Elder Dias e Marcos Aurélio Silva

Desde o período de pré-campanha, o presidente eleito Luis Inácio Lula da Silva (PT) deu declarações de que a igualdade racial seria tema central de sua gestão. Logo no princípio da formação do grupo de Transição, integrantes foram chamados para elaborar os relatórios sobre o setor. Entre os convidados uma militante goiana histórica: Iêda Leal. 

A pedagoga, coordenadora nacional do Movimento Negro Unificado (MNU) e coordenadora de Combate ao Racismo da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), foi a primeira goiana a integrar equipe de transição do governo de Lula. Seu currículo a credenciou para compor o grupo que visa mapear e apontar caminhos para a reconstrução das políticas públicas raciais no país. Ela, que é natural de Pires do Rio, fala com propriedade e conhecimento de luta do movimento negro.

Em entrevista ao Jornal Opção, Iêda fez um Raio-X dos desmontes nas políticas públicas raciais e dos desafios para os próximos anos. Ela também confirma a expectativa da criação do Ministério de Igualdade Racial e aponta quais as prioridades devem ser trabalhadas pelo novo governo. 

Marcos Aurélio Silva – Quais são as primeiras impressões que a sra. colheu até agora no trabalho da equipe de transição, lidando com o tema da igualdade racial?
Nosso compromisso com o tema já está bem amadurecido. Quando o governo eleito nos chama e monta uma equipe, a gente tem a possibilidade de tentar verificar as reais condições das políticas públicas que o Brasil, nos últimos anos, não ofereceu para a população, principalmente no que diz respeito ao combate ao racismo – e isso é papel do Estado. Então, num primeiro momento, ter essa equipe formada era a certeza do compromisso firmado durante a campanha, por parte de um homem público, estadista, que já foi presidente da República, que era o de escutar as lideranças representativas de toda a Nação, na busca de fazer diferente. Temos uma expectativa muito boa, porque podemos perceber que, além de nós, todo o País está envolvido, porque existem muitos crimes contra a população negra e é preciso estancar isso. É uma tarefa que tomamos como nossa e temos o dever de executá-la, de modo a fazer com que este País possa melhorar para todos, inclusive para nós, população negra, que somos a maioria.

Elder Dias – Como está sendo articulado esse trabalho dentro do grupo de trabalho?
Há uma proposta muito bacana, que é a escuta das organizações do País e da sociedade civil. O melhor que temos é a interação entre todas as equipes, com um plano traçado para além desse sentimento de solidariedade. Cada pasta envolvida está colaborando e buscando ouvir as pessoas que moram no campo e na cidade, aquelas que vivem nas cidades e não têm moradia. Estamos escutando os quilombolas, os indígenas, as pessoas que estão desempregadas. Precisamos trabalhar para a diminuição da violência e o reforço na segurança pública. Temos tido uma conversa muito ampla, ouvido muito e concluindo que precisamos, de fato, fazer muito, sempre por meio do diálogo, para poder acertar. É necessário acertar porque o tempo não nos permite ficar apenas na elaboração do conteúdo, precisamos partir para a ação, para que a população possa perceber essa mudança.

Elder Dias – Há um prazo para entregar os relatórios?
Sim, o primeiro relatório é muito mais voltado para um diagnóstico o mais preciso possível, de modo que dê a possibilidade de o presidente Lula e sua equipe possam compreender a complexidade e a necessidade de ter uma política voltada para a igualdade racial no País. Entregamos nesta semana o primeiro trabalho, que é bem localizado, e isso já foi muito importante. Vem agora o segundo relatório, para o qual temos até antes da diplomação [antecipada na semana passada para o dia 12 de dezembro]. Precisamos fazer tudo o mais rapidamente possível, para que haja uma elaboração com maiores detalhes, principalmente sobre como podem ser os primeiros cem dias de governo, com as possibilidades de organização administrativa, do ponto de vista de mostrar a importância de já ter um organograma para a integração às políticas da gestão. Da mesma forma, precisamos ter profissionais em campo para atuar no combate à desigualdade racial.

Foto: Arquivo pessoal

Elder Dias – Há dificuldades – ou uma maior dificuldades – para acesso a dados na área de sua equipe?
Temos essa dificuldade, mas também temos tentado, com a coordenação geral da transição, encaminhar as solicitações dos dados e informações. Se falta algum dado ou algum detalhe, refazemos a solicitação. A obrigação do governo atual é de rotina, então fica uma situação ruim esse tipo de procedimento de não colaborar, porque estamos tratando da coisa pública. Não tem a ver com política, mas com administração. Então, seria necessário o comprometimento, em tempo e hora, para podermos formular os passos do governo que vai assumir. É uma situação descabida, que nos deixa refletindo sobre o descompromisso de quem sai, que não se envolve com a tarefa de forma a ter uma atitude republicana. De qualquer forma, vamos seguindo assim. Não temos dificuldade de solicitar e, se não há os dados que precisamos, buscamos entender que, se não os há, é porque não houve política pública para a área. Ou seja, não é uma situação tranquila, mas é algo com que temos de lidar e nos posicionar.

