cerveja vazia sendo chutada/ Por algum jovem muito chapado/ De uma rua escura para outra/ Ele tropeça e cai nesse meio tempo.”

Editora: 7Letras, 181 páginas.

11

A Lírica Poética da Manhã Que Chega — Sônia Elizabeth

“A Lírica Poética da Manhã Que Chega (ou um Tango Noturno Para o Anjo Aquiles)”, de Sônia Elizabeth Nascimento Costa, é um dos melhores livros de poesia publicados no Brasil nos últimos anos. Sua média é alta. Sua poética é quase um projeto literário. A poesia é lírica? Qual não é, afinal? Mas há dúvida, um ceticismo distanciado, a respeito do lirismo, ao menos de certo lirismo.

Sônia é, afinal uma poeta engajada? Como todos os poetas, os que preferem o “terreno” aos, digamos, “céus” (limpinhos e, por vezes, desumanos). Mas a poesia a salva do discurso meramente engajado, de circunstância. A política, a crítica, não opera como uma espécie de apagamento do estético.

Há poemas que sozinhos valem o livro, como o que apresento a seguir, na íntegra: “De um Deus lírico que contempla o sol,/ Ausento-me. Pouca poesia./ Mas o lamento dos justos sei todos,/ As cuias vazias de alimento./ Sei do trágico pudor dos malditos,/ A febre que chega e rouba a farta/ Dimensão da esperança.// Sei de tudo sem estar na alma/ Dos descontentes. A pátria dos forjados,/ Os que tecem e rodam moinhos/ Ainda antigos./ Nenhuma escravidão foi dilacerada./ Estamos ausentes, perambulando/ Pelas escadas. Nossa pouca gente/ Viciada em algozes e mitos./O chão podre das encruzilhadas./ Precipício.”

Editora Penalux, 93 páginas.

12

A Alma das Palavras — Gabriel Nascente

O subtítulo do livro é “Ou Lições Que Nada Ensinam”. Trata-se de uma obra belíssima, de autoria de um dos maiores poetas do país.

A obra é uma espécie de carta a um jovem poeta e a não-jovens leitores… praticamente ao modo de Rilke (por sinal, o vate goiano cita Mallarmé e Lorca). Poesia não se ensina em oficinas literárias, por certo, e, teoricamente, o bardo de 73 anos não é um esteta didata (“Eu sei, eu sei, o que/sinto não ensino”). Mas, pelo exemplo, com boa poesia, ele vai, de alguma maneira, educando possíveis poetas e, também, leitores comuns, os que não escrevem e não planejam escrever poesia. Sua poesia pega os quase-poetas e os ledores pela mão e sugere: vamos lá, veja como se faz para as palavras dançarem e dizerem o inaudito.

Diz-se, aqui e ali, que Gabriel Nascente produz em excesso, o que é vero, porém mal trovado. Porque relevante mesmo é que sua média de qualidade é alta. Há uma regularidade impressionante na sua produção. Trecho de “Imanência”: “As palavras não precisam de pernas./ Só precisam de alma. E de cristais/ para o motor de tuas asas.// As palavras são crianças/Soprando vagalumes/na floresta dos sinônimos”.

Adiante, Gabriel Nascente assinala: “As palavras são crianças/ que voam de boca em boca./ E só se libertam quando/ rompem as cascas/ de teus mistérios”.

Para o bardo do Cerrado a poesia é tijolo, cimento, areia e mão. Mas só pode ser arquitetada com o tempero das palavras.

“Pelo bem, pelo mal/consertar a alma/ninguém pode”, diz o poeta. Ecos de Isaiah Berlin e John Gray, quem sabe. O fato é que os poetas são filósofos das palavras e chegam antes às certezas instáveis.

Há um não decidido ao melodrama: “Esteticamente as emoções/bagunçam tudo”. Eis o mestre ensinando: “E descubras se a palavra está/de jeito para caber na imagem”. Em seguida, “Não faças poesia/quando a luz estiver enferma”. A rigor, poesia não é só uma cousa: “A poesia é ‘haste de mil lírios’”. Gabriel Nascente sugere que há, até, espaço para os bardos parnasianos — tão discriminados pela leitura-ditadura modernista.

