Fazenda São Lukas: de cativeiro sexual a símbolo de resistência do MST na luta pela reforma agrária

29 setembro 2023 às 23h27

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A Fazenda São Lukas, localizada no município de Hidrolândia, a 30 km de Goiânia, já foi usada para tráfico humano e exploração sexual de mulheres. Condenado em 2009, um grupo criminoso usava a terra para aprisionar mulheres e depois traficá-las como objetos sexuais para a Suiça, onde eram submetidas a todo tipo de exploração. Com a prisão dos criminosos, a fazenda ficou sem proprietário e passou a integrar patrimônio da União em 2016. Seis anos depois, a terra foi cedida para o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). A prefeitura do município, porém, requereu a posse da terra judicialmente e ganhou. Em agosto, a história ganhou um novo capítulo: a fazenda voltou para a posse do Incra e vai se tornar um assentamento do MST. O único impasse é que o prefeito se recusa a sair da propriedade.
Foi no mês das mulheres, em março, onde centenas de mulheres sem terra se reuniram para ocupar a Fazenda São Lukas. A ação foi realizada por agricultoras ligadas ao movimento e fez parte da Jornada Nacional de Luta das Mulheres Sem Terra, que ocorre em todo país durante o mês de março. A finalidade é que a propriedade ocupada, que não esteja cumprindo sua função social, seja destinada para a reforma agrária. Isso é o que prevê a Constituição Federal há 46 anos. Sendo assim, o que o MST faz, de fato, é ocupação e não invasão de terra.
Algumas militantes do movimento contaram à reportagem que o ato foi feito para chamar a atenção das autoridades e denunciar o abandono da terra. “Não ficamos nem 24 horas. Mandaram choque, cavalaria, escudos, drones, foi muito opressor”, contou Alice Pereira. As 600 famílias ocuparam o local no dia 24 de março de 2023. Com a opressão militar em cima dos sem terra, restaram apenas 300 pessoas.
Apesar da rápida desocupação pela Polícia Militar de Goiás (PMGO), nascia ali o acampamento Dona Neura. O nome foi escolhido para resgatar a memória de Neurice Torres, mulher e militante sem terra que foi vítima de feminicídio no dia 11 de setembro de 2022. Dona Neura foi encontrada morta, seminua e com a cabeça mergulhada em uma caixa d’água no município de Minaçu, em Goiás. Como de costume, o marido foi o responsável pelo assassinato.
Quando a reportagem foi visitar o acampamento, fazia exatamente um ano da morte de Dona Neura. Os trabalhadores do campo fizeram uma roda de oração em memória e homenagem à irmã de luta que foi cruelmente assassinada. Cerca de 50 pessoas, homens e mulheres, que traziam na pele a marca da luta, cantaram e choraram a morte de Neurice. Ela estava ali com eles, simbolicamente representada na figura de uma planta.
Após a homenagem, os sem terra continuaram reunidos em roda, agora para dançar e celebrar a vida. A professora da rede municipal de educação, Célia Regina, estava no acampamento para a segunda atividade de biodança, prática integrativa que utiliza movimento de dança para promover o bem-estar, relaxar, estimular a criatividade. Após o choro pelo luto, o que se via nos rostos presentes era alegria, celebração e resistência.
À 200m dos acampados, havia uma casa, onde um funcionário da prefeitura de Hidrolândia morava para “fiscalizar” o movimento. No local tinha tudo que os sem terra mais precisavam: água e energia. Todos os dias, no entanto, o homem ia até o poço artesiano onde as famílias buscavam água e cortava a mangueira, além de desligar o registro para que os sem terra não utilizassem da água.
O funcionário público recebe ordens do prefeito de Hidrolândia José Délio Alves Junior (UB). Como a fazenda está localizada a cerca de 10 km do município, José acha que a terra é dele. O prefeito entrou com uma ação direta de inconstitucionalidade contra a União Federal e contra o Incra requerendo a posse da terra. Apesar de ter perdido o processo judicial, a prefeitura segue ocupando a fazenda ilegalmente e impedindo as famílias de produzirem na terra que é delas por direito.
