Por que tanto medo de discutir a descriminalização das drogas?
02 junho 2019 às 00h00

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Julgamento que estava marcado para a terça-feira, 5, no STF, definiria se o porte de substâncias ilícitas para uso próprio é ou não crime

Estava agendada para a próxima terça-feira, 5, a retomada do julgamento sobre a constitucionalidade do artigo 28 da Lei das Drogas (11.343), no Supremo Tribunal Federal (STF). O verbo da primeira frase está no passado porque o presidente da corte, Dias Toffoli, atendeu a um pedido do presidente Jair Bolsonaro para tirar o Recurso Extraordinário (RE) 635.659 da pauta.
A manobra teve o objetivo de evitar que o tribunal decidisse por descriminalizar o porte de drogas (ao menos a maconha) para uso próprio. Ao mesmo tempo, a intenção de Bolsonaro é que seja votado o Projeto de Lei 37/2013, do então deputado e atual ministro da Cidadania, Osmar Terra. A proposta do ministro, já aprovada na Câmara, será apreciada no Senado. Ela cria uma nova política nacional sobre drogas, mas mantém intacto o artigo 28 da Lei das Drogas.
A importância do “28”, como é chamado no jargão policial, é que ele refere-se ao tratamento dispensado legalmente ao usuário, e não ao traficante. Quando entrou em vigor, em 2006, a lei atual aboliu a prisão para o consumidor, apesar de manter a conduta como crime (segundo entendimento do próprio STF). As penas passaram a ser advertência sobre os efeitos, prestação de serviços à comunidade e medidas educativas.

Porém, apesar de branda em comparação à supressão da liberdade, a legislação em vigor tem repercussões práticas na vida de quem a infringiu. “O artigo 28 não retirou os demais efeitos [da pena]. Ainda se perde a primariedade e impede alguns benefícios em alguma futura apuração sobre tráfico”, exemplifica a professora da Universidade Federal de Goiás (UFG) no Programa de Mestrado Profissional em Direito e Políticas Públicas (PPGDP/UFG), Franciele Cardoso.
É aqui que entra o Recurso Extraordinário 635.659. Interposto pela Defensoria Pública de São Paulo em favor de um condenado por porte de drogas flagrado com 3 gramas de maconha, ele questiona a constitucionalidade do artigo 28 da 11.343. A Defensoria alega que esse artigo viola o artigo 5º da Constituição Federal.
O voto do relator do caso no STF, ministro Gilmar Mendes, dado no início do julgamento, em 2015, foi nesse sentido. De acordo com o ministro, tratar como crime a posse de drogas para consumo próprio “fere o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, em suas diversas manifestações”.