Cabe a transcrição de um poema inteiro (e arrisco a dizer que, apesar das divisões, os poemas são, possivelmente, um único poema): “Cada poeta é um/pescador de almas.// A poesia é onde as palavras/se acasalam em seu ninho/ de suspiros semânticos,/ umas se nutrindo das outras,/numa impulsão de linguagem/ porejando amor./ Luz que fecunda/o parto das imagens.// Se ouves uma trenodia/ de adeus, isso é emoção/que abre feridas no poema.// Sentir não é ciência,/é ter ouvidos às pulsações da alma.// E não saber donde brota/o tumulto das lágrimas,/também é poesia”.

Editora Kelps, 75 páginas.

13

O Tempo Adiado e Outros Poemas — Ingeborg Bachmann

A poeta austríaca Ingeborg Bachmann (1926-1973 — viveu 47 anos) chegou ao Brasil da melhor maneira possível. Primeiro, com traduções de qualidade — um mérito de Claudia Cavalcanti. Segundo, devidamente apresentada… pela tradutora, também autora da seleção.

A poesia complexa de Ingeborg Bachmann é muito bem explicada por Claudia Cavalcanti. Pode-se sugerir que, ao analisá-la, de maneira quase didática, nos agarrando pelas mãos, a crítica não retira sua complexidade — acentua-a. Porém, ao fazê-lo, torna-a mais, digamos, inteligível.

Não se pense que Ingeborg Bachmann foi apenas a namorada do poeta romeno Paul Celan. Na verdade, como poeta, era um par, e com uma formação filosófica ampla — uma estudiosa do pensamento de Heidegger e Wittgenstein, que levou para sua poesia e para sua prosa (é autora do romance “Malina”).

“Vocês, palavras” é um dos mais importantes poemas de Ingeborg Bachmann. Transcrevo o trecho inicial: “Vocês, palavras, levantem, sigam-me!,/ e quando já tivermos ido mais longe,/ longe demais, iremos ainda/ mais longe, isso não tem fim.// Não há luz à vista”. No fim se escreve: “Nenhuma palavra de morte,/ vocês, palavras!”.

“De verdade” é oferecido à poeta russa Anna Akhmátova: “Quem nunca se abateu pela palavra,/ e digo-lhes,/ quem só sabe cuidar de si/e com as palavras —// desse não há como cuidar. Pelo caminho curto não, e não pelo longo”.

Claudia Cavalcanti também traduz um dos mais conhecidos poemas de Ingeborg Bachmann — “A Boêmia fica na beira do mar”. Recolho dois trechos: “Se a Boêmia ainda fica ao mar, volto a crescer em mares./ E se ainda creio no mar, então creio na terra.// Se sou, então cada um é tanto quanto eu./Não quero nada mais para mim. Quero ir ao fundo. (…)// No fundo, agora, e estou imperdido”.

Autor do romance “Extinção: Um Declínio”, Thomas Bernhard disse, em 1978, que Ingeborg Bachmann era “a mais inteligente e importante poeta que nosso país produziu neste século” (o 20). Claudia Cavalcanti relata que, no livro citado, “Bernhard a incorporou na poeta Maria”.

Editora Todavia, 203 páginas.

14

Poesia Completa — Samuel Beckett

A literatura e o teatro do escritor irlandês Samuel Beckett são complexos e exigem um leitor que, atento, saiba que precisa buscar o auxílio da crítica para decifrá-los. E a poesia do gênio literário que escrevia em inglês e, praticamente como um nativo culto, em francês? É igualmente difícil, o que não quer dizer inacessível.

