Empreender na periferia é questão de sobrevivência

07 maio 2023 às 15h18

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O que para muitos é chamado de empreendedorismo, nas favelas ou periferias das grandes cidades, é conhecido como sobrevivência. Montar um negócio quando se tem dinheiro não é fácil. Agora, imagine fazer isso com a conta no vermelho? Seja pela perspectiva de oportunidade ou mesmo pela necessidade de se manter vivo, o empreendedorismo move a economia de comunidades que normalmente são desassistidas pelo poder público.
Esse é o caso de Willian Santos, 50, morador da Vila Megale, mais conhecida como ocupação Emílio Póvoa e que fica às margens do córrego Botafogo, no setor Criméia Leste, em Goiânia. Willian conta que nasceu, cresceu, casou-se e constituiu sua própria família na comunidade. Segundo ele, ao longo desses 50 anos, todos os cerca de 200 moradores da vila sobrevivem praticamente sem a ajuda do poder público e que as autoridades políticas só aparecem em épocas de campanhas.Willian tem o seu próprio negócio na área de áudio visual e diz que é desse ramo que sempre sustentou a família. Inclusive, está formando um dos filhos em Direito (faculdade privada) o que, para ele, é “um orgulho”.
Com os olhos brilhando, diz: “Sou muito grato a Deus por ter me dado a oportunidade de dar a ele o que não tive”. O morador afirma ainda que pela falta de regularização das escrituras dos terrenos, não conseguem um financiamento para alavancar os negócios. “Qual banco vai emprestar dinheiro para quem não tem nada a oferecer? Aqui é só com a ajuda de Deus mesmo. É com a cara e a coragem”, afirma.Willian esclarece que já trabalhou com carteira assinada, mas como não tinha qualificação profissional, o salário era pouco. Por isso, resolveu empreender mesmo com o caixa no vermelho. “Não me arrependo. Aqui ganho mais, não tenho estudo, mas tenho minha força de vontade e a inteligência que Deus me deu. Se o comerciante da favela/periferia tivesse o apoio necessário para obter créditos para compra de maquinários, com certeza seria bem melhor. Eu mesmo teria condições de aumentar meus ganhos”, afirma.
A reportagem foi a campo para mostrar um pouco dessa realidade vivida por milhares de pessoas em Goiânia. Para alguns, incluindo políticos, não existem favelas na Capital. Basta relembrar a afirmação de Iris Resende em sua carta de despedida da vida pública em 2016. Declarou: “Goiânia não convive com favelas. A nossa capital é a única de seu porte que não convive com poeira e lama”. Essa frase é uma hipérbole que não guarda referência com a realidade.
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revela que não somente em Goiânia, mas em todo Estado de Goiás, existem várias comunidades nessa condição. De acordo com o órgão, só na capital goiana existem sete favelas. São consideradas favelas: aglomerado subnormal formado por 51 ou mais casas nas quais os ocupantes não possuem a posse da terra, ou seja, não tem escritura e, por esse motivo, são considerados irregulares. Esses bairros estão localizados à beira de rodovias e às margens de córregos, com vias de circulação estreitas e de difícil acesso. Além disso, a falta de serviços públicos essenciais também faz parte da rotina desses moradores.

Roberto Teixeira, 61, também é morador do Emílio Póvoa e tem uma oficina onde recupera carros batidos. Ele diz que mora no bairro há 45 anos. Há dez, montou a fast funilaria que faz lanternagem e pintura de automóveis. Teixeira é casado, têm três filhos e vários netos. Ele esclarece que todos os filhos foram criados na comunidade e que um deles formou-se em Direito, a exemplo do filho do amigo Willian. “Paguei toda a faculdade particular do meu filho com o dinheiro vindo aqui da funilaria”, disse. Roberto revela que está na luta para a regulamentação da área onde mora, porque sem o título de propriedade da terra não consegue ampliar seu negócio. “Tudo que tenho foi na base da garra, da luta mesmo, nunca tive ajuda de governo. Para você ver (repórter), o bairro já tem 50 anos e não temos as escrituras. Se eu tivesse esse documento seria bem melhor. Não é fácil empreender na periferia, as pessoas têm muito preconceito, acham que todo mundo é bandido e não é. Somos todos trabalhadores honestos”, observa.
