Everaldo Leite: “Lula e Campos Neto precisam se sentar à mesa para discutir os juros”
19 fevereiro 2023 às 00h00

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Elder Dias
Everaldo Leite é um economista engajado na vida pública. Além de assessor legislativo do quadro efetivo da Câmara de Goiânia, como economista, participa ativamente de debates nas redes sociais e em discussões acadêmicas – também tem no currículo o ofício de professor universitário.
Com sua experiência, Everaldo concedeu esta entrevista ao Jornal Opção centrando-se na problemática crise das últimas semanas a respeito da taxa de juros básicos da economia, a Selic – que, com 13,75% ao ano, é a maior do planeta –, colocou em polos opostos o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), e a autoridade monetária, Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central. A instituição ganhou autonomia desde fevereiro de 2021 e teve, nessa condição, Campos Neto como primeiro nomeado, pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
Para o economista goiano, é preciso que haja um consenso entre as partes. Para tanto, ele aposta na capacidade conciliatória do petista. “A principal maneira de haver um bom encaminhamento de todo o processo nessa crise é se sentarem todos à mesa de negociação”, afirma. Seu modo de pensar se aproxima bastante do ponto de vista de André Lara Resende, o economista-banqueiro que foi um dos mentores do Plano Real: “Uma taxa elevada aumenta o serviço da dívida, que é o que os cofres do país pagam de juros. Ou seja, quando há esse crescimento do serviço da dívida, vai faltar dinheiro para investimentos públicos. Essa é a grande questão para o governo.”
O governo precisa criar condições para que políticas monetária e fiscal se aproximem
O que está realmente “pegando” na relação entre o governo federal e a política do Banco Central, que hoje tem autonomia? Qual é a verdadeira razão?
A política monetária tem restrições no âmbito do Banco Central por conta do próprio mandato. Quando se fala nesse mandato, estamos falando sobre o foco que está sendo dado pelo próprio Banco Central à política monetária. Esse foco é estritamente em relação à inflação. Não exatamente à inflação atualmente, mas sobre a expectativa de inflação para os próximos trimestres. O BC, quando mantém a taxa de juros em 13,75%, evidentemente que sabe que não é algo desejado pela sociedade, porque tem um impacto forte na economia real, nos investimentos e nas possibilidades de investimentos. Se não há uma tendência de queda na taxa de juros – a Selic, no caso –, passa-se a ideia de que não é momento de investir. A taxa de juros real [a taxa de juros descontada da inflação] é altíssima, em torno de 8%. Esse índice não atrai ninguém para o investimento real. Afinal, o que é preferível, fazer uma aplicação em títulos do Tesouro a 8% ou investir em um negócio sem ter uma perspectiva de retorno, ou algo bem longe da aplicação? É evidente que a pessoa, mesmo que hoje tenha uma grande empresa, vai preferir colocar o dinheiro para render e não para elaborar um novo produto ou em aumentar produção.
Outra questão é a terrível desconexão que há no Brasil entre a política monetária e a política fiscal. É uma baboseira fora do comum, que não existe em nenhum outro lugar. Claro que existe um impacto fortíssimo na política fiscal quando há uma taxa de juros tão alta como a que temos. Ora, uma taxa elevada aumenta o serviço da dívida, que é o que os cofres do país pagam de juros. Ou seja, quando há esse crescimento do serviço da dívida, vai faltar dinheiro para investimentos públicos. Essa é a grande questão para o governo. E aqui vai uma crítica ao próprio presidente Lula: não que ele esteja errado ao falar o que tem falado – Lula está certo, porque politicamente é importante dizer que se sente desagradado, que não gosta dessa política do Banco Central. Mas o governo precisa criar as condições para que a política monetária se aproxime da política fiscal. É necessário se sentar com o Banco Central e criar uma estratégia comum, com uma convergência de entendimento, para que a gente tenha uma condição de crescimento da economia. Do contrário, vamos ficar parados. A discussão, do jeito que estava acontecendo – Lula dizendo uma coisa de lá, Campos Neto respondendo do lado de cá –, isso é totalmente improducente, não vai levar a nada.