Felizmente, a poesia de Samuel Beckett chega ao Brasil numa edição bem cuidada, com aparato crítico relativamente adequado. Primeiro, a tradução de Marcos Siscar e Gabriela Vescovi é de primeira linha, sem ranhuras, ainda que, aqui e ali, com certos estranhamentos. Como é bilíngue, o leitor pode verificar os acertos — muitos — e possíveis falhas ou, quem sabe, insuficiências.

Segundo, a apresentação de Marcos Siscar é esclarecedora (assim como as notas, de autoria dos dois tradutores). De cara, o professor da Unicamp assinala: “Em tradução, o desafio é exatamente aquilo que pede para ser aceito. (…) A produção em versos de Beckett permanece um campo pedregoso. (…) Optamos por um espírito de clareza mínima na concatenação dos textos, com liberdade de invenção, quando necessária, e também pelo respeito às escolhas e formulações do poeta, considerando-se suas elipses, a formulação ousada das imagens e a própria heterogeneidade da pontuação, muitas vezes inexistente”.

Eis o poema “já era hora amor”: “já era hora amor/ hochzeit amor de altar/ de repousar aos pés teus trajes bem cingidos/ escale a montanha alta e traga o escroto todo de ardis/ como aquele bardo priápico que fez/ em arras de seu ser apenas/ sujeira no chão sujo/ de sua capela agora estábulo/ nas barrancas do Loire/ onde agora reis magos e um rastelo/ incessantes o despertam/ exceto na colheita quando o último está ausente// pode ser uma planta/ mas/ lágrimas suprimindo os riscos/você com tempo de exposição você/ chora dentro do chapéu// então o enxofre há de emprestar sua chama/o junípero na pira crepitar/ a máquina de fiar afogar-se/ vermute e verbena vedaram velhas pústulas/ o óleo de vitríolo cobrir a terra/ crescendo com o bric-à-brac dela/ a beleza descamar-se louca no vendaval/ o pássaro rompendo a casca da gaiola/ pombo esporrando pelo bico ágil depenado/ e anteros/ nuvem de chuva tardia/ pôr a lua”.

Nota dos tradutores: “A expressão ‘high time’ não deixa de ser a ‘tradução’ das duas partes da palavra alemã Hochzeit, em contexto sintático distinto alterando seu sentido; hochzeit (com letra minúscula no início) significa ‘casamento’ em alemão; aqui, parece justapor os temos hoch, ‘alto’, ‘elevado’, e Zeit, ‘tempo’”.

Editora Relicário, 294 páginas.

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Também Eu Danço: Poemas — Hannah Arendt

Certo: Hannah Arendt não era nenhuma Emily Dickinson, Marianne Moore ou Elizabeth Bishop. Era filósofa e, como tal, pensava e escrevia muito bem — com uma clareza que supera, de longe, a alta filosofia alemã (tão densa quanto complicada). Mas, sim, a autora de “A Condição Humana” escreveu poesia, e de relativa qualidade (assim como Walter Benjamin, filósofo alemão que ela admirava). Poemas de sua autoria podem ser lidos em português em biografias. Agora, sua criação artística saiu no Brasil pela Editora Relicário (séria concorrente da Iluminuras ao “título” de melhor editora de poesia do país).

A editora Piper Verlag publicou, em 2016, uma coletânea com 71 poemas de Hannah Arendt — “Eu Mesma, Também Eu Danço”. A Relicário publica uma edição bilíngue, com tradução (e comentários) de Daniel Arelli. Escritos entre as décadas de 1940 e 1960 (especificamente, 1961), os poemas ressaltam diferentes tempos da produtiva vida da filósofa, desde os anos de formação intelectual ao exílio no país de Mary McCarthy.

Transcrevo o poema “A noite me envolveu”: “A noite me envolveu/ Macia como o veludo, pesada como a tristeza./ Em parte alguma há uma rebelião surgindo/ Na direção de nova alegria e tristeza. / E a distância que chamou para mim,/ Todos os ontens tão claros e profundos,/ Eles não mais estão me distraindo./ Conheço uma água grande e estranha/ E uma flor a quem ninguém dá nome./ O que pode destruir-me agora?/ A noite me envolveu/ Macia como o veludo, pesada como a tristeza.”