Nesses bairros, a economia é pujante e muitos dos moradores preferem trabalhar no comércio local. Logo, empreender na periferia é também gerar empregos. Dando uma volta por essas comunidades fica perceptível a pluralidade dos negócios. São diversos salões de beleza, distribuidoras de bebidas, empórios, panificadoras, salgaterias, confeitarias, depósitos de gás e água, armarinhos, mercados, mercearias, lojas esportivas, depósitos de materiais para construção, sorveterias. Há uma diversidade de empreendimentos, onde a população local tem acesso a praticamente tudo.
A costureira Vitória Ferreira Lima, 72, é natural de Belém do Pará e mora em Goiânia há 44 anos. Vitória reside no Jardim Goiás 1, conhecido como Vila Lobó. A paraense é uma senhora muito extrovertida e sorridente. Ela diz que desde os 14 anos trabalha com costura e garante que faz o que ama. Dona Vitória conta que não gosta quando chamam o seu bairro de Vila Lobó. “Aqui é uma parte nobre da capital. É o Jardim Goiás 1, este é o nome do setor – moro aqui na comunidade há 32 anos e gosto muito daqui”, enfatiza. A costureira ressalta que infelizmente existe muito preconceito com as pessoas que moram em vilas como a dela e, às vezes, o preconceito vem dos próprios representantes do poder público.
Vitória fala com muita alegria sobre alguns de seus clientes que são pessoas da alta sociedade goiana: juízes, promotores, advogados, psicólogos, padres e outros. Ela relembra um desses momentos de preconceito: “Tenho uma cliente que é esposa de um juiz federal. Certa vez, ela estava aqui com o seu carrão pretão, todo blindado, estacionado na minha porta. Uma viatura da Rotam estava fazendo ronda, viu o carro aqui, e então desceram e perguntaram quem era o dono daquele carro e o que ele estava fazendo ali. Quando ela se identificou, os policiais pediram desculpas e foram embora. Eu sei que estavam fazendo o trabalho deles, mas ficou claro que eles pensaram que se tratava de algum bandido”, pontua.

Dona Vitória garante que a grande maioria das pessoas que moram nas comunidades são trabalhadoras, e não bandidos como pensam alguns. Ela lembra que sempre recebe os clientes em sua residência, pois precisa tirar as medidas das roupas. “Infelizmente essa não foi a primeira vez que aconteceu isso. Mas não penso em sair da minha casinha que amo; que consegui com a costura. É aqui o meu trabalho e, enquanto eu tiver saúde – trabalharei”.
Segundo uma pesquisa realizada em março de 2023, pelo Instituto Data Favela, existem no Estado de Goiás 382 comunidades consideradas favelas/periferias, somando 1,2 milhões de habitantes que se dividem em 307 mil famílias, dos quais, 682 mil, são eleitores. Ainda de acordo com a mesma pesquisa, 41% dos entrevistados sonham em ter seu próprio negócio e somente 9% buscam por um emprego. Em nível nacional, 78% dos trabalhadores já empreenderam, empreendem ou desejam empreender. Outro dado importante, é que sete em cada dez moradores pensam em montar seu empreendimento na própria comunidade.
O senhor Aguinaldo de Souza, 51, casado e pai de dois filhos, é um dos que entra para essa estatística. Aguinaldo é morador do conjunto Riviera em Goiânia. Ele conta que era fixado em uma empresa quando decidiu trabalhar por conta própria. “Decidi empreender porque não estava mais querendo trabalhar para os outros, e também pela possibilidade de uma renda melhor, alem de estar perto da família”, conta.