Marcos Aurélio Silva – Nos últimos anos, principalmente em sua área de atuação, são muitos os descaminhos que houve no governo atual. Mas, pelo que se pode perceber, há algo que possa ser aproveitado – de acordo com o que foi apurado até o momento –, em termos de políticas públicas na área-tema para o futuro governo?
Falando sobre igualdade racial, houve um conjunto de destruição das políticas. Houve até uma tentativa de não discutir, porque a equipe que estava destacada pelo atual governo – bem como o próprio governo – não tinha interesse político no combate ao racismo. Não é novidade para ninguém, mas a gente percebe que não foram feitas ações, até porque não havia o reconhecimento da importância em trabalhar essas políticas, mesmo em um País em que a maioria é de negros. Temos de retomar a preocupação em torno da reconstrução da história e da luta contra todo tipo de preconceito. O racismo, a transfobia e o feminicídio invadem lares e vidas e causam estranheza e muita dor.

“Falando sobre igualdade racial, houve um conjunto de destruição das políticas”

Da mesma forma, o racismo está aí, presente. Sobre isso, mesmo assim, há um dado positivo: o povo demonstrou mais coragem e houve um número maior de denúncias. Isso é muito bom. O ruim é o despreparo de quem recebe essas denúncias e que poderia fazer cumprir a legislação, mas não faz seu dever. Se a gente encontra uma terra arrasada nessa área, temos de começar lá onde se parou, na proposta de quem agora vai assumir o Brasil. Infelizmente, as políticas para o setor pararam com a saída da presidente Dilma [Rousseff (PT), que sofreu processo de impeachment e foi afastada do cargo em abril de 2016]. Precisamos retomar o que foi construído na área pelos governos anteriores até o dela e depois foi paralisado com esses governos seguintes. Precisamos levar em conta neste momento, também, o que fizeram as grandes organizações nacionais de combate ao racismo nestes anos, com alertas, manifestações, marchas. Isso é algo muito importante que saiu do seio da sociedade civil e reforçou a luta contra o racismo.

Portanto, não houve nenhum projeto nessa área nos últimos anos. Não é uma constatação leviana, mas do que percebemos observando a falta de envolvimento com a questão em um governo que nunca acreditou nessa pauta.

Marcos Aurélio Silva – Na última semana, o grupo de transição divulgou uma nota, em alusão ao Dia da Consciência Negra, cujo texto afirmava que a democracia precisava ser antirrascista. Na prática, o que seria isso?
Não combinam com a democracia ações que impedem o desenvolvimento da comunidade em geral. Não se pode falar em democracia sem ter um plano de combate ao racismo, por exemplo, no Ministério da Educação, para que se faça uma formação adequada dos profissionais em sala de aula em relação a esse quesito, de modo que o debate chegue da maneira correta em todos os espaços. Democracia não combina com sexismo, machismo, racismo. A gente precisa compreender que temos uma legislação que garante esses direitos. Essa legislação precisa ser retomada e organizada em todos os Poderes. Quando alertamos sobre a experiência de Zumbi e Dandara em Pernambuco e Alagoas, estamos dizendo que já houve situações em que conseguimos viver democraticamente dividindo responsabilidades, dando conta do respeito à pluralidade humana. Por outro lado, quando vemos o próprio Estado invadindo territórios, matando pessoas por conta de sua cor, percebemos claramente que existe um descompasso. Precisamos restaurar as lembranças do que é uma cidade, um Estado, um País onde há democracia. A liberdade de ir e vir precisa ser realizada concretamente, não pode ser só para alguns. O “viver bem” ou o “morar bem” não pode ser só de alguns. O “bem viver” precisa ser para todos. Precisamos fazer essa conversa de uma melhor divisão das riquezas e da apropriação devida de uma renda básica para todos. Democracia é isso, não pode ser a democracia do desemprego, das filas para comer osso, da descontinuidade do investimento do SUS [Sistema Único de Saúde].

