A professora da USP Maria Helena Machado, doutora em História, revela que o espírita de Abadiânia “tratou” um ministro do Supremo, um professor de Stanford e a atriz Shirley MacLaine

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O livro sobre João Deus não é uma hagiografia, ainda que seja a favor: trata-se de um trabalho sério de uma professora-doutora da Universidade de São Paulo, Maria Helena Machado. Ele é espírita, mas também se diz católico

Maria Helena P. T. Machado, professora-doutora do Departa­mento de História da Universidade de São Paulo, escreveu um livro interessável sobre um homem controvertido, porém mais amado do que odiado. Entre seus admiradores estão Roberto Kalil, cardiologista do Hospital Sírio-Libanês; Jeffrey Rediger, professor de psiquiatria da Universidade Harvard; Henri Tjiong, pesquisador e professor de política energética da Universidade Stanford; Oprah Winfrey, apresentadora de televisão nos Estados Unidos; Shirley MacLaine, atriz e escritora; Naomi Campbel, modelo; Xuxa, apresentadora de televisão; Nizan Guanaes, publicitário; Luís Roberto Barroso, ministro do Supremo Tribunal Federal; Lula da Silva, ex-presidente da República; Anna Muylaert, diretora de cinema, e Marina Abramovic, artista performática. “João de Deus — Um Médium no Coração do Brasil” (Fontanar, 212 páginas) é uma biografia muito bem pesquisada e, sobretudo, equilibrada. É a favor, mas não é hagiografia (“é mais uma reflexão sobre o fenômeno João de Deus do que a biografia do homem que o encarna”). A autora admite que uma tragédia pessoal levou-a à Casa Dom Inácio de Loyola, em Abadiânia, onde o espírita atende.

Antes de se tornar um médium midiático, de fama internacional, João de Deus, de 74 anos, comeu o pão que Fausto amassou. Quando Oprah Winfrey, da rede de televisão Own, levou sua história ao ar, em março de 2012, o curador de Abadiânia, que já era famoso no Brasil, tornou-se uma estrela internacional. O programa divulgou a história da visita da americana à Casa Dom Inácio de Loyola. Ela chegou a passar mal ao ver João de Deus “seccionar com um bisturi uma área do seio de uma mulher que sofria de paralisia” num braço.

Oprah Winfrey confidenciou a João de Deus “que vinha se sentindo desanimada”. Em Abadiânia, depois de manter contato com o médium, diz ter “percebido que toda a sua vida era carregada de sentido”.

Como entender um homem que garante se comunicar com espíritos e diz ter atendido mais de 10 milhões de pessoas, tendo curado parte delas? “A vida de João Teixeira de Faria, nome de batismo do curador, está inserida em um amplo quadro do qual fazem parte fatores como a pobreza, a carência de assistência médica provida pelo Estado, a sobrevivência das tradições de cura do catolicismo devocional típico do Brasil tradicional, a constante adesão popular a cultos de possessão de origem africana e de mediunidade de feitio espírita, todos determinantes para explicar sua trajetória”, afirma a historiadora. Maria Helena revela que muitos dos que procuram o médium cirurgião são integrantes das classes média e alta do Brasil e do exterior (em Abadiânia, nos dias de atendimento, fala-se várias idiomas).

João de Deus com a apresentadora de televisão Ophah Winfrey, em Abadiânia: a americana diz que sentiu-se mais tranquila ao participar de uma corrente organizada pelo médium. Ela o consagrou internacionalmente
João de Deus com a apresentadora de televisão Ophah Winfrey, em Abadiânia: a americana diz que sentiu-se mais tranquila ao participar de uma corrente organizada pelo médium. Ela o consagrou internacionalmente

Antes de Oprah Winfrey, um dos primeiros a divulgar os trabalhos de João de Deus no exterior foi o guru da contracultura Ram Dass — cujo nome verdadeiro é Richard Alpert, psiquiatra que dava aulas em Harvard, mas aderiu às drogas psicodélicas com Timothy Leary e o poeta beat Allen Ginsberg. Ram Dass afirma que encontrou “junto ao médium João um contexto espiritual similar aos que vivera com seu amado guru indiano”, Neem Karoli Baba.

Porta-voz da literatura de autoajuda nos Estados Unidos, o escritor Wayne Dyer foi tratado de uma leucemia por João de Deus. Quando morreu, em 2015, de acordo com o relato de Maria Helena, “não foi encontrado qualquer traço de leucemia em seu corpo”.