Na opinião de Elizabeth Young-Bruehl, este é um dos melhores poemas de Arendt. A biógrafa escreve: “Nesse poema, Hannah Arendt procurou alcançar aquele reino em que os poetas românticos alemães haviam descoberto coisas tais como a ‘flor azul’ inominável e vários mares não mapeados — uma paisagem de outro mundo e outra transcendência”.

O poema figura no livro “Hannah Arendt — Por Amor ao Mundo” (492 páginas), de Elizabeth Young-Bruehl (para mim, a melhor biógrafa da filósofa alemã), publicado pela Editora Relume-Dumará, com tradução de Antônio Trânsito.

Editora Relicário, 228 páginas.

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Evguiêni Oniéguin — Aleksandr Púchkin

“Evguiêni Oniéguin” (tradução de Rubens Figueiredo), de Aleksandr Púchkin, é um romance em versos — iniciado em 1823, aos 24 anos —, que permanece revolucionário. Quer dizer, é prosa poética — ou poesia e, digamos, prosa.

Púchkin é apontado como pai da moderna literatura russa, respeitado por Gógol, Dostoiévski, Tolstói, Turguêniev, Tchekhov e Vladimir Nabokov (que traduziu “Evguiêni Oniéguin” para o inglês, provocando uma briga colossal com o ex-amigo Edmund Wilson, que sabia russo). Todos os citados — e muitos outros — são filhos do poeta e prosador que morreu, num duelo, em 1837, aos 37 anos.

Confira, na tradução de Rubens Figueiredo: “Como ele, a jovem só andava/ No rigor da moda mais cortês./ Mas, sem perguntar o que ela achava,/ Levaram-na ao altar de uma vez./ Para seu desgosto dirimir,/ O marido resolveu partir/ Para suas terras sem demora./ Deus sabe em que companhia, agora,/ Ela chora aos berros, lá, no início./ Por pouco, não se divorcia./Depois, com o trabalho se alivia,/ Se acostuma, alegre em tal ofício./ O hábito é a dádiva mais alta,/ Quando a felicidade nos falta”. Nina Guerra e Filipe Guerra traduzem o final dos versos assim: “O hábito Deus o manda, é verdade,/ para fazer as vezes da felicidade”.

O leitor brasileiro tem uma sorte imensa, pois conta com três traduções de “Evguiêni Oniéguin”, além da citada de Rubens Figueiredo. Em 2020, a Record pôs no mercado a versão do embaixador Dário Moreira de Castro Alves (na apresentação, conta que Púchkin traduziu um soneto do inconfidente Tomás Antônio Gonzaga para o russo, possivelmente a partir do francês), com o título de “Eugênio Oneguin”. A Ateliê Editorial pôs nas livrarias, em 2019, a sua tradução, feita por Alípio Correia de Franca Neto e Elena Vássina, sob o título de “Eugênio Onêguin”. Há também a tradução portuguesa de Nina Guerra e Filipe Guerra, publicada pela Editora Relógio D’Água, com o tírulo de “Eugénio Onéguin”.

Editora Companhia das Letras, 301 páginas.

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A Rosa de Ninguém — Paul Celan

Na biografia “Paul Celan — Poeta, Superviviente, Judío” (Editorial Trotta, 458 páginas, tradução de Carlos Martín e Carmen González), John Felstiner, professor de Stanford, assinala que se trata do “poeta europeu mais significativo do pós-guerra”. Acrescenta que é um “poeta de memória plena”. “Celan se converteu em um poeta exemplar do pós-guerra porque insistiu em registrar em alemão a catástrofe ocorrida na Alemanha. (…) Na medida em que era uma língua que havia sido danada, poderia ser que seu verso reparasse o dano”.