Foto: Arquivo pessoal

O SUS é o melhor plano de saúde do Brasil (enfática). Abarca cuidados de antes do nascimento até os idosos, com especial atenção à prevenção, que precisa ser absolutamente priorizada, para que não tenhamos tantas pessoas doentes, para acabar com a ideia de que é preciso ficar doente para ser atendido e, quando atendido, ficar em uma fila em que muitas vezes não dá tempo de esperar mais. É preciso reverter isso. A democracia precisa ser defendida como uma capa que protege a sociedade dessas investidas neofascistas, do aparecimento de gente que deseja a morte do outro simplesmente por pensar diferente. Ora, pensar diferente é justamente a riqueza do debate. Não dá para condescender com pedidos de volta da ditadura, de apologia à tortura, de clamar às Forças Armadas para tomar o poder no País. Além de ser algo “démodé”, é muita falta de conhecimento e de trato com a coisa pública. Temos aqui, hoje, uma relação entre os Poderes para ajudar no desenvolvimento. A democracia não pode retroceder, não dá para aceitar esse retrocesso que estamos vendo muitos desejarem hoje.

Elder Dias – Dentro desse contexto, a sra. considera importante a criação de um Ministério da Igualdade Racial?
Sim, nesse contexto de valorização das vidas e do reconhecimento da importância da população negra é essencial. É uma forma de fazer com que o Estado reconheça que a escravidão foi um crime contra a humanidade por quase 400 anos. Especialmente, um crime contra a população negra, que, repito, é a maioria deste País. Temos vários gargalos que precisam ser resolvidos e é necessário ter um órgão que possa emanar políticas de igualdade racial. Daí a importância de um ministério, para que isso possa ocorrer de maneira organizada e articulada. É algo realmente muito importante a sensibilidade do presidente Lula a essa questão, de modo a incorporar a pasta. 

Marcos Aurélio Silva –  Tem o compromisso do Lula com a criação desse ministério. Isso é dado como certo para os representantes do setor?
É um compromisso. E o Lula tem sempre dito que é fundamental resolver, ou tentar, continuar contribuindo para que o racismo possa ser –  vou ser ousada em dizer –  aniquilado e extirpado de nossa sociedade. Isso só vai acontecer se houver unidade nas ações e contar com os não negros nesse processo de combater o racismo naquilo que chamamos de antirracistas, que precisam se colocar a disposição para ajudar o Brasil a sair dessa estatística horrorosa e dessa situação que vivemos o tempo todo: que são as ações racistas de nossa sociedade. 

Marcos Aurélio Silva –  O governo Lula criando o Ministério da Igualdade Racial, a sra. consegue listar os pontos primordiais de atuação?
O governo sempre está dizendo que acabar com a miséria é o passo mais importante. Esse é um foco que significa garantir salários para as pessoas, emprego e renda. Essa é uma forma de garantir dignidade das pessoas. Precisamos ter políticas na reconstrução da possibilidade de todas as pessoas e nas idades corretas, ter o trabalho. É isso que dará condições para que as pessoas decidam o rumo de suas vidas.

“O racismo, a transfobia e o feminicídio invadem lares e vidas e causam estranheza e muita dor”

Precisamos sair dessa situação de desemprego, ter acesso à saúde e segurança pública. Sobre esse último tema, é preciso haver imediatamente uma mudança na forma de abordagem policial. Precisamos de um projeto de proteção a vidas no nosso País. 

Marcos Aurélio Silva – Nos últimos quatro anos, quando se falava na questão racial, ganhou muito espaço na mídia a forma com que estava sendo conduzido os trabalhos da Fundação Palmares. A impressão é de que a entidade não estava em defesa das pautas negras. A sra. acredita que será possível resgatar a imagem da fundação? Há hoje um pensando voltado para isso?
Nós vivemos momento difícil que o racismo produz. Negros que se comportam absolutamente contra a valorização e memória do povo negro. A Fundação Palmares é um espaço de memória e recolhimento e reavivamento delas. É tarefa do próximo governo, que assumo em 1º de janeiro, ter uma política voltada para reorganização e reconstrução da instituição. Houve uma tentativa de destruir a Fundação e nós ficamos o tempo todo em alerta e denunciando para evitar. 

O governo, que agora saí, não tinha compromisso algum com a memória dos negros. Então temos o compromisso de construir e continuar dizendo para as pessoas o quanto é importante essa Fundação para o Brasil. Mais do que isso, é importante a reconstrução de memórias no País todo. A Fundação Palmares será um ponto importante para continuar dialogando com os governos locais sobre as memórias do povo negro no nosso País. A Fundação Palmares é para nós um campo de resistência. Logicamente vamos cuidar disso. 

Elder Dias –  Falando de cotas raciais. Há uma busca atual pelo aperfeiçoamento dessa política pública?
O que foi verificado é que, depois de 10 anos, pudéssemos fazer uma avaliação. Quando houve oportunidade, racistas que ganharam votos e foram eleitos, eles querem transfigurar a política de cotas no nosso País. É uma avaliação que precisa ser dita, que a política seja continua, pois foi uma das propostas de reparação do nosso País, que deu certo, mas precisa de mais aporte financeiro. Isso porque além de entrar pelas cotas, é preciso garantir a permanência desses alunos nas universidades em todo o País. Onde ainda não há essa proposta de cotas, é preciso acontecer de forma correta.