Os serviços de tratamento espiritual do médium não são pagos e ele atende a todos sem discriminar classes sociais. Mas a professora da USP ressalva que “há serviços e objetos oferecidos pela Casa que pressupõem pagamento. As cápsulas de passiflora energizadas pelo médium são vendidas na farmácia do centro. O valor cobrado pelo pote grande do remédio é inferior ao de um similar vendido nas drogarias ou casas de produtos naturais. O mesmo ocorre com a água fluidificada: o preço bate com de qualquer supermercado ou padaria”.

Psiquiatra de Harvard
Jeffrey Rediger, psiquiatra e professor da Harvard, esteve em Abadiânia, entre 2003 e 2005, com o objetivo de verificar as cirurgias físicas e espirituais. Cientista, “completamente cético”, acreditou que iria “encontrar apenas truques e autossugestão”.

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Depois de acompanhar as cirurgias e de conversar com os beneficiários, Jeffrey Rediger, segundo a professora da USP, “começou a considerar a possibilidade de que algo inexplicável estivesse ocorrendo ali”.
Jeffrey Rediger acompanhou a cirurgia do americano Mark. Este contou que sentiu dor, quando uma pinça foi introduzida em sua cavidade nasal, mas depois “lhe sobreveio uma notável calma”. O psiquiatra assistiu a cirurgia feita num braço de um homem, que resultou num corte profundo. Mesmo assim, o paciente admitiu que não sentira nada.

Maria Helena relata que, “no decorrer de sua estada na Casa Dom Inácio de Loyola, o próprio Jeffrey Rediger passaria por uma experiência inusitada, que o levou a refletir sobre os limites das explicações racionais. Após o fim dos trabalhos da Casa, quando caminhava pela avenida central de Abadiânia e declarava à câmera o que havia acabado de observar, Rediger percebeu que um sangramento havia começado na região do peito. Encontrou então um corte pequeno que havia surgido sem que ele tivesse se ferido. As imagens registram sua perplexidade. De volta à pousada e ainda perdendo sangue, o médico norte-americano é avisado de que esta é uma situação relativamente comum em Abadiânia: quando uma cirurgia física é realizada em alguém, os presentes também podem estar recebendo intervenções no nível espiritual, sem saber disso”.

O psiquiatra Jeffrey Rediger, professor-doutor da Universidade Harvard, assiste cirurgia física feita por João de Deus; na segunda fotografia, quando estava andando numa rua de Abadiânia, o peito do médico começou a sangrar. Ele ficou perplexo
O psiquiatra Jeffrey Rediger, professor-doutor da Universidade Harvard, assiste cirurgia física feita por João de Deus; na segunda fotografia, quando estava andando numa rua de Abadiânia, o peito do médico começou a sangrar. Ele ficou perplexo

O cientista de Harvard se tornou um crente? Jeffrey Rediger disse “acreditar que essas cirurgias físicas, embora impactantes, configuram apenas a parte pública e visível de algo que só pode ser compreendido interiormente”. O psiquiatra sustenta que “o que de fato importa nesse tipo de vivência é a aquisição de uma dimensão interna diferenciada, que permite uma nova apreensão da realidade, mais ampla e abrangente”.

Em 1994, Angela Homercher, de 22 anos, estava cega, surda e quase não conseguia se alimentar — tinha um tumor. Procurou João de Deus, que decidiu operá-la, introduzindo tesouras longas em suas narinas. Um médico tentou brecar a ação do médium, alegando que iria perfurar o cérebro da paciente. Incorporado, o espírita não deu a mínima bola. A jovem, que não sentia dor, expeliu o tumor pela boca. A gaúcha recuperou a visão e a audição e hoje mora em Abadiânia.

Ministro do Supremo
O ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, recebeu “um diagnóstico de câncer agressivo no esôfago, com prognóstico de sobrevida de no máximo um ano”. Depois de se ter submetido à quimioterapia, no Hospital Sírio-Libanês, e a tratamentos alternativos, o magistrado decidiu conversar com João de Deus.