Se não houver uma negociação entre essas partes, a estagnação continua?
A tendência é que sim. Por pior que possa parecer ao governo essa condição de ter um Banco Central independente, o melhor a ser feito é sentar na mesa de negociação e dialogar. Resumindo: governo Lula e Banco Central precisam conversar. O problema é que fica parecendo que o BC se tornou um quarto poder.
Parece algo esquizofrênico: o Banco Central pode ser realmente autônomo ou independente se seu presidente participava, pelo menos até semanas atrás, de um grupo de WhatsApp de ministros e ex-ministros de Jair Bolsonaro? Campos Neto tem um campo ideológico e parece servir a esse campo ideológico. A pergunta, então, é: até que ponto existe uma autonomia real ou até que ponto ele está sendo uma espécie de “muro de contenção” à implantação das políticas públicas do novo governo?
Evidentemente, Campos Neto tem uma visão ideológica. Afinal, foi colocado no cargo praticamente por Paulo Guedes [ministro da Economia durante todo o governo Bolsonaro], que é um adido do liberalismo mais tacanho que se conhece. É preciso ressaltar que o presidente do BC, também por ser neto de Roberto Campos [referência do pensamento econômico de direita no Brasil do século passado, o economista foi presidente do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) no governo de Juscelino Kubitschek, de 1958 a 1959, e ministro do Planejamento do governo do general Castelo Branco, de 1964 a 1967], chega com uma imagem pré-determinada, não tem como evitar isso.
Ocorre que o Banco Central precisa seguir os parâmetros que utiliza pelo menos desde o governo Fernando Henrique Cardoso [PSDB, presidente de 1995 a 2002] para fazer um diagnóstico correto da economia e para que isso leve a decisões assertivas com relação à taxa de juros. Outro detalhe, que é uma verdade que incomoda, é que os bancos e as instituições financeiras têm seus interesses e os colocam na formulação desse diagnóstico, já que o BC faz a consulta aos bancos antes de determinar a taxa de juros. Só que em todo país é assim, e vai existir seriedade e interesses.
E como esse tipo de desvio poderia ser evitado?
Para superar essa barreira, um caminho seria ter um Banco Central não independente. Outro seria criar novos parâmetros institucionais, como, por exemplo, a questão do mandato. Um mandato voltado somente ao controle da inflação é realmente algo justo? Penso que não, que seria necessário estar atento à inflação, mas também à taxa de crescimento e à taxa de desemprego. Porque, se o crescimento econômico e o nível de desemprego não são responsabilidade do BC, esses fatores podem ser negados pela instituição. Ora, basta jogar uma taxa de juros para quanto desejar – e sempre jogam sempre além do necessário, porque bancos centrais costumam ser conservadores, para não ter grandes problemas para si lá na frente. Ou seja, colocam o país de joelhos, sem produção e sem perspectiva, mas ficam bem na foto, porque o objetivo que tinham [no caso, o controle da inflação] foi cumprido. Portanto, a mudança dos parâmetros da instituição é algo a se pensar, porque seria importante, o Banco Central passaria a ter responsabilidade não só com os bancos, com o equilíbrio monetário, mas com as políticas públicas do País.

Não sou favorável, de forma alguma, a qualquer aumento da meta inflacionária
Outro ponto é que se há uma projeção de inflação “x” para o ano que vem, sempre existe uma preocupação, por parte do governo, de convergi-la para um índice menor. Ninguém, nenhum governante, quer uma inflação do tipo argentina, todos querem convergir para um número melhor. Isso é muito bom, inclusive, para os candidatos governistas. Quem está no governo e chega à eleição com um índice inflacionário batendo no teto provavelmente terá muitas dificuldades de vencer o pleito, porque a inflação mexe diretamente com a vida das pessoas, de uma forma muito palpável, causando problemas sérios.
Como o sr. vê a questão, que vem sendo discutida, de um aumento da meta de inflação?