Ele explica que tinha um amigo que já atuava no ramo de pipoca gourmet, o qual aceitou formar uma sociedade com ele e, daí em diante, o negócio deu muito certo. “Ficamos apenas dois meses com a sociedade e, após esse período, eu continuei sozinho. Já são quatro anos de sucesso total”, garante.
Aguinaldo faz apenas uma ressalva em relação à produção que está limitada, apesar de o produto ser bem aceito no mercado. Ele cita a falta de apoio do poder público para que isso aconteça. “Preciso de capital e as linhas de créditos existentes são com juros muito altos, que impossibilitam a aquisição pelos pequenos empreendedores.
“Maria Marcilane, 30, casada, natural do Estado do Maranhão, é uma empreendedora na área da beleza. Com o auxílio da sogra que lhe emprestou um pequeno espaço na casa onde moram, no jardim Guanabara l, montou seu pequeno salão onde faz design de unhas. “Há três anos trabalho para mim mesma. Não vou dizer que é fácil, mas nada nessa vida é fácil, ainda mais para nós. Trabalho muito, porém, não reclamo, só agradeço ao meu Deus “, disse emocionada.

Kele Rocha, 32, é uma das clientes, e estava sendo atendida por Marcilane no momento da entrevista. Kele retrucou: “Ela é a melhor! Não é à toa que venho de longe, como muitas outras clientes, para fazer unha com ela, faça chuva ou faça sol”.
Celso Athayde, coCEO da digital favela e CEO da favela Holding (conjunto de empresas que têm como objetivo central o desenvolvimento de favela e de seus moradores), explica que: “sem emprego, as pessoas se veem obrigadas a procurar alternativas e optam por investir em habilidades que podem virar serviços, como alimentação, estética e manutenção de eletrônicos, por exemplo”, disse em entrevista para a Revista Exame.
Foi exatamente o que aconteceu com José Ricardo, morador do bairro São Carlos, em Goiânia. Ricardo perdeu o emprego e, aos 32 anos, resolveu montar um local para estética automotiva e, para isso, usou somente as suas habilidades. “Meu caso foi pura necessidade, muitas contas para pagar e sabia que seria difícil arrumar outro trabalho para ganhar como antes, então – decidi colocar em prática um sonho antigo. Dei umas olhadas em alguns tutoriais sobre o tema na internet e fui para a prática. Graças a Deus deu tudo certo”, disse.
O barbeiro Heriberto santos,31, morador do jardim Botânico l, localizado às margens das nascentes do córrego Botafogo, relata que ao ficar desempregado e passar por uns momentos difíceis resolveu montar a barbearia. “Com uma reserva que eu tinha decidi montar meu próprio negócio, já que a sala é do meu pai e eu não pagaria aluguel. Eu já sabia exercer a função, mas depois fiz alguns cursos para me capacitar mais ainda. Lá se vão três anos e não me arrependo – foi a melhor coisa que fiz.
Sidney Araújo, 36, tem residência em Águas Lindas, no entorno de Brasília, e diz que o local é considerado favela. Araújo conta que antes de empreender trabalhava com tecnologia, mas sempre gostou de atuar em outras áreas, como cultura urbana.

Sidney que também já atuava como DJ, resolveu deixar o emprego para trabalhar naquilo que realmente gosta de fazer. “Faço parte de um projeto no qual dou aulas para DJs, danças, violão e empreendedorismo. Nós temos uma sede e tudo que eu vivo hoje tem a ver com o que eu empreendo, que é moda streetwear, voltado para a cultura periférica e urbana. Hoje sou um microempreendedor individual (MEI) ”, disse.
