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Bomba! A Banca de Revistas Santa Mônica vai explodir! Um grupo anticomunista pregou um panfleto na Banca do Marcão, na década de 1980, exigindo que parasse de vender os jornais “Opinião”, “Movimento”, “Hora do Povo”, “Tribuna Operária” e “O Pasquim”.

Filiado ao PC do B, Marcos Araújo, o Marcão do curso de Biomedicina da Universidade Católica de Goiás (UCG) — hoje PUC —, era o dono do negócio que, apesar de ter adotado o nome de uma farmácia vizinha, era conhecido pelo seu nome. Banca do Marcão. O dono da drogaria não apreciava a banca, por avaliar que reunia muito gente e atrapalhava seu negócio. “Lorota. Meus clientes acabavam comprando algum medicamento”, sublinha Marcão.

Assustado, Marcão pediu ajuda ao delegado da Polícia Civil Roberto Stálin (que, falando nisso, não era do PC do B, nem stalinista), que morava no Goiânia Palace Hotel, localizado em frente à banca, na Avenida Anhanguera com a Rua 8, no Centro. Ante um jornaleiro (e comunista) apreensivo, o policial civil disse: “Fique tranquilo. Do meu quarto, vejo a sua banca. Vou ficar de olho. Não vai acontecer nada, eu lhe garanto”. De fato, o comando de caça aos comunistas fez a ameaça, mas não atacou a banca, que continuou vendendo os chamados jornais alternativos (de esquerda). O jornaleiro também vendia livros de autores esquerdistas.

Veja o piso desgastado do local onde, há décadas, Marcão da Banca atende seus clientes, no Goiânia Shopping: sinal de muito trabalho | Foto: Euler de França Belém

A Banca do Marcão congregava leitores de várias tendências ideológicas — da direita à esquerda. Nas quartas-feiras e sábados, notadamente, havia o público aficionado da coluna “Diário da Corte”, assinada pelo jornalista Paulo Francis. Publicada na “Ilustrada”, da “Folha de S. Paulo”, era lidíssima. Mesmo aqueles que não concordavam com as idiossincrasias do novo liberal apreciavam as informações sobre cultura. Ele falava de Philip Roth e Muriel Spark quando poucos leitores patropis conheciam a obras dos escritores americano e escocesa.

Marcão era (e é) comunista (dos mais democráticos que já se viu). Porém, mesmo pertencendo a uma corrente stalinista, dialogava com integrantes de todas as correntes ideológicas, inclusive com aqueles que não pertenciam a nenhuma tendência. Ele era o mestre da simpatia e um namorador inveterado. Sua banca tinha todos os jornais, como “Estadão”, “Jornal do Brasil”, “O Globo”, “Folha”, “O Popular”, “Diário da Manhã” e Jornal Opção e as revistas “Veja”, “IstoÉ”, “Senhor”, “Status”, “Placar” e “Playboy”. “Dependendo da capa, havia fila para comprar a ‘Playboy’. Lembro-me de intelectuais dizerem: ‘A entrevista está excelente’. Porém, quando eu olhava, de soslaio, estavam todos examinando as fotografias das belas mulheres nuas.”

Internet “triturou” as bancas de revistas

A Banca Santa Mônica sobreviveu 29 anos no Centro de Goiânia, como um dos principais points da intelectualidade e dos leitores ditos comuns. “No auge, eu vendia 100 exemplares da revista ‘Cláudia’. Hoje, a banca recebe 10 e vende todos.”

Marcão da Banca exibe exemplares de Asterix e Calvin e Haroldo | Foto: Euler de França Belém/Jornal Opção

Marcão foi dono de uma banca de revistas na Rua 88, no Setor Sul, que repassou para sua ex-mulher, uma advogada.

O passo seguinte foi a instalação de uma banca no terceiro piso, junto com uma lotérica, no Goiânia Shopping, em 1995. “A Ler Revistaria era um sucesso. Vendia, para citar um exemplo, 50 exemplares da revista ‘Veja’”, conta Marcão. “Os jornais locais e nacionais eram muito procurados. Não dava para quem queria. As pessoas se reuniam na banca, à espera de jornais e revistas”, relata.

Porém, de repente, surge um drummond (um “asteroide”, brinca, a sério, Marcão) no meio do caminho — a internet. “Durante algum tempo, até competimos um pouco com a internet, porque algumas publicações eram ‘fechadas’ para não assinantes. Com o tempo, abriram muitas reportagens e, sobretudo, a assinatura digital se tornou muito barata. O quadro se agravou com a pandemia. Revistas foram extintas e aqueles que antes saíam para comprar jornais e revistas passaram a ficar em casa, isolados. Com isso, aderiram, de vez, à internet. A crise da Editora Abril, que levou à extinção de várias revistas, também pesou muito contra o nosso negócio”, diz Marcão. “As novidades não chegam mais às bancas.”