Não sou favorável, de forma alguma, a qualquer aumento da meta inflacionária. Isso cria um problema sério, porque leva a uma sensação de que, a qualquer momento, será apenas aumentar a meta de inflação para tudo estar resolvido. Fazer isso é como comprar a caixa de bombom por 10 reais, mas levando 250 gramas em vez de 500 gramas. É uma ilusão perigosa. Já vi na mídia algumas pessoas, até respeitáveis, dizendo que nosso problema poderia ser solucionado com o aumento da meta, mas não vejo assim.
Boa parte da esquerda, como Ciro Gomes [PDT, candidato derrotado à Presidência na última eleição] tem uma visão de que um pouco de inflação não seria tão prejudicial assim, se o País crescer…
Um pouco de inflação é o ideal, é o que faz com que a economia se movimente. Veja o caso do Japão, onde não há inflação nenhuma. Quando têm alguma inflação, ainda que pequena, eles comemoram, porque não ter pelo menos um pouco de inflação é sinal de que o país estagnou. Claro, ter uma inflação descontrolada é um problema sério, porque os preços mudam, mas salários e contratos não mudam no mesmo ritmo, o que causa, durante qualquer demora, um sofrimento grande a pessoas e a empresas.
O sr. acha que existiu alguma tática por parte de Lula, ao abrir críticas tão explícitas à política de juros do Banco Central?
No campo político, Lula tem de falar, porque vai se criando uma ideia de que o governo quer fazer alguma coisa, quer implantar suas ações, mas a política monetária nesse calibre não permite. Ou seja, o governo mostra que está perdendo, que está patinando, por causa do que determina o Banco Central. De qualquer forma, este ano vai ser muito difícil para o governo federal, porque o aumento da taxa de juros ocorreu de forma muito acelerada. Basta ver que em 15 meses saímos de um índice de 2% para um patamar acima de 13%. Foi um absurdo. E é preciso também levar em conta que o tipo de inflação que o Brasil tem não se cura facilmente com taxa de juros: nós temos uma inflação de oferta, enquanto essa política de juros influencia quando há uma inflação de demanda, para inibir o consumo. Ora, o que não temos hoje é demanda, vivemos com uma taxa de desemprego alta, rendimentos caindo, incertezas futuras que não deixam as pessoas gastarem, uma inadimplência altíssima, um endividamento fora do comum etc. Está na cara que nosso problema não é de demanda, ou está todo mundo correndo atrás de produto para comprar?
Na verdade, o que temos visto são algumas demandas estranhas: fila para comprar avião, fila para adquirir helicóptero ou uma SUV de luxo. Não é isso que está incidindo sobre a taxa de inflação, que tem a ver com uma cesta de produtos muito mais popular.
É problema utilizar a taxa de juros para esse tipo de inflação que temos
O que, então, está pressionando – ou impulsionando – a inflação?
O que pressiona a inflação é o que está incidindo sobre a oferta. Por exemplo, nós tivemos um problema sério que foi com a desvalorização da taxa de juros, que faz com que qualquer produto que se compre no exterior esteja com preço mais alto. A agricultura e a indústria brasileira utilizam bastante insumos de fora e estamos pagando mais caro por esses produtos. Outro problema é a falta de componentes que foi agravada pela pandemia e pela desorganização das economias internacionais, gerando carência em muitos itens. Ficamos sem vários componentes que eram importantes. Isso tudo acaba contribuindo para uma inflação de oferta. O combustível atrelado ao valor do petróleo internacional, da mesma forma, também foi um fator. Acabamos tendo o que chamamos como essa “inflação de oferta”, com itens como alimentação, gasolina, energia etc.
A taxa de juros não combate esse tipo de evento, que é determinado fora do País. Quando uma economia resolve colocar a taxa de juros em um nível elevado, faz isso para diminuir a demanda – significando aqui consumo e investimentos –, porque ela vai ficar com custo mais caro para ser atendida. O problema maior é utilizar a taxa de juros para esse tipo de inflação atual que temos. Mas o Banco Central trabalha com o mecanismo de juros olhando apenas inflação, independentemente de ser ela de oferta ou de demanda.
