A união de forças é o melhor caminho para a indicação

Jales Guedes Coelho Mendonça e Eliseu Antônio da Silva Belo
Especial para o Jornal Opção

Estudioso do federalismo (e regionalismo) brasileiro, sobretudo no período da Primeira República (1889-1930), o brasilianista Joseph Love, da Universidade de Illinois (EUA), concebeu uma interessante tipologia para a classificação dos Estados, a saber: os autônomos (Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul); os semissoberanos (Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro); e os satélites (os demais, em número de quinze, incluído Goiás), chamados também por Barbosa Lima Sobrinho como “os bagageiros da federação”.

Nesse último pelotão, entendemos imperioso que se faça uma gradação sobre a importância de cada ente subnacional, ainda que conjuntural e temporária, a exemplo do sucedido com a Paraíba em 1930, quando indicou João Pessoa vice-presidente na chapa de Getúlio Vargas e desempenhou relevante papel nos fatos alusivos ao movimento revolucionário. A despeito de versar sobre política internacional, o fracionamento dos países periféricos em três blocos (grandes, médios e pequenos) formulado pelo embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, em seu livro “Quinhentos anos de periferia”, serve de parâmetro para a vertente subdivisão.

Entre 1902 a 1910, José Leopoldo de Bulhões Jardim, mais conhecido como Leopoldo de Bulhões, ocupou por mais de cinco anos o destacado cargo de ministro da Fazenda – nas gestões dos mandatários Rodrigues Alves (1902–1906) e Nilo Peçanha (1909–1910). Nessa fase, Goiás indiscutivelmente participou do jogo político nacional com outra indumentária, embora não deixasse a posição de satélite. A propósito, o frágil desenvolvimento foi reconhecido pelo próprio citado oligarca (chefe político estadual): “A terra é grande, atrasada, pobre e a gente é pouca, mas sinceramente empenhada em melhorá-la e enriquecê-la.”

Leopoldo de Bulhões: ministro da Fazenda no início do século 20 | Foto: Reprodução

Dois marcantes acontecimentos da história goiana evidenciam que o satélite girou com maior intensidade na aludida época: i) na segunda passagem bulhonista pelo Ministério da Fazenda, tem início a construção da estrada de ferro em direção ao território goiano, transpondo-se a forte resistência de Minas Gerais, que ambicionava a continuidade da situação de entreposto comercial de Goiás; ii) em 1905, o juiz federal em Goiás, Joaquim Xavier Guimarães Natal, é nomeado ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). Passados 115 anos dessa assunção, Guimarães Natal ainda perfila como o único jurista do estado a integrar a mais alta Corte do Poder Judiciário pátrio.

Ante a expressividade de tal escolha, cumpre registrar, em breves palavras, seu contexto. Em 1905, Leopoldo de Bulhões buscava junto ao chefe do poder Executivo a decretação de uma intervenção federal em Goiás para depor o governador Xavier de Almeida, seu antigo aliado e agora dissidente. Diante da relutância do presidente da República em acolher a drástica medida, seu Ministro da Fazenda acabou contrariado.  Como lenitivo ao aborrecimento, Rodrigues Alves resolveu convidar Bulhões para a vaga aberta no STF decorrente da aposentadoria do ministro Macedo Soares. Tudo leva a crer que neste momento, usando de sua grande perspicácia política, o prócer goiano declinou do convite, mas conseguiu indicar seu cunhado Guimarães Natal ao posto.

Guimarães Natal: único goiano que chegou ao Supremo Tribunal Federal | Foto: Reprodução

No dia 5 de novembro de 2020, tomou posse no STF o até então desembargador federal do TRF-1ª Região, Kássio Nunes Marques, após surpreendente indicação do presidente da República, Jair Bolsonaro, já que ele não figurava entre os mais cotados pelos veículos de comunicação. Mas a nomeação também surpreendeu por outro motivo: Nunes Marques é piauiense e formado em curso jurídico de seu estado natal. Com efeito, ele tornou-se o sexto ministro nascido no Piauí de um total de 168, computados desde a criação da Corte em 1891.

No Senado Federal, o nome de Kássio Nunes Marques repercutiu bastante entre a atuante bancada nordestina, a começar pelo representante do Piauí, Ciro Nogueira, que buscou ressaltar a sua origem: a indicação, disse ele, mostra o “reconhecimento à força, ao talento e à capacidade da região Nordeste e de seu povo.” O senador pela Bahia, Ângelo Coronel, sublinhou: “Eu preferia um baiano. Já que não foi baiano, me contento com um piauiense, nordestino”. Por fim, o ex-presidente da República e senador por Alagoas, Fernando Collor, assinalou: “É experimentado, um nordestino, e o Supremo precisa de melhor distribuição geográfica.”

Kássio Nunes Marques: ministro do Supremo Tribunal Federal | Foto: Ramon Pereira/TRF-1

De fato, na ocasião, nenhum dos 11 integrantes do Supremo era oriundo do Nordeste, prevalecendo a região Sudeste. Em contrapartida, segundo Emília Viotti da Costa, em sua obra “O Supremo Tribunal Federal e a construção da cidadania”, em determinado momento do regime civil-militar (1964–1985), “o Norte e o Nordeste tiveram maior número de ministros.”

Esse aspecto regional é sumamente interessante, pois em se tratando de uma Corte Suprema, destinada a dirimir os mais graves e complexos conflitos de ordem nacional, muitos dos quais envolvendo a higidez da própria federação brasileira, é recomendável que o STF seja composto por uma gama de juristas que se diferenciem entre si.

