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O Hamas matou, dentro do território de Israel, mais de 1.100 israelenses. Na sua caçada aos terroristas palestinos, as forças armadas do país dirigido por Binyamin Netanyahu mataram cerca de 23 mil palestinos, na Faixa de Gaza.

O governo de Israel (secundado pelo governo os Estados Unidos) afirma que membros do Hamas se escondem atrás de civis. Então, a morte de civis, de pessoas não comprometidas diretamente com a organização terrorista, seria um “efeito colateral”.

Em outras palavras, para caçar e matar integrantes do Hamas, Israel está matando palestinos inocentes. Ou seja, de maneira indiscriminada.

Israel sustenta que seu objetivo é a destruição completa do Hamas. Como isto parece impossível, outros milhares de palestinos serão mortos — assassinados — pelos bombardeios israelenses.

Não há dúvida de que, ao caçar líderes e militantes do Hamas, Israel está se vingando. Mas a vingança não é apenas contra os terroristas, pois a maioria absoluta dos mortos provavelmente não é afiliada ao grupo sunita.

Com razão, Israel afiança que suas operações não pretendem acabar com o povo palestino. Porém, tem de admitir, insistamos, que, para destruir o Hamas, articula a matança de milhares de inocentes.

Celso Lafer, intelectual brilhante, revela insensibilidade em relação aos palestinos | Foto: Reprodução

Aí está o busílis da questão. É preciso parar a matança. Já. Há jornais que dizem que os Estados Unidos cobram que Israel se contenha. Nada mais inocente. O único país que pode parar o governo de Netanyahu são os Estados Unidos. Se o governo de Joe Biden anunciar que vai se “retirar” da região, deixando de proteger Israel contra a “ira” do Irã e outros países, os israelenses possivelmente sairão da Faixa de Gaza.

Na verdade, o excesso de autoconfiança de Israel não está assentado apenas em suas forças — gigantescas, claro. É a força dos Estados Unidos que “segura” o Oriente Médio e impede que se faça um ataque articulado contra a nação israelense.

Uma coisa é brigar apenas contra Israel, outra é enfrentar o país mais poderoso e nuclear da face da Terra.

Humanismo de Lula e insensibilidade de Lafer

O que se disse acima é um breve contexto para se entender por qual motivo a África do Sul propôs levar Israel à Convenção para Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio. A posição do país africano recebeu o endosso do Brasil, Turquia, Jordânia, Colômbia, Bolívia e Venezuela. A vice-primeira-ministra da Bélgica, Petra De Sutter, chegou a propor que seu país apoiasse aqueles que denunciam o assassinato de crianças, mulheres, velhos palestinos e operam, mesmo que com palavras, para pará-la.

Luís Inácio Lula da Silva: posição humanista | Foto: Reprodução

Em parte, Israel tem razão. O país não está cometendo genocídio, pois não planeja acabar com o povo palestino. Entre as décadas de 1930 e 1940, na Alemanha, Adolf Hitler operou para destruir o povo judeu. O governo israelense não reza pela mesma cartilha.

Entretanto, como está matando palestinos de maneira indiscriminada, enquanto caça os soldados e oficiais do Hamas, Israel vai ser acusado, cada vez mais, de genocídio. Por mais que haja um erro conceitual, é o que vai colar na sua imagem global.

O uso da palavra genocídio, para qualificar as ações de Israel em Gaza, tem o objetivo muito mais de estancar a matança do que o de comparar os israelenses aos nazistas (evidentemente, não tem nada a ver).

Então, pode-se sugerir que a África do Sul e o presidente Lula da Silva acertaram ao errar e que o jurista Celso Lafer, que foi ministro das Relações Exteriores dos governos de Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso, erra ao acertar.

Numa entrevista ao repórter Felipe Frazão, de “O Estado de S. Paulo”, Celso Lafer, um legalista dos mais admiráveis, não lamenta, em nenhum momento, a morte de quase 25 mil palestinos, numa insensibilidade rara num humanista de sua categoria. Portanto, se sobra humanismo a Lula da Silva, falta ao ex-ministro. Sua entrevista é de uma frieza que impressiona. Parece mais um “anatomista” do que um analista categorizado de política internacional.

Rubens Barbosa: governo de Lula da Silva é coerente | Foto: Julio Bittencourt/Revista da Indústria

Enquanto Lula da Silva quer parar a matança de palestinos — porque estão morrendo mais “inocentes” do que “culpados —, Celso Lafer está preocupado com “conceitos”, com sua precisão. Não se pode chamá-lo de nefelibata, mas é o que parece.

