Elder Dias

Professor da Faculdade de Ciências Sociais (FCS) da Universidade Federal de Goiás (UFG), o peruano Carlos Ugo Santander é referência na área de ciência política, especificamente na área de Estudos Comparados sobre a América Latina, doutorado que cursou na Universidade de Brasília (UnB). É sempre procurado para entrevistas e como fonte de reportagens sobre a situação da política e da democracia no Brasil e em todo o continente.

No último mês, no entanto, ele viu aumentar a demanda em torno de si por causa do enrosco institucional em que se meteu o País onde é professor universitário desde 2011. O vandalismo terrorista de 8 de janeiro fez com que ele fosse requisitado para tentar analisar, da melhor forma possível, o caos que parecia iminente – e que, é bom lembrar, não está de todo afastado. Por causa dos ataques da extrema-direita ao centro do poder nacional, seus artigos foram publicados em vários veículos de diversos países, como Equador, Chile, Venezuela e Argentina, inclusive o mais reconhecido periódico portenho, o “El Clarín”.

Nesta entrevista ao Jornal Opção, ele fala sobre como a nova direita que atua sobre o Brasil também faz o mesmo em boa parte do continente. “É uma direita reciclada, que vem dos movimentos conservadores em toda a América Latina. No Brasil, não é diferente”, diz. Ele, porém, aponta o Uruguai como uma exceção em meio aos turbilhões políticos que assolam as nações da região – inclusive seu país, o Peru. “Eles [os uruguaios] têm uma classe política que não procura ruptura, mas, sim, que coloca a democracia como valor acima de tudo.”

A eleição foi mais apertada do que deveria, pelo grande favoritismo que tinha Lula em todas as pesquisas?

Sim, foi uma eleição apertada, mas vejo que muita gente ficou cansada do governo Bolsonaro. Foi uma surpresa, imagino, para aquele que foi derrotado. Porque, com todos os recursos disponíveis, estando na Presidência, tinha toda a vantagem tendo a máquina das mãos.  Mas creio que era uma eleição “ganha” por Lula, depois do resultado do primeiro turno. A margem poderia ser pequena, como foi, mas era impraticável reverter.

A política de desinformação gerou efeitos colaterais para o governo Bolsonaro

Desde a redemocratização, Bolsonaro conseguiu um feito inédito: tornou-se o primeiro presidente a não conseguir ser reeleito. Todas as análises mostram vários erros que ele cometeu durante o mandato e no período eleitoral. Para o sr., qual foi o fator essencial que o levou à derrota?

Primeiramente, a avaliação negativa de um segmento importante da população em relação ao governo, o que não tem a ver apenas com a questão da pandemia, mas também – e talvez principalmente – com o encarecimento do custo de vida. A política de desinformação também gerou efeitos colaterais, bem como as estratégias de comunicação na reta final, que levou a um “sem sentido”, um caos dentro do próprio governo. O outro lado – no caso o de Lula – precisou apenas ficar quieto, enquanto a candidatura do presidente se desgastava, sem organização e sem clareza. Mas, mesmo assim, acredito que com uma semana a mais e um rearranjo na ordem comunicacional, isso poderia ter levado Bolsonaro a reverter os números.

Este é um ponto fundamental: passamos por um governo claramente reacionário, extremista em vários pontos, agressivo no discurso e muitas vezes mal-educado mesmo. O que levou a praticamente metade dos votos da população ainda afiançarem tudo isso no segundo turno?

Essa “nova direita”, com esse tipo de comportamento, é uma direita reciclada, que vem dos movimentos conservadores em toda a América Latina. No Brasil, não é diferente. Por aqui, reciclam-se em três movimentos especificamente. O primeiro se apega ao contexto autoritário, aos 21 anos de ditadura militar e, até por isso, claro, muito vinculado aos militares e às forças de segurança; o segundo tem a ver com o movimento neopentecostal, que tenta se afirmar em uma série de valores, como a defesa da família, da tradição etc. e que, obviamente, impede qualquer tipo de mudança no âmbito social, impedindo o avanço de questões que hoje são considerados como democráticos; o terceiro movimento é vinculado a um segmento de liberais, que estão bastante vinculados à defesa do livre mercado. Os três movimentos estão dispostos a sacrificar a democracia e a consideram como algo secundário.