O médium visitou o desesperançado ministro em sua casa e afirmou que “podia curá-lo e que ‘não estava lá para perder’”. Luís Roberto Barroso decidiu experimentar o tratamento espiritual. “Poucos meses depois, ao reavaliar a situação, os médicos verificaram o desaparecimento completo da doença. Barroso afirmou ainda que, antes do câncer, era uma pessoa absolutamente cética. Porém, durante a luta contra a doença, percebeu que a cura provinha de uma força individual interna muito poderosa, que o médium havia sido capaz de ativar, fazendo-o acreditar que conseguiria alcançá-la.”

Shirley MacLaine
Irmã do ator Warren Beatty e amante do político brasileiro Carlos Lacerda, a atriz e escritora americana Shirley MacLaine tentou tratar de um câncer estomacal com o médium filipino Alex Orbito, mas sem resultado. Então, em 1991, esteve em Abadiânia e submeteu-se a uma cirurgia espiritual. Ela “saiu pulando e cantando de alegria, porque de imediato deixara de sentir dores”.

O Discovery Channel contou, em 2005, a história de Laura van Wagner, que sofria de um linfoma agressivo. Com depressão e o pescoço inchado devido a vários tumores, procurou João de Deus. O médium sugeriu que, primeiro, voltasse a se submeter à quimioterapia. Feito o procedimento médico, em Brasília, retornou a Abadiânia. “A situação médica dela, contra todas as expectativas, começou a melhorar de maneira significativa. Nove meses mais tarde, Laura aparece no consultório médico, recebendo a notícia de remissão do câncer.” Ela mora no Havaí, nos Estados Unidos.

O norte-americano Matthew Ireland, com um agressivo câncer cerebral de estágio quatro, que “crescia rápida e agressivamente”, era, segundo os médicos, inoperável. Em 2005, esteve em Abadiânia, de onde diz ter saído curado. O médico Mehmet Oz afirma ter ficado impressionado com a cura do habitante do país de Donald Trump.

Professor de Stanford

Henri Tjiong, professor da Universidade Stanford, garante que foi curado pelo médium João de Deus. Já os médicos não conseguiram “tratá-lo”
Henri Tjiong, professor da Universidade Stanford, garante que foi curado pelo médium João de Deus. Já os médicos não conseguiram “tratá-lo”

O documentário alemão “Curando: milagres, mistérios e João de Deus”, dirigido por David Unterberg e Andrea Wolffer, relata o caso de Henri Tjiong, professor da Universidade Stanford. “Tjiong havia começado a sofrer convulsões atípicas tão fortes que os médicos temeram a ocorrência de danos cerebrais.” Filho de médicos, além de cientista, optou primeiramente por tratamentos ortodoxos e, com a falência deles, circulou por Singapura, Espanha e Peru em busca de caminhos alternativos. Em Abadiânia, depois da conexão com João de Deus, “as convulsões pararam”. Porém, assim que saía da Casa Dom Inácio de Loyola, as convulsões voltavam. Em Abadiânia acredita-se “que existe um campo energético curativo e estabilizador em torno da Casa, mantendo as pessoas saudáveis e a salvo das consequências de quadros médicos graves”.

O médico Roger submeteu-se a uma cirurgia de revascularização cardíaca, “que não foi bem-sucedida. Em 5 de março de 1995, exatamente às 10h45, os médicos declararam sua morte”. Sua mulher não aceitou a decisão médica e entrou em contato com João de Deus. “Recebeu a instrução de que o corpo deveria ficar intocado até as 15h14, quando algo aconteceria.” Um pouco antes, às 15h06, “o dr. Roger levantou da cama e pediu um copo de água. Não entendeu por que as enfermeiras, em vez de atendê-lo, saíram correndo”. O “morto” havia “renascido”, como em determinados filmes de terror. Antes cético, o médico converteu-se ao espiritismo.

Luís Roberto Barroso, ministro do Supremo Tribunal Federal, teria sido curado de um câncer de esôfago pelo médium de Abadiânia; os médicos quase haviam desistido de seu caso | Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF
Luís Roberto Barroso, ministro do Supremo Tribunal Federal, teria sido curado de um câncer de esôfago pelo médium de Abadiânia; os médicos quase haviam desistido de seu caso | Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF

Em 2015, o alemão Loidl Jens Andrea procurou os préstimos de João de Deus, em Abadiânia. Em 2008, havia sofrido um gravíssimo acidente de motocicleta e um médico disse “que não se recuperaria, estando condenado a uma vida vegetativa”. Com uma força de vontade extraordinária, conseguia “alguma melhora”, mas nada revolucionário. Por isso, em 2012, Jens Andrea e sua mãe saíram de Freiburg, na Alemanha, em direção a Abadiânia. “Após sete viagens, perseverantemente realizadas ao longo de quase três anos, Loidl declarava, alegremente, que já podia andar sozinho, por isso entregava publicamente sua cadeira de rodas. Além disso, ele articulava razoavelmente as palavras e apresentava um estado de ânimo muito positivo.”