Nesse sentido, advogou o próprio Kássio Nunes Marques, ao conceder uma entrevista à Revista Veja: “A beleza do colegiado é a sua heterogeneidade. Se tivermos juízes, todos da mesma origem, da mesma classe, nascidos no mesmo estado, será um colegiado sem debate. O que faz a riqueza do colegiado são as diferenças.”

Nos contornos dessa moldura, convém refletir sobre a representatividade do estado de Goiás no STF. E a conclusão a que se chega resta um tanto quanto desanimadora e patenteia uma notória sub-representação, uma vez que até hoje apenas o ministro Guimarães Natal integrou o STF. A título de comparação, de acordo com dados divulgados pelo próprio Supremo, a Bahia já emplacou 14, Minas 30, Ceará 4 e o Maranhão 5.

Ministros do Supremo Tribunal Federal (por sua origem — Estados). Goiás só teve um ministro | Foto: Supremo Tribunal Federal

Assim sendo, a conjuntura atual é mais do que oportuna para desfraldar-se a legítima bandeira da presença de um novo jurista de Goiás no STF. Ao contrário dos anos fundacionais da República, hoje a unidade federativa anhanguerina encontra-se entre o primeiro terço dos estados de maior desenvolvimento, sendo inclusive a nona economia do país. Além disso, conta com mais de sete milhões de habitantes, o que a credencia como a mais populosa do Centro-Oeste. A rigor, tanto sua população quanto seu território são aproximadamente o dobro dos registrados no Uruguai.

Ademais, intelectuais de peso e com currículo compatível para o exercício da elevada função não faltam no estado, provenientes de diversas carreiras jurídicas. Em relação à relevância das tarefas incumbidas pelo texto constitucional ao STF, basta ligar o noticiário televisivo diariamente para se deparar com o extenso rol debatido, que versa praticamente sobre todos os assuntos.

Dificuldades de toda ordem existem para a consecução definitiva do objetivo colimado. A este respeito, o Desembargador Luiz Cláudio Veiga Braga escreveu um artigo jornalístico intitulado “Difícil acesso para goianos ao STJ” (O Popular, 25 de outubro de 2015), em que detalhou sua árdua jornada por uma vaga naquele tribunal. Com grande sinceridade, em certo parágrafo assinalou: “o processo seletivo, a mim, como candidato do TJ-GO, cristalizou a certeza da pouca ou nenhuma projeção do Poder Judiciário estadual goiano no cenário nacional, sendo os espaços reservados aos Estados de maior peso político ou àqueles que, tradicionalmente, têm assento na Corte, a exemplo da Região Nordeste, firmada a convicção de que, nessa seara, ainda não compomos a geografia do Brasil.”

Por isso, a criação de um verdadeiro movimento de união de forças, congregando as esferas política, jurídica, empresarial, cultural e até religiosa, é o melhor caminho para viabilizar um sonho dessa proporção. A propósito, o exemplo do ministro Ayres Britto ajuda a iluminar a questão. Nascido em Sergipe, o menor dos estados brasileiros, ele conseguiu a indicação pelo então Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, em 2003, muito por derivação de uma autêntica união de forças sergipanas, que constituíram realmente um movimento suprapartidário. Ayres Britto foi o quinto integrante do STF de Sergipe.

Ayres Brito: ex-ministro do STF

Compulsando a obra de Daniel Arão Reis “O Supremo Tribunal do Brasil (notas e recordações)”, especialmente o capítulo “o bairrismo na nomeação dos ministros do STF”, extrai-se que os dois únicos ministros de Alagoas foram nomeados exatamente pelos dois presidentes-marechais alagoanos – Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto. No consulado do paraibano Epitácio Pessoa, os três indicados recaíram sobre juristas oriundos do Nordeste, sendo um deles da Paraíba. Na gestão de Juscelino Kubitschek, dos quatro ministros escolhidos, três eram de Minas Gerais. Em conclusão, como nenhum político de Goiás alcançou até hoje o cargo de presidente da República, as dificuldades avultam-se ainda mais, exigindo maior sabedoria e unidade de ação.

Não podemos simplesmente nos conformar com a pouca projeção goiana nos Tribunais Superiores, em especial no STF, quando Estados com menor potencial político, populacional e econômico do que o nosso, como o já citado Estado de Sergipe, contam com uma representatividade na Suprema Corte brasileira cinco vezes maior, considerada a sua mais que centenária história institucional republicana.

Sede do Supremo Tribunal Federal, em Brasília | Foto: Reprodução

Vale a pena registrar a atuação destacada no Superior Tribunal de Justiça (STJ) de dois juristas de Goiás: os ministros Castro Filho, já aposentado, e Laurita Vaz, ainda na ativa, sendo que a segunda chegou a ser presidente da citada Corte. Além disso, Guimarães Natal no STF sempre honrou a toga com sua honestidade e grande independência do poder político.

Por fim, após 115 anos da escolha de Guimarães Natal, chegou a hora de Goiás transformar essa realidade e mobilizar suas forças vivas em prol de uma causa mais do que justa e legítima: a nomeação de um segundo jurista no Supremo Tribunal Federal.

Jales Guedes Coelho Mendonça é promotor de Justiça, Doutor em História pela UFG, autor do livro “A Invenção de Goiânia — O Outro Lado da Mudança” (Editora UFG, 2ª ed., 2018) e membro do IHGG. É colaborador do Jornal Opção.

Eliseu Antônio da Silva Belo é promotor de Justiça, Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes/RJ e autor do livro “STF e STJ: Perguntas e respostas” (Editora Lumen Juris, 2017).