É bom observar um ponto aqui: todos os movimentos conservadores, historicamente – inclusive os do início do século 20 – consideraram a democracia como uma questão de segundo plano e sempre estiveram dispostos a apontar permanentemente, acima de tudo, para a manutenção do status quo.

Cada qual com seu interesse…

Claro. Essa nova direita se recicla com uma estratégia muito mais agressiva, na qual se destaca o uso eficiente das novas tecnologias de comunicação, como as redes sociais e também se afirmando por meio de velhas práticas, como o clientelismo. Apontam a afirmação da cidadania não no sentido crítico, reflexivo. O que procuram é o contrário: são eles os personagens que devem guiar o destino do País, excluindo a grande maioria da população, seja por meio da intolerância, pelo não reconhecimento da pluralidade de pensamentos. Então, por meio do clientelismo, busca-se repetir ou reproduzir essas velhas práticas que vêm desde o início do século 20.

Esses grupos gostam de se dirigir a seus militantes como “povo”. “Povo” seriam apenas os que se reunissem em torno de suas bandeiras. E aqui temos os militares ou adeptos do militarismo – como os CACs [caçadores, atiradores e colecionadores] e outros armamentistas –, os evangélicos neopentecostais e fundamentalistas religiosos também de outras religiões, além de liberais e “gente do mercado” que quer se locupletar financeiramente no meio dessa economia distópica e desigual que temos. No meio disso, sequestram a bandeira e as cores do País para afirmar seu nacionalismo. É um fenômeno que acontece da mesma forma em toda a América Latina?

É algo bastante heterogêneo. Porém, há movimentos em toda a América Latina mais ou menos com a mesma vertente. Essa nova direita está em todo o continente e busca estratégias para se manter visível e disputando o poder – no Chile, no Peru, na Argentina e em outros países. Qual o objetivo? Deslegitimar, erodir os fundamentos básicos da democracia e das instituições, sempre questionando aqueles governos que não se encontram em sintonia com aquilo que defendem. Como eu disse, é heterogêneo, porque, por exemplo, no Peru essa nova direita tentou reivindicar valores pátrios, mas não teve sucesso.

A candidata desse grupo, Keiko Fujimori, filha do ex-presidente e ditador Alberto Fujimori chegou a usar frequentemente a camisa da seleção peruana de futebol, à semelhança do que fazem os bolsonaristas por aqui.

Sim, mas não colou, perdeu a eleição. No Chile, [Jose Antonio] Kast, o candidato de direita nas últimas eleições, não precisou fazer esse tipo de mobilização “patriótica”. Ele tinha um forte vínculo ao passado pinochetista. Na Argentina, o sistema político está um pouco mais institucionalizado, mas não deixa de haver essa nova direita tentando deslegitimar. Mas isso está surgindo em forma de um pequeno movimento, por meio de [Javier] Milei, que ataca o governo em busca de obter protagonismo.

No Equador, temos no poder Guillermo Lasso, que é um presidente de direita que não se circunscreve nesse quadro. Ele faz parte da centro-direita tradicional. Na Colômbia, com o desgaste que sofreram os conservadores na negociação pela paz nos conflitos recentes [entre 2021 e 2022], levou a que Uribe [Alvaro Uribe, referência do campo da direita colombiana] e seu candidato [Rodolfo Hernández] fossem derrotados e que [Gustavo] Petro [presidente da Colômbia] tenha um protagonismo muito mais forte.

É preciso ressaltar que a pandemia trouxe muito descontentamento, porque muita gente entrou nos níveis de pobreza. Era natural que os movimentos de direita ou de extrema-direita não tivessem tanta ascendência a partir de agora e, também por isso, governos progressistas passaram a ter um grande avanço em toda a América Latina nos últimos anos.

Cuba e Venezuela se circunscrevem entre os regimes autoritários

Isso é bem verdade. Nos últimos anos, o mapa da América do Sul tem ficado cada vez mais vermelho, que é a cor sempre utilizada para o campo da esquerda. A família Bolsonaro se gabou de ser “resistência ao avanço do comunismo” e usava esse argumento para clamar o voto antipetista. O que há mais próximo do que seria esse “comunismo” – que, de fato, no sentido estrito, não existe em país algum – seriam os regimes de Cuba e da Venezuela. Como o sr. vê o processo nesses países? Criticamente falando, para onde rumam?