Não estamos dizendo que não se deve ter proposta para pessoas pobres e que querem frequentar as universidades, ou outras pessoas em outros pertencimentos sociais. Depois de 10 anos chegamos a conclusão de que as cotas raciais continuem. O racismo não acabou. Pelo contrário,  precisamos de mais mecanismos para combatê-lo. Então, diferente do que alguns dizem, não é esmola do governo, mas é um projeto de reparação de um crime que foi colocado para comunidade negra: o afastamento da educação.

Estamos falando de uma coisa simples. Qualquer pessoa que tenha acumulo da leitura do que foi a escravidão no País, vai compreender que as cotas é um projeto para poder dar fim da não presença dos negros no ensino superior. E não estou querendo dizer que não deve haver investimentos nos anos iniciais, no ensino fundamental e médio. Mas cotas tem que ser uma realidade no País e tem que estar amparada e protegida pelo governo federal.

Elder Dias – Recentemente, o jornal “Estadão” publicou uma foto ilustrativa sobre a chacina de Aracruz (ES), em que um adolescente branco matou pelo menos quatro pessoas em uma escola. Só que a mão que estampava a foto era de uma pessoa negra. Como explicar esse tipo de “gafe” em pleno século 21?
É o resultado da crueldade do racismo. Nós não vamos nos calar diante disso. A comunicação e este veículo continua carregando todos os resquícios da escravidão e do racismo. “Se é crime, é um negro que comete”. Dizem isso mesmo sabendo que foi um branco. O jornal coloca a fotografia daquilo que está introjetado no seu inconsciente e que ele manifesta em algum momento. Precisa haver a denúncia. O veículo devia ter pedido desculpas. E não foi feito isso.

Temos uma coisa no mês da Consciência Negra, que é onde nós nos fortalecemos que é preciso continuar dizendo que a consciência está cada vez mais tomando conta da população e dando a possibilidade das pessoas verificarem o quanto precisamos continuar trabalhando, por conta disso.

Era uma notícia que precisava ser dada, dizendo do crime horroroso que aconteceu, do descompasso que temos com a política de armamento, de considerações absurdas que nós ainda temos que fazer, como uma família constituída pode produzir esse tipo de violência e como o jovem pode acabar com outras famílias de forma tão violenta, dentro de um espaço que deveria ser protegido por nós, que é a escola. Mas daí, vem o veículo de comunicação e comete um crime racial, dizendo que essa a violência e os assassinatos são cometidos pelos negros. Isso não é verdade.

Precisa ter um pedido de desculpa. Cada vez que alguém comete esse tipo de crime racial, relacionando a violência como algo provocado pelos negros, deveria ser penalizado. É preciso uma formação de política racial. Esse é um meio de comunicação se se comunica de forma equivocada e racista.

Elder Dias – A sra. é uma militante sindical histórica em Goiás. Como foi viver esta campanha em meio a um nível inédito de violência política?
Às vezes observávamos com tristeza. Mas tínhamos a certeza de que precisávamos fazer algo para tirar o nosso País dessa situação de descompasso político. A política é necessária, e o debate também. Mas a violência, não. Precisamos continuar debatendo e discutindo.

Percebemos que as pessoas conseguiram jogar toda carga em ódio e em certezas absolutamente descabidas sobre a realidade do Brasil. Para nós, do ponto de vista da educação, é ‘deseducativo’. A composição de mentiras foram demasiadas. Nós, professores e servidores da educação sempre conseguimos trabalhar dizendo para nossos alunos que a melhor forma de dialogar é com a verdade, com o conteúdo da história e assim continuar construindo o nosso País. O que houve neste ano, me assustou, mas deu a certeza de que o estudo, a convivência, a relação familiar e em sociedade, de que a gente não pode ficar parado diante disso. Precisamos nos mexer e tirar dessa onda de ódio as pessoas que nós conhecemos. 

“É necessário ter um órgão que possa emanar políticas de igualdade racial”

Existem situações que são incontroláveis, o afloramento do fascismo em nosso País. Era algo que estava adormecido, mas ganhou contornos maléficos para nós. Aos neofascistas, o rigo da lei. Aos racistas, o rigor da lei. Não é uma questão de fazer debate ou tentar convencer o outro.

Precisamos aprender melhor a escolher nossos representantes. Isso em todos os estágios, desde associação de bairros, conselho escolar, nos grêmios das escolas e tudo mais. As pessoas precisam entender o processo eleitoral e assim escolher os melhores, dando voz, transparência e oportunidades para as mulheres, negros, idosos, população LGBTQIA+ e para juventude. Esse é o caminho melhor.