Sortudo, o leitor brasileiro ganhou dois livros, com traduções esmeradas (e apresentações esclarecedoras), de sua poesia: “Ar-Reverso” (Editora 34, 205 páginas, tradução de Guilherme Gontijo Flores) e “A Rosa de Ninguém” (Editora 34, 191 páginas, tradução de Mauricio Mendonça Cardozo). Eis o poema “Salmo”: “Ninguém nos molda outra vez de terra e barro,/ ninguém encanta nosso pó./ Ninguém.// Louvado seja você, Ninguém./ Por ti queremos/ florescer./ De encontro/ a ti.// Um nada/ éramos, somos, continuaremos/ sendo, florescendo:/ a rosa do nada, a/rosa de ninguém.// Com/ o estilete almaclaro,/ o estame celestiárido,/ a corola rubra/ do nosso canto que palavra purpura/ sobre, ó por sobre/ o espinho” (tradução de Mendonça Cardozo).

Há outras versões de Celan em português, como “Cristal” (Iluminuras, 190 páginas, tradução de Claudia Cavalcanti). A Editora Assírio & Alvim publicou “Os Poemas”, com tradução e posfácio de Maria Teresa Dias Furtado. São 1150 páginas.

A Editora Antígona, de Portugal, publicou “Tempo do Coração” (458 páginas, tradução de Claudia J. Fischer e Vera San Payo de Lemos), correspondência de Ingeborg Bachmann e Paul Celan. Sobrevivente do Holocausto, o poeta se matou, em 1970, aos 49 anos. Afogou-se no Rio Sena, em Paris.

Editora 34

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Para Isso Fui Chamado — Czesław Miłosz

Nascido na Lituânia, Czesław Miłosz (1911-2004), Prêmio Nobel de Literatura de 1980, escreveu em polonês. Era um poeta de cultura ímpar, uma espécie de filósofo-ensaísta. Ele foi poeta, romancista, crítico, tradutor (sabia grego, hebraico), ensaísta e editor.

Na apresentação do livro, o tradutor Marcelo Paiva de Souza assinala que, “antes e acima de tudo”, Czesław Miłosz era poeta. O crítico literário polonês Jan Blonski enfatiza “uma energia e uma fecundidade verbal sem paralelo na poesia polonesa”.

Dada sua independência, Czesław Miłosz sofreu perseguição do governo comunista polonês e, por isso, exilou-se na França, em 1951.

Seu livro “Mente Cativa” (284 páginas), publicado no Brasil pela Editora Âyné e traduzido por Eneida Favre, contém, segundo Marcelo Paiva de Souza, uma das mais finas análises “dos mecanismos totalitários”. É um excelente par para “1984”, o romance distópico de George Orwell.

Frise-se que o refinamento estético dos poemas é combinado com uma crítica ácida do totalitarismo comunista, que esmagou a liberdade de gerações de indivíduos.

No poema “O que eu escrevia”, Czesław Miłosz anota: “Todos os belos países,/ todos os seres que desejei/ se ergueram no céu como grandes luas”. No mesmo escrito, diz: “Palavra nenhuma basta para a beleza”.

Em “Hino”, o bardo, que amava a língua polonesa como, certamente, Kafka amava o alemão, assinala: “Os corpos mais belos são como vidro transparente. (…)// O amor é areia bebida por lábios secos./ O ódio, um jarro salgado oferecido ao sedento”.

“Julgamentos” contém belos momentos poéticos: “E é tempo de odiar o que amaste,/ de amar o que odiaste,/ de pisar as faces dos que escolheram/ a beleza sem alarde”.

Um dos mais significativos (e, por certo, doloroso) poemas é “Um pobre poeta”, do qual recolho trechos: “Uns se protegem no desespero, que é doce/Como o tabaco forte, o trago de vodca na hora da perdição./ Outros têm a esperança dos tolos, rósea como um sonho erótico. (…)// A mim, porém, foi dada uma esperança cínica,/Pois desde que abri os olhos nada vi senão clarões e carnificinas. (…)// Pois eu fui aquele que sabia/ E não tirou disso para si qualquer proveito.”