Cuba e Venezuela se circunscrevem entre os regimes autoritários, nesse caso de esquerda e socialistas. O que se percebe nesses países é uma grande carestia afetando a população, uma série de dificuldades para encaminhar um desenvolvimento econômico. Enfim, são regimes autoritários que impedem qualquer espaço maior de deliberação, de realização de eleições competitivas, de afirmação das liberdades. Anulam a participação da população. Mais do que socialistas, são regimes autoritários que, em nome de uma bandeira e de alguns princípios, tentam se afirmar para se diferenciar de outros regimes ou das democracias denominadas “liberais”.

São decorrência de processos históricos, no caso de Cuba, ou efeito de uma democracia que não conseguiu ampliar o bem-estar da população, no caso da Venezuela. É por isso que mesmo no governo de Nicolás Maduro [presidente venezuelano], os índices de violência urbana continuavam altos – Caracas [a capital da Venezuela] é uma das cidades mais violentas da América Latina e do mundo, juntamente com outras cidades, como San Salvador, capital de El Salvador [pequeno país da América Central]. Nos últimos anos, está diminuindo a violência urbana na Venezuela, mas porque mais de 4 milhões de pessoas, boa parte de jovens, fugiram do país. Ou seja, não se pode celebrar essa queda no índice da violência. O nível de carência por lá é terrível.

Uma questão importante para refletir: existe realmente um objetivo de tornar a Venezuela, de fato, socialista? Está havendo uma planificação da economia – como ocorreu na União Soviética, por exemplo, com Stálin, ou mesmo em Cuba durante um bom tempo? Enfim, existe um projeto ou Maduro quer apenas se sustentar no poder?

Tanto na Venezuela como em Cuba, o que há hoje são só respostas às dificuldades que têm os governos para administrar suas crises. Se formos observar Cuba, em que o regime poderia buscar estabilidade? Todo mundo ressalta a questão do embargo, mas, além desse fator, o país passa por uma série de situações de caráter estrutural. Basta pensar no valor agregado do setor produtivo cubano. Talvez nem a medicina represente de forma significativa algum valor agregado dentro da pauta de exportações em Cuba. O que se produz lá, geralmente, são produtos primários, não há nenhum salto qualitativo ou tecnológico para que Cuba, mesmo sem o embargo, venha a se posicionar como uma espécie de Taiwan da América Latina.

Não dá para Cuba ser uma “Taiwan de esquerda” ou uma mini-China…

Exato, não há capital para isso. O setor de pesquisa e desenvolvimento é muito precário. Há tentativas, por parte da política exterior cubana, de promover a medicina ou serviços médicos, mas isso é insignificante diante das necessidades que têm a população. Cuba sobrevive em função da conjuntura: se há um ciclo favorável aos preços do açúcar, por exemplo, as coisas ficam mais ou menos normalizadas. Mas é o mesmo problema estrutural que possuem muitas economias da América Latina.

É uma economia bastante dependente dos humores internacionais.

Totalmente. E Cuba depende demais dos Estados Unidos. As remessas dos cubanos que estão em Miami (EUA) talvez muito mais do que o país recebe por parte dos serviços médicos que prestam. É como também ocorre em El Salvador: 10% dos recursos gerados para o país vêm das remessas de familiares que moram nos Estados Unidos. Isso vale também para Honduras e outros países.

Sobre o embargo a Cuba, é preciso dizer ainda que é uma declaração questionável, mas que não deixa de ser pertinente, dentro da estratégia de política externa dos Estados Unidos, que é hegemônica, abusiva, arbitrária, de dominação do espaço geográfico próximo. Cuba nunca foi ameaça à economia dos Estados Unidos e hoje não é ameaça nem geopoliticamente.

Então, o embargo a Cuba hoje se tornou apenas um “capricho”, uma “pirraça” estadunidense?