E pior, além de impedir o uso da água e da energia, o funcionário da prefeitura ainda instalou uma cerca elétrica no local, colocando em risco a vida de 300 pessoas: mulheres, homens, jovens, idosos e crianças. No último fim de semana, uma senhora sem terra que havia chegado no acampamento há cerca de uma semana tomou um choque e precisou ser internada.

Procurada pela reportagem, a defesa da prefeitura de Hidrolândia mentiu sobre a posse da terra. “O juiz voltou atrás e revogou a decisão que concedeu a liminar, e determinar a redistribuição dos autos em um processo de reintegração por ser prevento, até então encontrar-se aguardando a nova apreciação do pedido da liminar por parte do município”, relatou o advogado Weverson Nogueira Gonçalves.
De fato, o juiz manteve a posse com a prefeitura na decisão do dia 16 de agosto. O juiz Jesus Crisóstomo de Almeida concedeu a Medida Liminar para a prefeitura. Dois dias depois, no entanto, o juiz federal Paulo Ernane Moreira Barros derrubou a liminar e manteve a posse da Fazenda São Lukas com o Incra. Questionado sobre a última decisão, o advogado não respondeu mais o Jornal Opção.
O superintendente regional do Incra em Goiás, Elias D’Angelo, disse que fez uma reunião com as duas promotoras de justiça do município para tentar resolver a questão já que com o prefeito não tem diálogo. “O Incra já aprovou a criação do projeto, a portaria de criação do projeto foi aprovada pelo Governo Federal e o edital para as famílias assentadas já saiu. Mas o prefeito é irredutível porque ele é totalmente contrário às famílias”, disse.
Querendo ou não, a prefeitura precisa desocupar a área imediatamente para que ela possa, enfim, ser destinada à reforma agrária e vire um assentamento do MST. Como a nova gestão federal do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) defende o movimento dos trabalhadores e tem destinado recursos para a reforma no país, os grandes proprietários de terra no Brasil têm tentado de todas as formas criminalizar o MST.
A reportagem acionou a Defensoria Pública do Estado de Goiás (DPE-GO) para denunciar a violação aos direitos humanos, mas a DPE informou que, como a área está sob jurisdição da União, quem ficará responsável pela fiscalização é a Defensoria Pública da União (DPU).
CPI vexatória termina com dois relatórios e nenhum voto
Apesar das solicitações feitas ao presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL) a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do MST não foi prorrogada e terminou nesta terça-feira, 26, sem que o relatório final fosse votado. O texto de Ricardo Salles (PL-SP), que pedia o indiciamento de 11 pessoas, ficou registrado na Casa, mas sem efeito legal. Esta foi a terceira comissão instaurada contra o movimento social que terminou sem desfecho.
A primeira, ocorrida em 2003, teve início após Lula ter tirado uma fotografia com um boné do movimento social. Os trabalhos terminaram dois anos depois, com um relatório final da oposição, formulado por Aberlardo Lupion, pai do atual presidente da Frente Agropecuária, Pedro Lupion. O documento, no entanto, não teve indiciamentos.
Já em 2009, um requerimento do ex-ministro de Bolsonaro Onyx Lorenzoni instalou a segunda CPMI, com a relatoria do governista Jilmar Tatto (PT). A comissão durou um ano e meio, mas também não teve nenhum efeito legal.
Nada foi apurado porque não é crime lutar por um direito. Além de querer criminalizar o movimento social, que existe desde 1984, a oposição tinha a intenção de atacar o governo do presidente Lula para impedir que ele faça, finalmente, a tão necessária reforma agrária. O governo tem apoiado políticas para a agricultura familiar, fato que tem incomodado o agronegócio brasileiro e os grandes proprietários de terra do país. Apesar da tentativa falha de criminalização, o MST saiu fortalecido.
Romilda Moreira, integrante do acampamento Dona Neura, disse que as tentativas de manchar a imagem dos sem terra foram em vão.
“Por incrível que pareça, a população sempre se mostrou a favor do MST. Como o movimento produz muito alimento, as famílias da periferia que passam dificuldade sempre receberam doações e se mostraram muito gratas. Principalmente quando veio a pandemia e o cenário piorou muito. O MST sempre esteve ali doando alimentos, então a população nunca teve nada contra o movimento”, explicou ela.