Depois de apresentar vários casos, a historiadora da USP pondera: “Apesar de todos esses relatos impactantes, a obtenção da cura é uma questão complexa e deve ser avaliada a partir de contextos individuais. Embora existam depoimentos que aparentemente desafiam a lógica e as explicações médicas e científicas, eles continuam sendo episódicos. Até hoje, tanto no caso de João de Deus quanto no de outros curados, todas as tentativas de controle em larga escala, que permitiriam determinar possíveis índices de cura, falharam”.

Quem é João Deus

João de Deus e a modelo internacional Naomi Campbel; ela esteve em Abadiânia em 2015, em busca de apoio
João de Deus e a modelo internacional Naomi Campbel; ela esteve em Abadiânia em 2015, em busca de apoio

Semialfabetizado, João de Deus, um homem de quase 1,90m, costuma dizer que nunca curou ninguém, em quase 60 anos de apostolado, sugerindo que “quem cura é Deus e os bons espíritos”. Ele costuma enfatizar que, “antes de vir pedir ajuda, o doente deveria desejar se recuperar”. Também não recomenda que os pacientes abandonem o tratamento médico. Ele incorpora vários espíritos (entidades), como o dr. Augusto de Almeida, o rei Salomão, santo Inácio de Loyola, são Francisco Xavier, dr. Bezerra de Menezes, dr. Oswaldo Cruz, Emmanuel, André Luiz, Zé Arigó (era protegido do presidente Juscelino Kubitschek) e o dr. Adolfo Fritz. Ele foi influenciado pelos espíritas de Palmelo, cidade de Goiás.

Maria Helena frisa que “a prática de João de Deus não se caracteriza como religião, e sim como um movimento ecumênico de cura”. Ele se considera católico, e dos mais devotos. A “mistura de traços e referências que compõem o trabalho de João de Deus pode ser descrita, ainda que sob o risco da simplificação, como uma mistura da cultura religiosa popular do Brasil. Mistura que combina o catolicismo devocional, as tradições de transe e o diálogo com os espíritas da interpretação kardecista com, em menor escala, as lentes da Nova Era, que disseminam o vocabulário das práticas de meditação e de manipulação do sagrado nas tradições orientais”. A corrente de cura é uma das atividades desenvolvidas pelo médium.

A Casa Dom Inácio de Loyola funciona com o apoio de voluntários — muitos deles têm pequenos negócios na cidade (ao menos 30% do PIB de Abadiânia depende das atividades de João de Deus). A irlandesa Grainne McEntee e Heather Cumming, escocesa que morava nos Estados Unidos, estão entre seus principais colaboradores.

João de Deus já atendeu no Omega Institute, em Rhinebeck, Nova York. “Em setembro de 2015, atendeu 9 mil pessoas em apenas três dias.” Ele também trabalha na Áustria, na Austrália e na Alemanha.

Xuxa, apresentadora de televisão, Lula da Silva, ex-presidente da República, Roberto Calil, cardiologia do Hospital Sírio-Libanês, e Nizan Guanaes, publicitário, estão entre os admiradores do médium João de Deus. O médico mantém forte ligação com o espírita
Xuxa, apresentadora de televisão, Lula da Silva, ex-presidente da República, Roberto Calil, cardiologia do Hospital Sírio-Libanês, e Nizan Guanaes, publicitário, estão entre os admiradores do médium João de Deus. O médico mantém forte ligação com o espírita

Curiosidades
Um dos irmãos de João de Deus, José Valdivino Nunes de Faria, Zezinho, era seguidor de José Porfírio (filiado ao PTB, mas ligado ao Partido Comunista Brasileiro), o líder da revolta de Trombas e Formoso, no Norte de Goiás, e, mais tarde, deputado estadual (teria sido assassinado por agentes dos porões da ditadura).

João de Deus foi “calceiro” do Exército por nove anos. Era alfaiate especializado na confecção de calças para os militares.