Sabrina Menezes Rodrigues Lopes com suas aquisições | Foto: Euler de França Belém

Cinco “ramos” acabaram nas bancas: revistas pornôs (algumas eram acompanhadas de CDs), ponto e cruz e croché, música cifrada para violão e teclado, games (só resta a “PlayStation”) e jornais. “Deixei de vender jornais porque não há mais o sistema de consignação. Agora, se o jornaleiro não vencer os exemplares, tem de pagá-los. Por isso poucas bancas comercializam jornais”, afirma Marcão.

“Quanto mais a internet fica forte, de maneira incontornável, mais as bancas perdem força. Não é à toa que, brincando, alguns de nós dizem que as bancas são os últimos dinossauros”, diz, rindo, Marcão. “Mas ainda tem público para algumas revistas, como a ‘Veja’ (vendo cerca de 12). Vendo todo os exemplares da revista ‘Piauí’ — 18. Várias pessoas ilustres frequentam a banca, como o ex-deputado federal Aldo Arantes, o professor-doutor da UFG Romualdo Campos Pessoa, o advogado e ex-senador Demóstenes Torres, o historiador Gilvane Felipe (mestre pela Sorbonne), o engenheiro e mestre pela Unicamp Salatiel Correia e o desembargador Roberto Horácio. O filósofo Joel Ulhoa, que foi reitor da UFG, frequentava a banca e apreciava comprar ‘Tex’. O grande leitor de Rousseau via ‘Tex’ como entretenimento. Era uma pessoa simples e um intelectual sofisticado.”

A revista “Piauí” vende bem na Banca do Marcão | Foto: Euler de França Belém/Jornal Opção

Instalada na galeria de serviços, no G1, a banca ainda vende hoje uma série de revistas, muitas delas de qualidade: “Cult”, “Grandes Líderes da História”, “IstoÉ” (chega 7 e a banca vende de 3 a 5), “Veja”, “Piauí”, “CartaCapital”, “Pesquisa Fapesp” (“excelente e barata” — custa 9,90 reais. Marcão é um grande leitor de ciência, assim como era seu falecido primo Ferreira Júnior, repórter e editor do “Diário da Manhã” que todos conheciam como “pré-Google”, de acordo com a definição precisa do jornalista Nilson Gomes), “Forbes”, “Caras”, “IstoÉDinheiro”, “Superinteressante”, “Marie Claire”, “Manequim e “Pais e filhos”.

Marcão diz que as maiores vendas derivam de quadrinhos americanos e mangá. “Vendo muito palavras cruzadas. E também ‘Asterix’ e ‘Calvin’.”

Revistas Caras, CartaCapital, IstoÉ, Veja | Foto: Euler de França Belém/Jornal Opção

O adeus definitivo será no dia 20

Ao receber o repórter do Jornal Opção, Marcão estava vestido como sempre, de maneira simples — com aquela elegância natural, e como se pertencesse a outro tempo. A camisa é listrada e a calça é de um brim escuro — sem grifes. A barba, branca e grande, empresta-lhe um ar mais velho, para além de seus 67 anos. Porém, quando começa a falar, percebe-se a vivacidade mental, a capacidade de discutir qualquer tema, dada sua imensa cultura. Ele foi presidente do PC do B em Goiás por cinco mandatos. Hoje, apesar de continuar no partido, não é mais militante. Continua, porém, um apóstolo das lutas pela igualdade social. Votou em Lula da Silva para presidente e tem “horror” ao ex-presidente Jair Bolsonaro.

A conversa com o Jornal Opção se deu na quarta-feira, 29. Repórter e Marcão falaram durante mais de uma hora, ambos em pé, enquanto ele atendia os fregueses — poucos. Eram compradores de sit pass, de “cruzadinhas” e revistas. O engenheiro Márcio Rezende, de 70 anos, comprou um exemplar da “Scientific American”.

PlayStation: sobrevivente das revistas de games | Foto: Euler de França Belém/Jornal Opção

Engenheiro (aposentado), Márcio Rezende construiu rodovias e ferrovias pelo Brasil afora. “Eu era um grande frequentador de bancas de revistas e comprava várias — menos revistas de mulheres nuas. Mas hoje raramente vou às bancas.”

Sabrina Menezes Rodrigues Lopes, de 29 anos, trabalha no Goiânia Shopping e é cliente da banca do Marcão. “Vou à banca com frequência para comprar palavras cruzadas e a revista ‘Seleções’. Quando fiquei sabendo que a banca iria fechar, fiquei triste, comovida.”