Sim, exatamente. É uma forma de eles dizerem a nós, latino-americano, “olha, podemos fazer isso aqui”. Mas veja que o embargo acaba sendo funcional tanto para o regime cubano como para a política externa dos EUA.

Para o regime, funciona como uma justificativa?

Claro. Se tirar o embargo, Cuba fica abandonada, continua sendo apenas uma ilha.

Então, a retirada do embargo poderia acelerar a queda do regime castrista?

Sem o embargo, supostamente obrigaria Cuba a se mostrar competitiva, algo como, se eliminam o embargo, “agora vai!”. Só que isso implica flexibilizar regras para a chegada de investimentos. Muitos capitais deveriam, então, entrar e o país conseguir um impulso econômico. A questão é: quão importante é Cuba no cenário para isso? Por que não República Dominicana, Jamaica ou Equador?

Até porque Cuba não é o “alecrim dourado”…

Isso (risos). Eu estive em Cuba, não faz muito tempo, e assisti à declaração do embaixador da Coreia do Sul no país, com o qual tinham assinado um acordo comercial. O mais sintomático é que esse embaixador falava na satisfação de poder exportar semicondutores, eletrodomésticos, carros, computadores etc. E então lhe perguntaram “e o que você está esperando de Cuba?”. A resposta: “Ah, esperamos que Cuba nos exporte muitos charutos, chapéu, açúcar”. Isso mostra a assimetria que existe hoje entre Cuba e o resto do mundo.

Problema da Argentina é estrutural e vai se arrastar, com direita ou esquerda

Mas, na verdade, o Brasil não tem tanto destaque em itens sofisticados de exportação – talvez em algumas áreas peculiares, como a aeronáutica. Mas nossa indústria, em si, nunca foi priorizada para o mercado exterior. O que temos são commodities e talvez sejamos respeitados – ao contrário de países pequenos – porque temos muita quantidade de commodities. Isso talvez faça a diferença na negociação com uma China, por exemplo. Não é basicamente a mesma coisa que Cuba, a diferença sendo, então, que somos “grandes”?

No caso do Brasil, pelo menos existe uma indústria de tecnologia. Claro, o setor de commodities atenua o desbalanceamento que existe no comércio internacional, que é muito importante, porque, ao exportar algo, o Estado taxa o lucro e obtém seus recursos. Temos uma indústria que, de alguma forma, satisfaz o comércio interno. Mas os melhores negócios estão vinculados ao comércio internacional. O Brasil circunstancialmente aposta naquilo que tem, que são as commodities. Ninguém pensaria em abandoná-las para dar prioridade ao setor industrial. Mas a indústria precisa avançar cada vez mais para gerar valor agregado e entrada de capital para o Estado.

Vejamos o caso da Argentina. Qual é o grande problema por lá? Observamos, sim, grandes taxas de inflação, mas, se tomarmos o setor produtivo argentino, vamos verificar que ele parou no tempo. Como obter divisas para levar adiante uma política que cubra suas necessidades na balança comercial? Eles continuam exportando produtos primários, como a carne e a soja, mas cada vez menos essas divisas conseguem suprir as necessidades de receita para a Argentina. Uma causa estrutural, portanto, tem a ver com o setor produtivo, cuja deficiência leva, indiretamente, a um processo inflacionário, dada a insuficiência de captação de divisas no exterior. É um problema que vai se arrastar, estando a Argentina administrada pela direita ou pela esquerda.

Como entra o Mercosul nessa história? Hoje ele é mais importante para a Argentina do que para o Brasil, por exemplo?

A vantagem de ter um Mercosul é a ampliação do mercado. Em vez de produzir para uma população de 20 milhões, esse potencial vai se multiplicar. Mas o Mercosul, como tal, já existe. A questão está na capacidade de a indústria satisfazer a demanda, de competir. Será que os argentinos tem essa capacidade para abraçar esse mercado? Eu acredito que não.

E o acordo com a União Europeia?

Para a pequena indústria, serviria muito. Mas os europeus iriam destruir o pouco das indústrias nacionais que existem por aqui, por ter o domínio tecnológico e, em termos de custo, têm uma vantagem grande para competir. Já a América Latina tem uma série de limitações. Poderia até tirar vantagem em termos de obter divisas, mas seriam menores, em termos proporcionais, do que aquilo que terão os europeus exportando bens industrializados. Esse é o grande problema. Em termos de simetria, será bastante desproporcional.