Integrante do agrupamento há mais de 10 anos, Romilda traz a luta nos olhos, nas palavras e nos gestos. Ela conta que conheceu os sem terra quando a mãe ficou sozinha com 6 filhos para criar e não tinha para onde ir. Sem condições de pagar aluguel, ela andava pela estrada com os filhos quando avistou o movimento pela primeira vez em Cocalzinho de Goiás.
“Ela falou ‘é aqui que eu vou encostar com meus filhos’. E lá ela ficou e foi acolhida. Às vezes ela saía para trabalhar e eram os sem terra quem cuidava da gente. Crescemos ali. Depois minha mãe foi assentada, eu fui pra cidade e voltei a estudar. Mesmo assim, pensei: sei que minhas origens estão ali, então eu vou voltar e contribuir”, contou Romilda.
Foi nesse período que surgiu a oportunidade de um assentamento no complexo Santa Mônica, perto de Corumbá de Goiás, e foi para lá que ela foi, retornando para a luta sem terra. Na fazenda Santa Mônica, onde ela participou do assentamento Dom Tomás Balduíno, foram produzidos alimentos que mataram a fome de pessoas em situação de vulnerabilidade durante a pandemia da Covid-19. Desde a descoberta da doença, em 2020, o movimento doou mais de 8 mil toneladas de alimentos e 2 milhões e meio de marmitas solidárias.
O nome do assentamento em Santa Mônica foi escolhido em homenagem a Dom Tomás Balduíno, voz combativa e incansável na luta pelos direitos humanos. Participante da Comissão Pastoral da Terra (CPT), atuou nas causas indigenista, camponesa e quilombola, em defesa da reforma agrária e da demarcação de terras indígenas. Dom Tomás faleceu em decorrência de uma trombo embolia pulmonar, no dia 02 de maio de 2014.
No assentamento, Romilda também criou os filhos, como foi criada pela mãe. Os filhos dela hoje se formaram e também atuam no apoio a luta agrária. Ela conta, com orgulho, que a filha se formou em enfermagem e o filho trabalha no Banco do Brasil. Romilda, de 39 anos, é quem cuida do encaminhamento dos jovens sem terra às universidades.
Alice Pereira, de 36 anos, está presente no acampamento Dona Neura, em Hidrolândia desde o dia da primeira ocupação, em março. “Meu sonho é ter um pedacinho de terra para mim plantar”, contou ela animada. Uma mulher, assim como Romilda, também de liderança e papel fundamental no MST, Alice conta como a polícia foi truculenta durante a CPI do MST. No dia 14 de agosto, parlamentares acompanhados de mais de 10 carros de polícia invadiram o acampamento sob justificativa de procurar vestígios que mostrassem que o movimento era “criminoso”.
O relator da CPI do MST, Ricardo Salles, também ex-ministro do meio ambiente do ex-presidente Jair Bolsonaro, chegou ao acampamento e ficou por 15 minutos, como relataram os integrantes do movimento. Os trabalhadores do campo contam que foram surpreendidos com a quantidade de carros policiais. “Eles chegaram abrindo as nossas barracas, sem permissão, como se estivessem procurando drogas”, contou uma acampada. Com tristeza tão grande a ponto de sufocar a revolta, ela disse que foram tratados como bandidos.
Salles e sua equipe procurando indícios que pudessem incriminar o movimento. | Foto: Matheus Alves
Além da PMGO, também estiveram viaturas do Comando de Policiamento Especializado (CPE). Salles foi acompanhado dos deputados Gustavo Gayer (PL GO) e Magda Moffato, que perdeu seu comando no PL e se filiou ao Patriota. Além disso, após o início da CPI, ela foi substituída por outro deputado e passou a não integrar mais a comissão. “Eles não conversaram com ninguém e ficaram por cerca de 15 minutos”, relatou um dos integrantes do Dona Neura.
Presidida pelo deputado Tenente-Coronel Zucco (Republicanos), a Comissão terminou antes que o previsto. Articulada pela oposição, a CPI tinha como finalidade “investigar a atuação do grupo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), do seu real propósito, assim como dos seus financiadores”.
