Por que o Tribunal de Contas resiste à fiscalização de suas contas?

12 janeiro 2024 às 19h03

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Em 20 de dezembro de 2023, a Assembleia Legislativa de Goiás (Alego) aprovou lei e resolução que estabelecem normas para que a Casa aprecie as contas do Tribunal de Contas do Estado de Goiás (TCE-GO) e imponha possíveis sanções contra o tribunal. Desde então, o Tribunal exerce seu Jus sperniandi em todas as esferas em que pode.
Tanto o Tribunal em nota oficial quanto o deputado estadual Gustavo Sebba (PSDB) afirmaram, dias atrás, que a tentativa de apreciar as contas do TCE seria barrada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) devido à experiência anterior. Em 2010, a Alego propôs a Emenda Constitucional nº 46, que foi barrada em Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) relatada pelo ministro Dias Toffoli.
Entretanto, na última quinta-feira, 10, a Advocacia-Geral da União (AGU) deu parecer favorável à Alego, manifestando que é constitucional a Lei Estadual nº 22.482/2023. O STF ainda não se posicionou, mas é provável que o parecer da AGU seja seguido pelo Supremo. O entendimento sobre a Constituição mudou?
Na verdade, o suposto precedente é um pretexto, uma confusão sobre a razão pela qual a Emenda de 2010 foi considerada inconstitucional. Naquela ocasião, a ADI 5290 declarou inconsticional o artigo 11, inciso IV do texto. A proposta de então era que a Alego pudesse “sustar os atos normativos dos Tribunais de Contas que exorbitem do poder regulamentar”, abrindo a possibilidade de interpretar abstratamente os atos normativos dos tribunais, uma prerrogativa de típica natureza jurisdicional. A lei e resolução de 2023 nada têm em comum com o artigo que causou a ADI 5290.
A mais nova ADI é movida pela argumentação de que a Lei Estadual seria uma intromissão do poder Legislativo no Judiciário. Entretanto, a auditoria das contas não diz respeito às normas internas da Corte, que determina seu próprio funcionamento. Enquanto o artigo 11, inciso XXI, da Constituição do Estado de Goiás diz que “compete exclusivamente à Assembleia Legislativa apreciar e julgar as contas anuais do Tribunal de Contas do Estado”, a norma encontra simetria em nível federal, onde o Tribunal de Contas da União tem controle externo do Congresso Nacional.
Por meio de nota oficial, a Corte publicou: “a Constituição Federal assegura ao Tribunal de Contas a condição de órgão autônomo e independente, contando seus membros com as garantias da magistratura, dentre as quais se destaca a independência funcional”. Na mesma nota, se lê: “Todas as atividades do Tribunal são exercidas com a devida transparência […]. O TCE relatórios trimestrais e anuais de suas atividades ao Poder Legislativo”.
As declarações parecem sugerir que as contas do Tribunal de Contas podem ser apenas informadas, mas jamais repreendidas. Se o TCE-GO já se conforma à necessidade de informar seus gastos, podemos concluir que a mais recente agitação tem raízes em outra responsabilidade, que não a da transparência.
A verdadeira razão do esperneio está no contexto, como o próprio TCE admite: “A aprovação de ambas as normas [da Alego] ocorreu em um contexto de insatisfação do Governo de Goiás com a deliberação do Plenário do TCE-GO referente a termos de colaboração para gerenciamento, operacionalização e execução das ações e serviços de saúde em unidades hospitalares”.
Mais claramente: o TCE não se opõe a abrir suas contas ao escrutínio público, apenas teme que o escrutínio seja motivado pela retaliação. As demais justificativas são apenas estratégias para desviar a atenção do óbvio, que precisa ser dito claramente: não há fiscalização benigna e fiscalização maligna. Há apenas a fiscalização transparente, o controle da boa governança, a responsabilidade.
Nos últimos anos, sob ataque, o Judiciário tem repetido (com razão) que a obsessão por enxergar tramas políticas em suas decisões fez muito mal à democracia brasileira. Todo o enredo conspiratório de alinhamento das cortes aos partidos torna a Justiça brasileira um bem relativo, cujo valor pode ser diminuído a depender de quem a decisão favorece.
Agora, as instituições do Estado têm uma nova oportunidade de demonstrar quão bem aprenderam a lição. Assim como não é moral que o Legislativo classifique decisões desfavoráveis com a narrativa do conluio político, não é digno que o Tribunal permita escrutínio apenas quando considera que o investigador é um aliado de si próprio.