Para o advogado criminalista Pedro Paulo Medeiros, este ponto é central na discussão. “A droga faz mal apenas para a pessoa que usa ou para a coletividade? Se faz mal apenas para o indivíduo, o Estado deve entrar tanto na individualidade do cidadão?”, questiona. Medeiros lembra, contudo, que, no Brasil, mesmo danos pessoais, como a deterioração da saúde do usuário, é reparado com recursos de todos, por meio da assistência de Saúde. “No Brasil, o Estado tutela a todos”.
Mendes estendeu os efeitos de seu voto para todo tipo de drogas. Os outros dois ministros que votaram, Edson Fachin e Luís Roberto Barroso, também decidiram pela inconstitucionalidade, mas restringiram a descriminalização do porte apenas da maconha.
Segundo todos os analistas do STF, esse era o entendimento que prevaleceria na retomada do julgamento. Por isso, o governo federal reagiu e conseguiu que Dias Toffoli retirasse a questão da pauta. Para os aliados do presidente da República, o projeto de Osmar Terra dá um tratamento mais duro à questão e, por isso, mais adequado.
Porém, varrer um problema para debaixo do tapete não significa que ele deixou de existir. Ao contrário, pequenos medos, se não enfrentados, tendem a crescer até se transformarem em pânico. Aí, a resolução fica muito mais difícil.
Um em cada quatro presos cumprem pena por causa de envolvimento com drogas
Quando foi escrita, a Lei 11.343 pretendia ser um avanço, especialmente na questão do dependente de drogas ilícitas. “Na prática, ela se tornou uma lei imprecisa na definição de quem é traficante e de quem é usuário”, diz a professora Franciele Cardoso, que é pesquisadora do Núcleo de Estudos sobre Criminalidade e Violência da UFG.
Segundo ela, desde que a atual legislação entrou em vigor, houve um aumento no número de condenados por tráfico de drogas no Brasil. Segundo os dados mais atuais do Cadastro Nacional de Presos, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Goiás tem aproximadamente 17,7 mil presos, em todos os regimes. O tráfico responde por 24% das condenações no Brasil, atrás apenas do roubo (27%).
Isso significa que Goiás pode ter mais de 4 mil condenados por tráfico e associação para o tráfico de drogas. Infelizmente, nem o Tribunal de Justiça, nem a Secretaria de Segurança Pública, tampouco a Superintendência de Administração Penitenciária puderam informar a quantidade de condenações ou ocorrências envolvendo usuários de drogas no Estado.
Levantamento do Tribunal de Justiça, feito a pedido do Jornal Opção, mostra que, dos 4,1 mil presos que passaram pela Audiência de Custódia este ano, 497 (12%) tiveram drogas apreendidas, muitos deles com mais de um tipo. A droga mais apreendida foi a maconha (306 casos), seguida pela cocaína (174) e pelo crack (115).
Para a pesquisadora Franciele Cardoso, o aumento da população carcerária pós-Lei 11.343 (de 31 mil, em 2006, para 174 mil, em 2014, segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional – Depen – divulgados pelo Conjur), em parte decorre da forma como o artigo 28 foi interpretado na prática. “A maioria das prisões não é fruto de investigação, mas de flagrantes”, diz. Nesse contexto, cria-se um conflito entre a palavra do policial e a do preso.
Pedro Paulo Medeiros afirma, por outro lado, que a mudança na legislação ampliou as possibilidade de enquadramento em tráfico de drogas. “Houve um aumento no número de condutas que caracterizam o tráfico. Ao mesmo tempo, o aparato investigativo melhorou”, acredita. Para quem lida no dia a dia da repressão, essa também é uma explicação. “As polícias têm investido mais em investigação e inteligência no combate ao tráfico”, afirma o delegado titular da Delegacia Estadual de Repressão a Narcóticos (Denarc).
Os dados do Observatório de Segurança da Secretaria da Segurança Pública de Goiás reforçam o argumento do titular da Denarc. Em 2018, as forças de segurança do Estado apreenderam 17,4 toneladas de drogas (15 toneladas somente de maconha). A quantidade já foi superada no primeiro quadrimestre de 2019: de janeiro a abril, foram apreendidas 26,2 toneladas de drogas em território goiano (21,9 somente de maconha).
Uma hipotética mudança no entendimento atual em relação ao usuário de drogas alcançaria quem já cumpriu ou cumpre pena relacionada. “Uma conduta que passa a ser aceita socialmente, retroage e retira efeitos anteriores”, diz o criminalista Pedro Paulo Medeiros. “Se houver alteração legislativa, abolindo o crime, todos que estão respondendo por ele são afetados”, complementa a professora da UFG Franciele Cardoso.
Cultura, violência e saúde
Contudo, a discussão sobre a descriminalização das drogas não pode passar ao largo das questões comportamentais e de suas implicações na violência e na saúde. “A humanidade usa drogas desde que há humanidade. Elas são um feriado de si mesmo”, diz a professora do Departamento de Farmacologia do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Goiás Renata Mazaro e Costa, que faz pesquisas em toxicologia reprodutiva. “Não há registro de sociedade sem a presença de drogas. Elas não são apenas uma questão ética ou jurídica, mas também cultural e até religiosa”, complementa Franciele Cardoso.
Diante desse quadro, no caso da descriminalização, outra discussão se impõe. Ela seria ampla ou se restringiria a algumas substâncias? No caso da discussão dentro do Supremo Tribunal Federal (STF), a tendência era de que apenas o uso da maconha fosse descriminalizado. O Projeto de Lei 37/2013, do ministro Osmar Terra, mantém a criminalização do uso mesmo da maconha.
Pesquisador da dependência química há muitos anos, o professor Ronaldo Ramos Laranjeira, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que é pós-doutor em psiquiatria, é fortemente contrário à liberação do uso recreativo da Cannabis sativa. Em artigo publicado no El País, Laranjeira argumenta que a descriminalização agravará um quadro de problemas sociais no Brasil. O pesquisador, no entanto, ressalta que a prisão não é o melhor caminho – apoiando, portanto, o modelo existente hoje no País.

Com base em sua experiência no combate ao tráfico, o titular da Delegacia Estadual de Repressão a Narcóticos (Denarc), Fernando Gama, a descriminalização aumentará o número de consumidores e não eliminará o tráfico. “O traficante não se regularizará e continuará existindo um mercado paralelo”, diz. Para o delegado, é preciso seguir na política da repressão ao tráfico, mas também atuar na outra ponta. “Enquanto houver demanda, o mercado seguirá atrativo. E, com o tráfico, vários outros crimes ocorrem em paralelo”, avalia.
STF não substitui o Legislativo
No caso de a descriminalização do uso de drogas, em especial a maconha, virar realidade, a situação ainda não estará definida. A partir de então, será preciso caracterizar o que é tráfico, o que é uso. Um dos critérios balizadores é a quantidade. Mas, ainda assim, ele não encerraria a discussão. “Não há uma fórmula mágica”, diz Franciele Cardoso.
Sendo assim, seria preciso comprovar que a substância é efetivamente para uso e não para o comércio. “A quantidade não pode ser um critério exclusivo, pois senão pode haver injustiça. Por isso, é preciso levar em consideração as circunstâncias, os antecedentes, etc”, complementa Pedro Paulo Diniz.
O adiamento da decisão no STF é um “balde de água fria”, segundo Franciele Cardoso. Por outro lado, o criminalista questiona se o tribunal é a instância adequada para uma definição. “O Legislativo tem perdido a legitimidade diante da população. Assim, o Judiciário está ocupando esse vácuo”, diz Pedro Paulo Medeiros.
Há alguns anos, seria impensável sequer cogitar a descriminalização das drogas hoje ilícitas. Vários países optaram pela liberação, em maior ou menor grau. Observar os resultados alcançados neles pode ser um bom caminho para o Brasil definir o caminho que quer seguir.