Salles, relator da CPI e ex-ministro do meio ambiente, acusou o MST de uma série de irregularidades. De acordo com ele, testemunhos e documentos apresentados mostram abusos contra assentados e privilégios de dirigentes. Além disso, o relator acusou o MST de se apropriar de recursos públicos. Nenhuma das acusações, no entanto, foram provadas. Tanto que a comissão acabou antes do prazo e terminou sem que o relatório final fosse votado.
O relatório divulgado apresentou um conjunto de inconsistências, com fragilidades nas informações, sem provas e conclusões genéricas. A Comissão foi instalada no dia 17 de maio deste ano e chega ao fim com uma derrota política da bancada agro militar, representada por deputados e deputadas que fazem oposição ao governo.
A CPI, sem objeto determinado, realizou diversas sessões em seis meses de atuação, sem apresentar o contraditório, com um relator acusado de liderar um esquema de contrabando para os Estados Unidos e Europa de madeira extraída ilegalmente na Amazônia. Além dos indiciamentos, o documento propôs recuperar vários Projetos de Lei (PL), pautados pela Bancada Ruralista nos últimos anos, com o objetivo de avançar em processos de criminalização das organizações sociais e populares em nosso país. No requerimento de criação do colegiado, os parlamentares citam invasões promovidas pelo movimento no mês de março. Os opositores também citam uma suposta influência do governo federal no grupo, em razão de haver, na versão deles, mais invasões de propriedades em dois meses de Lula no poder do que no governo de Jair Bolsonaro.
Relator da CPI, o deputado Ricardo Salles (PL-SP) afirmou que, como o MST não tem personalidade jurídica, a comissão irá rastrear os recursos da organização por meio de outras instituições que integram o movimento. A questão é que o movimento tem sim uma representação jurídica. É um movimento social antigo, que existe e resiste desde 1984. O MST tem hoje 5 mil assentamentos com 500 mil famílias.

O ex-ministro do meio ambiente Salles ficou conhecido por defender passar ‘a boiada’ e ‘mudar’ regras ambientais enquanto a atenção da mídia e da população estava voltada para a Covid-19. Além disso, ele também é acusado de liderar um esquema de contrabando para os Estados Unidos e Europa de madeira extraída ilegalmente na Amazônia. De acordo com as investigações, o Ministério do Meio Ambiente, sob sua gestão, e o Ibama manipularam pareceres normativos e editaram documentos para beneficiar madeireiras e empresas de exportação que tiveram cargas de madeira apreendidas.
O deputado, que também é advogado, já foi investigado também por aumento de R$ 7,4 milhões em seu patrimônio. Quando se candidatou pela primeira vez, ao cargo de vereador em 2012, declarou na época à Justiça Eleitoral ter R$ 1,4 milhão em bens. Após enriquecer às custas do dinheiro público, Salles tenta criminalizar um movimento popular que reivindica um direito garantido pela Constituição.
Violência policial contra o movimento popular
Além da visita opressora da polícia militar de Goiás durante a CPI do MST, a primeira ocupação do acampamento Dona Neura também foi marcada por violência policial. Em março, após algumas horas de ocupação, os trabalhadores foram surpreendidos por uma repressão militar muito grande. A Polícia Militar de Goiás despejou as famílias sem ordem judicial.
“Não ficamos nem 24 horas. Mandaram choque, cavalaria, escudos, drones, foi muito opressor. Tinham 600 famílias e pelo menos metade desistiram do movimento. Como as famílias foram recriminadas, elas ficaram com muito medo né. Os policiais fizeram um círculo e colocou a gente lá no meio. Aí eles foram fechando, foram fechando, cada vez mais. Para oprimir mesmo. Foi muito difícil”, contou Alice
Questionados se foram agredidos, os trabalhadores disseram que só não apanharam porque fugiram e recuaram. Após a violência psicológica contra os acampados, os policiais começaram a ameaçar tirar todos a força do local. E não ficou somente na ameaça, a PMGO fretou ônibus para aterrorizar os sem terra.
“Eles ficavam falando o tempo todo: Vou liberar um ônibus para levar vocês embora. Trouxeram os ônibus, colocaram todo mundo dentro e ficaram oprimindo. Quando chegou lá na frente, eles jogaram todo mundo na BR”, concluiu a sem terra.