Sebrae Goiás
A analista do Sebrae Goiás, Patrícia Santiago, esclarece que a instituição atua junto ao público das periferias que querem empreender. “Em um primeiro momento fazemos as orientações ou consultorias e capacitações para melhorar a performance desse empreendedor no mercado”. Patrícia explica que, o empreendedor pode optar pelo atendimento online ou presencial. Nesses atendimentos são passadas orientações que estão relacionados ao microempreendedor individual, financeiro, planejamento, vendas e marketing e gestão de pessoas. Além disso, é ofertada a biblioteca digital que semanalmente é postado ebooks (livro digital) onde qualquer pessoa pode ter acesso gratuito a esse material.
Patrícia enfatiza que para aqueles empreendedores que tem alguma dificuldade em acessar o material digital, ele pode ir até uma unidade do Sebrae mais próximo de sua casa, onde participará de consultorias sem custo nenhum, dentro daquilo que ele precisa. “São vários cursos que com certeza capacitará esse futuro empreendedor e diminuirá as chances de o negócio dar errado”, disse.
A analista ressalta que o Sebrae possui ações voltadas ao Microempreendedor Individual (MEI), com capacitações e orientações financeiras. Inclusive, lembra – que de 22 a 26 de maio é a semana do MEI. Patrícia orienta, no entanto, que os atendimentos para esse público acontecem diariamente nas unidades do Sebrae, com especialistas nessa área e não precisa de agendamento prévio.
Ações da prefeitura
Silvio Sousa titular da Secretaria Municipal de Desenvolvimento e Economia Criativa (Sedec) da prefeitura de Goiânia, revela que a pasta tem atuado em várias frentes para ajudar esses empreendedores. Para aqueles mais vulneráveis que não tem uma garantia real para oferecer, Silvio destaca a criação de um fundo para ampará-los. Esse fundo garantidor da prefeitura, através da Sedec em conjunto com a Organização das Cooperativas do Brasil/GO (OCB-GO), a Federação do Comércio do Estado de Goiás (Fecomércio -GO), e as cooperativas de créditos do Estado de Goiás.
O secretário explica que o “Garante Goiás” será um fundo que possibilitará ao pequeno empreendedor ter acesso ao crédito. “Aquele empreendedor que não possui uma garantia para oferecer, poderá tomar recursos emprestado mesmo sem essa contrapartida real, ou seja, esse fundo de aval criado, é que será a validação junto as instituições financeiras onde eles irão fazer o empréstimo. “Silvio ressalta que a secretaria está preparando uma gama de ofertas de cursos para essas pessoas se qualificarem na área do empreendedorismo. O secretário ainda informa que para esses empreendedores a secretaria está vendo a possibilidade de desburocratização para a disponibilização de alvarás mais rápido e a criação de um CNPJ.
Em relação a falta de regularização e consequentemente das escrituras, Silvio concorda que isso realmente impede o empreendedor conseguir empréstimo. “É exatamente aí que entra o Garante Goiás, que é o fundo garantidor”, pontua. Ele lembra de uma pesquisa recente que coloca Goiânia entre as melhores cidades do país para se investir e empreender. De acordo com ele, a prova disso é a quantidade de novas empresas abertas de 2021 até o momento. Foram entregues nesse período mais de 20 mil alvarás de funcionamento na capital.
Expofavela
A segunda edição do evento que será organizado pela Central única das Favelas –GO (CUFA-GO), acontecerá nos dias 19 e 20 de maio no Centro de Convenções de Goiânia. O encontro dará a oportunidade para que os empreendedores da favela/periferia mostrem os seus produtos para o mundo.
O maior objetivo do evento segundo os organizadores, é conectar o empreendedor das favelas e periferias aos chamados investidores do asfalto, além, é claro, de motivar novos conhecimentos e oportunidades para ambos os lados no mundo dos negócios.
Na ocasião, os investidores e o público em geral poderão participar de várias palestras com nomes renomados na área do empreendedorismo, apresentações culturais e shows musicais. O empreendedor interessado em participar, basta se inscrever no site da Expofavela.