Celso Lafer frisa: “Acho errado a instrumentalização do Direito Internacional. (…) Não é válido alinhar-se à África do Sul nesta instrumentalização. (…) É uma leviandade usar a palavra genocídio”. Curiosamente, o ex-ministro faz uma acusação grave: “A África do Sul tem sido reconhecidamente um parceiro do Hamas nas suas atividades”. Quer dizer que defender a causa palestina, posicionando-se contra a matança em Gaza, é ser “associado” do grupo terrorista? O jurista, tão cioso da precisão da conceituação, parece exceder-se na crítica ao país de maioria negra.

Rubens Ricupero e Rubens Barbosa: a hora da razão

O ex-embaixador Rubens Barbosa — um dos mais experimentados diplomatas brasileiros — tem uma posição mais moderada do que a de Celso Lafer.

Rubens Barbosa assinala que a atual posição do governo brasileiro, endossando a crítica da África do Sul, mostra coerência “com suas posições públicas”.

“Na nota do Itamaraty fala-se da desproporcionalidade do ataque [de Israel na Faixa de Gaza] e da crise humanitária com o corte de energia, de alimentos e medicamentos. É importante lembrar que o pedido da África do Sul apoiado pelo Brasil não discute o mérito da questão, mas pede apenas medidas preventivas para limitar a crise humanitária (como cessar fogo)”, postula Rubens Barbosa.

Rubens Ricupero acerta ao fazer análise mais política do que jurídica | Foto: Reprodução

Citando levantamento da ONU, o “Estadão” informa que “mais de 80% dos habitantes do enclave foram descolados [talvez o jornal queira dizer deslocados] pelo conflito. Muitos vivem em abrigos improvisados, onde as doenças e a fome também são ameaça em meio à guerra”.

A posição da África do Sul e do Brasil pode ser entendida, assim, “como uma forma de pressão sobre Israel por uma redução dos bombardeios”. Ao contrário do que sugere o “Estadão”, ante a mortandade imensa de indivíduos e a destruição das residências e estruturas dos palestinos, nem se deve falar em “redução dos bombardeios”. O que se deve defender é o fim deles. Porque, mesmo reduzidos, os estragos serão cada vez maiores. Gaza se tornou uma Faixa de escombros, um matadouro de humanos e um grande cemitério.

Rubens Ricupero segue mais pela linha de Rubens Barbosa e não pela de Celso Lafer: “Eu vejo a atitude brasileira mais como gesto político. Se compreende que o Brasil tenha decidido pesar mais porque a verdade é que, até agora, as tentativas dos americanos para persuadir Israel a moderar em relação à morte de civis não deram resultado. Então se compreende que haja um aumento da pressão internacional. Faço uma interpretação mais política do que jurídica”.

“Se o tribunal [a Corte Internacional de Justiça] toma uma decisão, como se espera, para que Israel interrompa operações, o peso político é muito alto”, avalia Rubens Ricupero.

Leonardo Trevisan, professor de Relações Internacionais da ESPM, afirma que “a intenção é aumentar a pressão sobre Israel para que algum cessar-fogo seja alcançado ou que pelo menos haja uma redução de bombardeios. É preciso observar que Israel está resistindo à pressão norte-americana nesse sentido”. O mestre talvez esteja enganado: a pressão dos Estados Unidos, ao menos até o momento, é mais proforma.

O ministro da Defesa de Israel, Yoav Gallant, disse, recentemente, que os palestinos são como “animais humanos”. Não é uma linguagem humanista, civilizada.

Israel, ao matar uma infinidade de palestinos, parece culpá-los pela existência do Hamas. Fica-se com a impressão de que os palestinos são “culpados” por não terem “destruído” a organização terrorista. Por isso, estariam sendo “castigados”? São vítimas que Israel transformou em “culpados coletivos”.

Por fim, os excessos de Israel em Gaza não devem levar a uma nova onda de antissemitismo. O mais provável é que, por muitos anos, sobretudo depois da devastação causada por Israel, não se terá paz no Oriente Médio. O enfraquecimento do Hamas — e mesmo sua destruição — não significa que outros grupos terroristas, tão letais quanto, não surgirão nos próximos anos. A vingança de Israel (uma guerra justa contra o terrorismo e equivocada ao se dirigir aos palestinos em geral) vai gerar mais vingança. A tendência é que atentados terroristas pipoquem na região nos próximos anos.