No Acampamento Popular Dom Tomás Balduíno, os agricultores também sofreram foram violentados pela Polícia Militar do Estado de Goiás. Os agentes chegaram a justificar a ação alegando que os atuais proprietários da área recorreram à Justiça em busca de uma ordem de reintegração de posse para, então, retirar as pessoas acampadas. Para o movimento, a medida seria ilegal, já que a destinação a ser dada à área depende de decisão judicial e da mediação do Conselho de Conflitos Fundiários (CCF).
Apesar das decisões judiciais em favor do MST, os policiais seguem tratando o movimento como criminoso em todo o país. Recentemente, mais de 50 famílias de trabalhadores rurais que vivem no acampamento Rosimeire Araújo, no município de em Piritiba, na Bahia, foram surpreendidas com uma ação violenta de despejo, a área foi ocupada pelas famílias Sem Terra em março de 2022.
Fazenda São Lukas possui 678.588 m² | Foto: Guilherme Alves
Brasil nunca fez reforma agrária
No Brasil, das 130,5 mil grandes propriedades rurais, 69,2 mil são improdutivas, com mais de 228,5 milhões de hectares. A maioria dessas propriedades acaba sendo tomada por grileiros, verdadeiros invasores de terra, que ocupam ilegalmente as fazendas e depois as vendem para produtores rurais por um preço superfaturado. Além das propriedades griladas, há também aquelas que são invadidas por garimpeiros. Contra estes criminosos, não há a condenação por parte de alguns parlamentares. Pelo contrário, há inclusive o apoio na “passagem da boiada”. Nos últimos anos, houve um aumento excessivo na concentração de terras em latifúndios improdutivos e em setores voltados exclusivamente à exportação.
A área improdutiva das terras brasileiras é mais de duas vezes superior ao conjunto das áreas indígenas no país. Os dados são do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária.
Além dos índios que foram roubados, escravizados e assassinados pelos portugueses, os povos negros sofreram com a escravidão por quase 400 anos. Com a abolição da escravatura em 1988, milhares de escravos recém libertos, sem terem onde morar, foram para as áreas das margens da cidade, as chamadas periferias. Foi assim que, posteriomente, surgiram as favelas. Esses povos nunca tiveram uma reparação e nunca tiveram seus direitos garantidos de volta. O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo, com uma das distribuições de terras também entre as mais desiguais.
Um estudo, publicado na revista Valor Econômico, revelou a extensão da desigualdade de terras no Brasil e compreende como os resultados apontam a ineficácia de medidas de regulamentação fundiária como a MP 910, na redução da desigualdade no país. A MP 910, especificamente, tem por argumento regularizar as terras dos pequenos proprietários. O mapa da desigualdade foi uma colaboração de pesquisadores do Imaflora, ESALQ/USP, UNICAMP, UFPA, UFMG, IPAM, Kadaster, PNUMA e SEI (confira abaixo).

A análise mostra também que em todos os Estados os 10% maiores imóveis ocupam mais de 50% da área agrícola. Em seis Estados e no Matopiba, os 10% maiores imóveis detêm mais de 70% da área. O Matopiba é uma região formada pelo estado do Tocantins e partes dos estados do Maranhão, Piauí e Bahia, onde ocorreu forte expansão agrícola a partir da segunda metade dos anos 1980 especialmente no cultivo de grãos. O nome é um acrônimo formado pelas siglas dos quatro estados estados (MA + TO + PI + BA).
Os pesquisadores acreditam que as propostas de mudar as regras atuais, em discussão no Congresso – como a medida provisória 910/2019, que pode ir a votação estes dias – acentuam o quadro em que a concentração de terras no Brasil “é associada a processos históricos de grilagem, conflitos sociais e impactos ambientais”. As propostas alteram leis que tratam de unidades de conservação e terras indígenas, e de terras públicas ainda sem destino definido.
A concentração de terras provoca a tragédia social em um país onde 33 milhões de pessoas não têm onde morar, segundo relatório do Programa das Nações Unidas para Assentamentos Humanos (ONU). Como bem colocou o líder do MST na CPI, João Pedro Stédile, para quem se incomoda com o movimento e quer acabar com o MST de uma vez por todas, é simples: basta fazer a Reforma Agrária no país e o movimento acaba. Em 1861 os Estados Unidos fez sua reforma agrária, fato diferencial para o progresso no país. Atualmente, cerca de 30% da população americana é formada por famílias que ascenderam socialmente graças à distribuição de terras. Em 1950, a China fez sua reforma agrária e quase metade da terra cultivada (cerca de 47 milhões de hectares) foi distribuída para 300 milhões de camponeses.