O economista André Lara Resende, um dos criadores do Plano Real, já escreveu em artigo e também já declarou em entrevistas sobre como a alta taxa de juros compromete o serviço da dívida pública e o efeito disso durante meses. Fez uma comparação desse comprometimento ao drama que foi criado no mercado com a PEC [proposta de emenda à Constituição] da Transição. Como o sr. vê essa declaração?
Basta isso para ver como são as coisas: os recursos desse “espaço fiscal” que Lula ganhou com a aprovação da PEC no fim do ano, para incrementar o orçamento de 2023, são menores daquilo que já foi gasto com o serviço da dívida. Os economistas mais ortodoxos não querem enxergar que alguns gastos importantíssimos para a sociedade, que envolvem políticas públicas essenciais, são muito mais fundamentais do que ficar segurando juros altos, com o argumento de “não podemos virar uma Argentina”. Ora, estamos longe – nem nunca estivermos perto – de nos tornar uma Argentina: somos um país com endividamento em moeda real e com uma poupança internacional, uma reserva, que é de cerca de 20% de nosso PIB [produto interno bruto]. Isso segura qualquer especulação.

A estrutura econômica do Brasil é muito superior à da Argentina
É uma comparação tal uma que buscasse fazer analogia entre as dívidas de um clube como o Flamengo e a de uma Portuguesa de Desportos (SP), que certamente deve valores absolutos bem menores. Ocorre que uma eventual dívida do Flamengo ou do Palmeiras, em relação à capacidade de captação de recursos e de obtenção de crédito de um grande clube desses, é muito menos preocupante. Faz sentido comparar Brasil à Argentina, na economia?
Não existe essa comparação. Ela é feita por parte da elite para passar medo em quem não conhece economia. Infelizmente, o drama é que a maioria das pessoas realmente tem conhecimento sobre o assunto. A estrutura econômica do Brasil é muito superior à da Argentina. Não temos nenhum tipo de problema, nem perto, daquilo que os argentinos vivem. Nossos problemas estruturais não têm a ver diretamente com a economia: desigualdade social, educação, saúde, infraestrutura básica, enfim, vários problemas que não são conjunturais, mas que são vividos e revividos há muito tempo. Mas, economicamente falando, próximo ao que a Argentina vive hoje e também já há muito tempo, o Brasil está muito longe desse cenário.
Diante de toda essa nossa conjuntura, o que poderia ser encaminhado para gerar uma solução?
Como já disse no início, a principal maneira de haver um bom encaminhamento de todo o processo nessa crise é se sentarem todos à mesa de negociação: Lula, Campos Neto, Haddad [Fernando Haddad, ministro da Fazenda], Tebet [Simone Tebet, ministra do Planejamento, Alckmin [Geraldo Alckmin, vice-presidente e também ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio e Serviços].
Lula precisa que mais ministros falem sobre essa questão do que ele próprio. O presidente precisa se colocar no papel de arbitrar, se estar na mesa para ser o conciliador, para convergir as ideias. Claro que isso será algo difícil de ocorrer da forma ideal, até porque, de tempos em tempos, o presidente do BC precisa reafirmar essa independência do Banco Central diante do mercado. O que não pode acontecer é o processo ficar enrolado, com Lula atacando um ponto e Roberto Campos Neto na defensiva, ou vice-versa. Isso não fará o País ir para frente.
A situação do Brasil, no momento, é semelhante à de um acampamento. Quem costuma acampar certamente já pegou uma situação em que, depois de uma forte chuva, é preciso fazer uma fogueira para aquecer depois do temporal. Só que está tudo molhado – a terra, o capim, o mato, a madeira, tudo está encharcado. Mas, acima de tudo, você sabe que vai perder muito tempo tentando acender essa fogueira, mas que é essencial conseguir isso. É isso que vamos ver acontecer durante esse ano inteiro: Lula e Haddad tentando acender essa fogueira.