Marcão afirma que os dirigentes do Goiânia Shopping têm apreço por sua banca, que considera como se fosse sua filha mais “velha” (ele é pai de três mulheres, de três casamentos; uma nutricionista, e outra, formada em design, faz arquitetura na Universidade de Coimbra, em Portugal. A caçula, Helena Charlotte, tem 4 anos). “Como estou no shopping desde o início, me considero, portanto, um companheiro de jornada. Fiquei e fico imensamente triste com o fechamento da banca, mas sou realista. Hoje, a banca não é um bom negócio nem para o shopping nem para mim. Cheguei a faturar 60 mil reais por mês. Hoje, não passa de 15 mil reais. Num período, vendia 70 mil reais em sit pass; agora, quando muito, vendo 10 mil reais. Então, o meu negócio não reage e não vai reagir. Portanto, não tenho do que reclamar da direção do empreendimento.”

Tex: o herói do bangue-bangue ainda faz sucesso | Foto: Euler de França Belém/Jornal Opção

A banca será fechada, em caráter definitivo, no dia 20 de abril. “Quando percebi que não havia como manter a banca, eu chamei meus três funcionários, expliquei a situação e acertei a questão trabalhista com todos eles. Tanto que estou fechando a banca sem nada dever aos funcionários. Um deles trabalhou comigo durante 20 anos. Foi triste demiti-los. Mas, se não tomasse as providências, poderia acabar com o negócio, mas ficando com dívidas. Hoje, felizmente, nada devo. Estou acertando as últimas questões com a Distribuidora Jardim, de Alberto Braga”, diz Marcão.

Na madrugada de terça para quarta-feira, Marcão diz que ficou pensando e se perguntando: “Como vai ser a hora que eu acordar e não precisar ir mais ao shopping, onde trabalhei, de maneira ininterrupta, por 26 anos? Trabalho com banca de revistas há 52 anos”.

Na quarta-feira, quando chegou à banca, o chefe da segurança, brincou: “Marcão, caiu a ficha?” O microempresário respondeu, a contragosto: “Caiu”. “Mas não é verdade. A ficha ainda não caiu. Não me imaginava fora do shopping.”

Não, Marcão não chorou durante a entrevista. Mas raras vezes o vi com um olhar tão triste, como se estivesse pensando no distante 1971, ou então na década de 1980, quando sua banca era uma espécie de palco iluminado para o debate de ideias.

O que Marcão Sem Banca vai fazer daqui para frente? “Não sei. Mas não quero mais mexer com banca de revistas.” Ele admite que está pensando em se mudar para Portugal. “No país de Camões, Fernando Pessoa e Florbela Espanca tenho uma prima que trabalha com Açaí. Não defini meu projeto, mas é possível que pegue um avião da TAP e recomece a vida na terra de Pedro Álvares Cabral. 532 anos depois do navegador, eu posso acabar ‘descobrindo’ o país-irmão.”

Palavras cruzadas: campeãs em vendas | Foto: Euler de França Belém/Jornal Opção

Quando o repórter conversava com um freguês da banca, uma senhora que comprava gibis para o neto, Marcão ligou para Alberto Braga, da Distribuidora Jardim, em busca de informações sobre a quantidade de bancas em Goiânia e no Estado. “Alberto me disse que em Goiânia existem 50 bancas e, somando com o interior, são mais ou menos 80. Elas vendem ‘até’ revistas.” A ironia do “até” é porque as bancas estão vendendo sandálias, sapatos, bolas, lanches e refrigerantes, chaveiros, fazem chaves e “até” vendem revistas.

O jornaleiro lamenta o fato de que João Ribamar venceu a “Banca do João”, a da Praça Tamandaré. João tinha bancas na porta dos Correios e na Praça Tamandaré. Eram concorrentes fortes da Banca do Marcão. Agora, ambos, são história.

Marcão, você se considera o último dos moicanos das bancas? “De certo modo, sim. Nenhum shopping de Goiânia terá banca de revista. A minha banca é, de fato, a última das moicanas (em termos de shopping).”

Depois do dia 20, quanto terá mais tempo para flanar pela cidade e para as leituras — é um leitor infatigável de ciência —, Marcão visitará alguma banca? “É provável. Há as bancas da Tamandaré, a do Eduardo Domingos Salviano [Banca Três Irmãos, uma das melhores da cidade], na Avenida Goiás, e a Paulista [do José Martins], nas proximidades do Parque Vaca Brava.”

“Estou fechando a banca. Mas ainda há luz”, diz, enigmático e irrequieto, Marcão Sem Banca.