O médium mantinha relacionamento estreito com Chico Xavier, de quem chegou a receber um bilhete de apoio, no qual dizia que deveria ficar em Abadiânia.

Garimpeiro em Serra Pelada, João de Deus ganhou algum dinheiro lá após achar uma pepita de ouro. Teria usado recursos mediúnicos para encontrá-la.

A biografia apresenta Ismar Estulano Garcia — advogado militante em Goiânia e ex-presidente da OAB-Goiás — como um dos principais biógrafos de João de Deus.

O médium de Abadiânia, que praticamente criou um sistema próprio, misturando espiritismo e outras correntes religiosas, recebe forte influência da umbanda. Ele é uma espécie de guia espiritual sincrético.

O Brasil é o país que tem mais espíritas no mundo. São cerca de 2,5 milhões. A Federação Espírita Brasileira (FEB) contesta e garante, possivelmente com razão, que os espíritas são cerca de 20 milhões. É que muitos espíritas também professam outras religiões, como o catolicismo. Inquiridos pelos pesquisadores do Censo do IBGE, costumam dizer, em alguns casos, que são católicos, quando, na verdade, são católicas mas, às vezes, também espíritas. O próprio João de Deus é católico e espírita. Porém, para algumas pessoas, é mais respeitável — embora o espiritismo seja cada vez mais aceito — informar que são católicas.

João de Deus é rico. A origem de sua fortuna tem a ver com o fato de ser um produtor rural eficiente. Maria Helena afirma que a Casa Dom Inácio de Loyola “não receita qualquer medicamento além da passiflora, nem sequer analgésicos”. O médium ganha dinheiro com a passiflora e com a água fluidificada. Mas o forte mesmo são os negócios de sua fazenda.

O médium é paciente quanto incorporado, mas, quando não está incorporado, chega a ser explosivo, nem sempre é muito gentil. Mas ele é, sobretudo, uma pessoa solidária, com intensa atividade social em Abadiânia. Aliás, ele é a principal “atividade econômica” do município. Como sobreviverá Minaçu sem o amianto? Na cidade que fica entre Anápolis e Brasília, a pergunta é outra: como se sobreviverá sem João de Deus? Até agora, não se fala em sucessor. Ele já esteve muito doente — com AVC e câncer —, mas agora está bem. O médium é centralizador e, por isso, nenhum outro médium se destaca. Ninguém se equipara a ele em autoridade espiritual — é o que se diz em Abadiânia.

Maria Helena Machado, doutora em História e professora da Universidade de São Paulo, é a autora da biografia de João de Deus
Maria Helena Machado, doutora em História e professora da Universidade de São Paulo, é a autora da biografia de João de Deus

Um depoimento
Meu pai, Raul de França Belém, de quem herdei o vício da leitura, faleceu no fim de 2011. Durante todo esse ano, tratou de um câncer no pâncreas — os médicos retiraram parte do órgão e o baço — com uso frequente de quimioterapia. Ante o quadro de metástase, a medicina tradicional não tinha mais o que fazer, a não ser mantê-lo vivo com o mínimo de sofrimento — com o uso intensivo de morfina, o que provocava alucinações frequentes (como uma velhinha que vivia levantando sua cama; quando ele estava melhor, ríamos disso). Um dia, disse aos filhos — Eliane, eu e Raul Belém Filho (que, junto com sua mulher Veruska, mais cuidou dele; ambos com paciência e desvelo extraordinários) — que queria ir a um centro espírita. Levei-o duas vezes a um centro espírita no bairro Negrão de Lima, nas proximidades do Setor Jaó, em Goiânia.

Lá, um local agradável, com pessoas tranquilas e dotadas de imensa fé, meu pai ficou deitado durante algum tempo, recebeu passes e ouviu orações. Ao sairmos, levamos água fluidificada, que ele tomou disciplinadamente. Raul Belém morreu, aos 74 anos, mas a visita e a água só lhe fizeram bem, deixando-o mais tranquilo, sereno. Era ateu (e, frise-se, de esquerda) — como eu (que não sou de esquerda).

O que concluir? Persisto do lado da ciência, mas, como Shakespeare, admitindo que, entre o Céu e a Terra, há muito mais do que imagina a nossa vã filosofia. Que João de Deus é um fenômeno, parece indiscutível. Só não sei dizer, mesmo depois de ler o livro com cuidado, do que exatamente se trata.