Seria, como você contou, aquele acordo Cuba/Coreia do Sul, em nível continental?

Exato. Só que em vez de charutos e chapéus, exportaríamos soja.

E o que dizer desse acordo paralelo entre Uruguai e China, como isso pode interferir nas relações comerciais internas entre os países do Mercosul?

Além de obviamente ter a questão de exportar commodities, eu entendo que os uruguaios querem reverter um pouco seu modelo de desenvolvimento. Eles também estão muito fechados ao setor de serviços e querem ter a possibilidade de competir, ainda que com a pequena indústria que possuem, obtendo suas vantagens e suas divisas. O problema está em quebrar a regra. Eu acredito que o Uruguai vai acabar se submetendo aos acordos do Mercosul. É mais prejudicial para o Uruguai deixar o Mercosul do que ficar nele. Imagine, ainda que tenham pretensões ambiciosas legítimas, seria muito ruim para o Uruguai ter sobretaxados seus produtos no comércio com o Brasil. Veja, por exemplo, a questão dos registros fitossanitários, regulamentos para exportações ao Brasil e à Argentina. O Uruguai está tentando tensionar de alguma forma para ver se consegue algum tipo de vantagem.

Seria uma espécie de blefe para barganhar com os países vizinhos do mercado comum?

Pode ser, sim. O Mercosul ainda está um tanto engessado, é preciso traduzir para o papel aquilo que já está acordado. Ainda existe uma série de travas burocráticas, questões impositivas, tributárias. Não é um mercado perfeito, é um processo em construção. Então, todas essas tensões chamam atenção para que essas coisas sejam realmente definidas.

O Uruguai é realmente a democracia mais avançada da América Latina?

O surgimento do Uruguai como democracia modelo vem do fim do século 19 e início do século 20, após a Guerra Civil Uruguaia entre os blancos [hoje o Partido Nacional (PN) ou Partido Branco, de centro-direita, liberal, nacionalista e humanista] e os colorados [do Partido Colorado, um dos mais antigos da América do Sul, fundado em 1836 e de viés de centro-esquerda]. É interessante a resolução do conflito, porque não deixa de ser uma lição para a classe política dirigente de todo o continente. Os colorados ganharam a guerra e, mesmo vencendo, definiram uma espécie de acordo com os derrotados de modo com que esses também estivessem presentes no governo. Reconhecer seu adversário, inclusive dentro do próprio governo, permitiu que houvesse muitos avanços sociais. A política de bem-estar social do Uruguai é uma das pioneiras do mundo, com reconhecimento da previdência social, por exemplo.

Dar legitimidade à participação popular é muito importante

Isso ocorreu ainda antes dessa política ser implantada na Europa, mesmo nos países escandinavos?

Sim, sim. O Uruguai começa essa política com [José] Batlle y Ordóñez [presidente do Uruguai de 1903 a 1907 e de 1911 a 1915], com reconhecimento de direitos sociais, de previdência, definição das horas de trabalho e avanços trabalhistas em geral. Da mesma forma, evoluíram na discussão do papel do Estado na economia – os uruguaios nacionalizaram empresas inglesas quando ninguém imaginava esse tipo de intervencionismo. O Uruguai chegou ao sufrágio universal, ao voto feminino, ao direito ao divórcio, tudo isso muito antes dos vizinhos.

Isso foi, de certo modo, interrompido pela Guerra Fria, em que o país passou por um golpe de Estado, com o presidente Juan María Bordaberry [em junho de 1973], que estabeleceu um governo autoritário. Logo em seguida, porém, o Uruguai teve a continuidade do processo. Veja como é interessante: o presidente Mujica [Jose “Pepe” Mujica, presidente de 2010 a 2015], em seu governo, fez um plebiscito sobre a lei de anistia, para dar fim às polêmicas e à herança do regime autoritário. A população, no entanto, rejeitou a discussão do período de ditadura. Mujica apenas aceitou o resultado. Dar legitimidade à participação popular é muito importante, essencial, para alcançar esse estágio. A política dos governos de esquerda no país se fortaleceu. E não fortalece apenas os partidos, mas a própria democracia uruguaia, que continua se aperfeiçoando. Eles têm uma classe política que não procura ruptura, mas, sim, que coloca a democracia como valor acima de tudo. É essa lição que carregam desde o fim do século 19: pode-se ter um inimigo até a morte na guerra que depois pode se constituir simplesmente em um adversário que colabora diretamente com o governo. Infelizmente, não é a regra na América Latina.