“Em Varsóvia”, diz-se: “Deixai/Aos poetas um instante de alegria,/Ou vosso mundo perecerá”.

O Brasil precisa de mais traduções de Czesław Miłosz, nos vários campos em que escreveu.

Pronúncia de seu nome, de acordo com Marcelo Paiva de Souza: “tchésuaf míuoch”.

Editora Companhia das Letras, 278 páginas.

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Antologia Poética — Alfonsina Storni

A poeta argentina Alfonsina Storni morreu em 1938, aos 46 anos. Se suicidou. Sua poesia chega ao Brasil com tradução de Ezequiela Scapini.

O prefácio, muito bom, é de Sergio Miceli, um dos poucos brasileiros que se aventuram a analisar a literatura argentina (às vezes, ao fazer a defesa de autores engajados, que tinham em vista o “social”, deprecia a poética de um suposto “nefelibata” Jorge Luis Borges). Daí mais apreço a Horacio Quiroga e Alfonsina Storni.

Mas o ensaio de Sergio Miceli, que não foi redigido para o livro, é crítico, não é oba-oba. Ele aponta avanços e os limites da poesia da argentina que nasceu na Suíça. O crítico ressalta que o amadurecimento poético de Alfonsina Storni chega com “Ocre”, de 1925. “Parece ter sobrevindo o plasma entre dicção e experiência. Os poemas de amor desistem dos apelos chorosos de efeito e peitam o enfrentamento sem rebuços do amor carnal.” A poeta e mulher não renunciou nem à poesia nem ao sexo.

Poema “O Morto fugido”: “Acende o sol seu meio-dia e, sozinho,/ se levanta um luto na reclina laje/e o mar estende suas bandeiras verdes/junto à mansão das tendas.// Cortam as horas as prensadas fibras/do tempo e baixa a pálpebra, apagando,/o sol, manchada pela estátua humana,/que arqueia o pescoço na nascida noite;// E ali se está: debaixo da pedra/ um seco monte descarnado/em animais ondas brinca.// Em vão lá fora o choro clama ao morto;/costa abaixo rodando em suas geleiras/nem em gases deletérios responde”.

Editora Coragem, 155 páginas.

20

Antologia de Rio Spoon — Edgar Lee Masters

O crítico e poeta Ezra Pound apreciava a poesia de Edgar Lee Masters (1868-1950), mas não há dúvida de que se trata de um bardo subestimado, quase nada traduzido no Brasil (Paulo Vizioli traduziu dois poemas e Mário de Andrade e Jorge de Lima traduziram um poema).

Ivan Justen Santana traduziu e apresentou “Antologia de Rio Spoon”. Extremamente original, o livro “é uma coleção de poemas curtos em verso livre, que narram coletivamente os epitáfios dos moradores de Rio Spoon, pequena cidade ficcional batizada com o nome do Rio que corre onde Masters passou sua infância e adolescência. A intenção da obra é revelar a vida rural e provinciana dos Estados Unidos”.

Os 246 poemas relatam as histórias, de maneira breve, de 212 personagens. “Muitos dos personagens foram baseados em pessoas que Masters conheceu ou ouviu falar nas duas cidadezinhas onde cresceu: Petersburg e Lewistown, Illinois.

Ann Rutledge, uma das primeiras namoradas de Abraham Lincoln, aparece num poema: “Fora de mim indignas e desconhecidas/ As vibrações da música imortal;/ ‘Com malícia a ninguém, com caridade a todos.’/ Fora de mim o perdão de milhões para milhões,/E a face beneficente de uma nação/Brilhando com justiça e verdade./Eu sou Anne Rutledge que dorme sob essas ervas,/Amada na vida de Abraham Lincoln,/Casada com ele, não através de união,/Mas através de separação./Floresce para sempre, Ó República,/Do pó de meu peito!”

A obra deixou muita gente irritada. “Aqueles que viviam na região do Rio Spoon se opuseram às representações da antologia, particularmente porque muitos dos personagens dos poemas eram baseados em pessoas reais. O livro foi banido das escolas e bibliotecas de Lewistown até 1974”, diz Ivan Justen. A crise cessou: “O cemitério de Oak Hill oferece um passeio autoguiado pelos túmulos que inspiraram os poemas”.

Trecho de “A Colina”: “Onde estão Elmer, Herman, Bert, Tom e Charley,/ O fracote, o forçudo, o palhaço, o bebum, o lutador?/ Todos, todos estão dormindo na colina.//Um faleceu com febre,/ Um foi queimado numa mina,/ Um foi morto numa briga,/ Um morreu numa cela,/ Um caiu duma ponte batalhando o sustento de filhos/[e esposa —]/ Todos, todos estão dormindo, dormindo, dormindo/ [na colina.]”

Editora: Kotter Editorial. 258 páginas.

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Terra e Paz — Yehuda Amichai

A antologia poética de Yehuda Amichai (1924-2000) chega ao Brasil com tradução, organização e apresentação de Moacir Amâncio, professor da Universidade de São Paulo (USP).

Na apresentação, Moacir Amâncio escreve: “Yehuda Amichai é, de longe, o mais celebrado poeta israelense desde o século 20. (…) Dentro de seu país, ele é um marco na conquista do idioma hebraico como língua à altura dos desafios expressivos enfrentados na recuperação e criação de vocabulário aberto às sutilezas e à diversidade da literatura”.

Nascido na Alemanha, nação responsável pelo Shoá (termo hebraico para Holocausto), com o nome de Ludwig Pfeufear, Yehuda Amichai (nome que adotou em Israel) mudou para o Oriente Médio em 1935, fugindo, com a família, dos amplos tentáculos do nazismo de Adolf Hitler.

De acordo com Moacir Amâncio, “Amichai desenvolve intenso diálogo com o passado bíblico, com a Espanha medieval e com a Alemanha natal, na elaboração de um novo universo criativo, que é o hebraico recuperado como literatura respaldada pela condição vernacular.

Yehuda Amichai, que escreveu também romances e contos, era um poeta admirado pelo poeta mexicano Octavio Paz, Prêmio Nobel de Literatura.

Um dos poemas que mais aprecio é “O homem não tem tempo”: “O homem não tem tempo/para tudo na vida./Ele não tem uma época/para cada um de seus desejos./O Eclesiastes não está certo.// O homem precisa odiar/ e amar ao mesmo tempo,/ com os mesmos olhos chorar/ e com os mesmos olhos rir,/com a mesma mão atirar pedras/e com a mesma mão recolhê-las,/ fazer amor na guerra e guerra no amor.// Odiar e perdoar, lembrar e esquecer,/ organizar e confundir, comer e digerir/ o que a história/ faz ao longo de muitos e muitos anos.// O homem na vida não tem tempo./ Quando ele perde ele procura,/ quando ele acha ele esquece,/quando ele esquece ele ama/ e quando ele ama começa a esquecer.// A alma dele é preparada,/é bastante profissional,/somente o corpo é sempre/amador. Tenta e erra,/ não aprende, confunde-se/ bêbado, cego nos prazeres e nas dores.// A morte dos figos é no outono,/ encarquilhados, cheios de si e doces,/ as folhas secam sobre a terra,/os galhos nus já apontam/o lugar onde há tempo para tudo”.

Recomendo também os poemas “Paul Celan” (trecho do poema: “Paul Celan, rumo ao fim, as palavras diminuíram em ti/cada palavra tornou-se tão pesada no teu corpo/ que Deus te largou como carga pesada”), “Quatro poemas sobre a guerra e a paz”, “Jacó e o anjo” e “Depois de Auschwitz” (que, como se sabe, retirou parte da beleza do mundo, mas não o poder de a poesia expressá-la. Talvez Theodor Adorno dissesse isto, hoje).

Editora Bazar do Tempo, 183 páginas.