Lula tem a fama de ser o “conciliador dos conciliadores”. Assim que acabou a eleição – e mesmo durante a campanha –, ele já buscou adversários, inclusive do partido [PL] de seu rival Bolsonaro. Por outro lado, alguns dizem que ele é um radical, o que é reforçado quando ele dá declarações como a de voltar a relembrar a deposição de Dilma Rousseff (PT), em 2016, tachando-a de “golpe”. Enfim, Lula mais une ou mais divide?

Lula é o melhor exemplo do que temos de resgatar daquilo que chamamos de populismo, mas não no sentido pejorativo. É bom levar que, entre as décadas de 30 e 50, houve essa política na América Latina, que, diante de uma crise mundial, procuraram levar adiante avanços de caráter social, por meio da conciliação. É uma boa herança, muito importante. Acreditar que o adversário é um inimigo a ser eliminado é um grave erro. Batlle y Ordóñez, no Uruguai, é um grande exemplo a seguir. Muitos populistas, no sentido de que fala Octavio Ianni [1926-2004, professor, sociólogo, escritor e intelectual brasileiro], tiveram melhores resultados com essa lógica de operar a política. Lula faz parte dessa herança muito eficiente, de congregar todo mundo e assim tentar levar adiante a maior quantidade de avanços sociais.

Sobre essas declarações, como a de que houve golpe contra Dilma em 2016, isso faz parte da política, de gestos necessários que ele precisa fazer para demarcar seu espaço, para se posicionar. São bandeiras para manter a coesão entre seus eleitores, não deixá-los se esquecerem de que é um presidente de esquerda, ainda que apoie [Rodrigo] Pacheco [PSD, presidente do Senado reeleito na semana passada] (risos). Esse pragmatismo tem tido historicamente um melhor resultado na América Latina do que a lógica com a qual opera a extrema direita, ou mesmo a direita convencional e a extrema esquerda.

Nisso de citar a extrema esquerda, o sr. se refere à situação de seu país, o Peru?

Sim, claro. Pedro Castillo [ex-presidente do Peru, eleito por um partido considerado de extrema esquerda e preso após tentar um golpe de Estado], ao ser eleito, não estava vinculado diretamente a nenhum partido. E, então, o partido [Perú Libre] que lhe deu suporte acreditava que poderia governar sendo minoritário, impondo uma série de reformas. Não é possível, dentro de um cenário heterogêneo, o mínimo que tem de procurar fazer é conciliar, negociar, não mexer nisso, mas aprovar aquilo. Essa intolerância levou a que Castillo não formasse uma coalizão. Curiosamente, esse partido minoritário – que aqui seria algo como o PSTU – pediu a renúncia do presidente ao próprio partido, algo como “não queremos você aqui”. Eles dinamitaram permanentemente qualquer tipo de aliança tendo à frente um líder da esquerda radical. Detalhe é que tinham também uma agenda conservadora, queriam transformar o Ministério da Mulher em Ministério da Família, eram contrários à legalização do aborto, enfim…

Diante dessas amarras históricas, qual seria a saída para implantar uma agenda progressista no continente?

A classe política precisa digerir alguns elementos históricos – e Lula os representa muito bem, fora as questões negativas que tem o populismo. A lógica com a política foi operada a América Latina nas experiências de 1930 a 1950 permitiu grandes avanços sociais, como a ampliação da democracia, em alguns casos, e também a afirmação de direitos. A questão é, apesar dos limites para avançar, conseguir avançar ao menos um pouquinho. Isso porque os segmentos conservadores estão muito arraigados por aqui, são muito presentes, até mesmo na esquerda são um componente social muito forte.

O caminho para alcançar mudanças não passa pela revolução, nem por um regime autoritário. Ao contrário, passa pela conciliação, pelos espaços de consenso

Em relação a ser um pouco mais avançado nessa questão na América Latina, além do Uruguai, temos também o Chile. Como o sr. avalia o governo do esquerdista Gabriel Boric por lá?

Boric está aprendendo em meio a dificuldades. A maior delas foi a não aprovação da nova Constituição pela população. Quando ele chega ao poder, surge como alguém novo, não apenas em idade, mas também como algo contrário aos partidos tradicionais, tanto de esquerda como de direita. Representava, por lá, uma oposição a toda a velha política que governou o Chile – Michelle Bachelet, Ricardo Lagos, Eduardo Frei [ex-presidentes do Chile].  Ele agora tem de ceder espaço para ganhar governabilidade, a única via é conciliando, para avançar em alguma coisa.

O caminho para realmente poder alcançar mudanças, inclusive mudanças substanciais, não passa pela revolução, nem por um regime autoritário como o da Venezuela. Ao contrário, passa pela conciliação, pela negociação, pelos espaços de consenso.

O presidente do México, Andrés López Obrador, foi eleito como alguém da esquerda, mas seu governo parece não ser bem sucedido em implantar medidas que tragam melhorias à sociedade. O que acontece com sua gestão?

López Obrador tem alguns comportamentos que remetem a uma esquerda conservadora, um populista que negligenciou medidas mais responsáveis durante a pandemia, como Bolsonaro por aqui. Ele busca adotar um posicionamento de reivindicação da identidade mexicana como parte de sua política internacional, de modo simbólico. O que está fazendo é tentar administrar o país sem maiores traumas, ainda que com posicionamentos um tanto controversos, mas realmente não está resolvendo problemas essências para os mexicanos, como a questão da migração e da alta taxa de pobreza.

E o que dizer do caso da Costa Rica, com uma democracia estável e que aposentou suas Forças Armadas, um país atípico em uma América Latina cheia de dramas e conflitos?

A Costa Rica, desde 1948, com José Figueres [presidente por três vezes, responsável por abolir o Exército e fazer reformas profundas no país], tiveram uma grande vantagem: quando surge a Guerra Fria, o Canal do Panamá [país vizinho, ao sul da Costa Rica] se torna ainda mais estratégico. Receberam, então, o apoio dos Estados Unidos, de modo que, mesmo sem Exército, nunca foram invadidos – o outro vizinho, o único ao norte, é a Nicarágua. Não se pode dizer que a Costa Rica seja um protetorado estadunidense, mas teriam todo apoio deles e da comunidade internacional em caso de sofrer um ataque, não tendo soldados para se defender. E, eliminando o militarismo, o risco de golpe de Estado cai sensivelmente. Assim, de fato, o sistema democrático com avanços sociais em que o país se mantém agrada aos Estados Unidos e dá estabilidade.

Se os cubanos conseguiram exportar a revolução, por que o Brasil não pode exportar a paz?

Em relação ao restante dessa América Latina, o Brasil às vezes parece ter erguido um muro. Parece, muitas vezes, manter uma postura de isolamento, como se ignorasse os demais vizinhos, de um modo até arrogante. Por outro lado, parece também prestar uma reverência maior aos Estados Unidos e à Europa. O sr. também percebe dessa forma?

Se o país quer ser protagonista, precisa se bancar. Não dá para querer dançar com a garota mais bonita, porque vai terminar sendo preterido. Os Estados Unidos têm uma agenda global e o Brasil precisa recuperar seu protagonismo no âmbito internacional. Lula fez isso em seus governos anteriores, mas precisa ser muito mais eficiente. Xiomara Zelaya, que agora venceu as últimas eleições de Honduras, precisou de apoio para as eleições de 2013, mas não teve. Lula era – como é – o grande líder das esquerdas e enviou apenas um vídeo pedindo voto poucos dias antes. Poderia ter feito muito mais, com o partido [PT] dado um maior suporte de modo a incrementar as estratégias políticas. Agora, ela ganhou, mas não foi por apoio das esquerdas. Esses movimentos precisam funcionar – como a nova direita tem feito, aliás. Se os cubanos conseguiram exportar a revolução, por que o Brasil não pode exportar a paz?