A França, no entanto, realizou o primeiro grande movimento político de reforma agrária da Modernidade, em 1789, juntamente com a Revolução Francesa. Países como Japão, Inglaterra, Holanda, Egito, Bolívia, México, Vietnã, Cuba, entre outros, também já tiveram a experiência há séculos. Além de além de beneficiar dezenas de milhares de famílias atualmente acampadas, a democratização do acesso à terra daria um novo impulso à economia brasileira. Mas por que o Brasil enfrenta tanta resistência para distribuir suas terras, perguntou a reportagem aos sem terra de Hidrolândia, no interior de Goiás, que é um das maiores potências do agronegócio brasileiro.
Porque eles querem tudo para eles. O tanto de terra que Ronaldo Caiado não herdou da mãe, do pai, do avô e ele quer mais. Por que não reparte? Ele não precisa disso tudo. E quanto mais eles querem, mais eles têm. E quanto mais eles têm, mais eles querem novamente. É um ciclo sem fim. Aí as pessoas falam: ‘agro é pop, agro é vida, agro é tudo’. A gente nem sabe o que eles [produtores do agronegócio] produzem. A gente não come isso. Eles exportam de toneladas e toneladas. A gente não sabe o que está vindo. Alguém come milho do agronegócio? Feijão? Arroz? É tudo produzido pelos pequenos produtores. Agro é vida só se for para eles e para o bolso deles”, respondeu Alice.
Atualmente, os bancos e o capital financeiro se apropriam dos ganhos da agricultura. A taxa de renda média da produção para o agricultor é de 13%, os outros 87% vão para o capital financeiro e às multinacionais.
O problema maior é que a terra não é, ou não deveria ser, apenas de um grupo específico. Muito menos de um grupo que não cumpre a função social da terra, como prevê a legislação brasileira. Mas muito pelo contrário, ainda desmata, degrada e destrói os recursos naturais. A função social da terra é cumprida quando, simultaneamente, a propriedade é racionalmente aproveitada; conserva os recursos naturais e preserva o meio ambiente; observa as disposições legais que regulam as relações de trabalho e favorece o bem estar dos proprietários e dos trabalhadores.
Na prática, os latifundiários ainda estão desobrigados de um princípio supremo para a legitimação do direito de propriedade: a função social. Ocorre que as forças políticas conservadoras conseguiram inserir no texto constitucional o parágrafo único do Art. 186 da Constituição determinando “tratamento especial para a aferição do cumprimento da função social pela propriedade produtiva”. Até hoje essa qualificação foi ignorada pela legislação infraconstitucional. Com isso, a grande propriedade que atende aos requisitos dos graus de utilização e de eficiência da exploração se mantém imune à desapropriação, ainda que escravize trabalhadores, destrua e contamine os recursos naturais e envenene a mesa dos brasileiros.
Para evitar ou dificultar a desapropriação mesmo das grandes propriedades improdutivas, a gestão da política agrária passou a ignorar a exigência da atualização dos índices de produtividade. Assim, latifúndios improdutivos são fraudulentamente convertidos em produtivos, tornado a grande propriedade rural, mesmo que improdutiva, imune à ‘desapropriação sancionatória’.
Alguns setores do próprio agronegócio brasileiro já se conscientizaram que é preciso adotar um novo modelo de produção, com mais respeito ao meio ambiente, sem desmatamento e uso de agrotóxicos que contaminam os alimentos, o solo, a água e o ar. Mas uma parte da bancada ruralista ainda resiste às mudanças e se apega aos modelos tradicionais de monocultura voltada para exportação e produção massiva que preza pela quantidade e não qualidade do alimento.
A agricultura familiar, que foi escanteada na gestão passada, agora tem recebido mais recursos do governo federal, mas a divisão incomoda o agronegócio. Os pequenos agricultores e o agronegócio, no entanto, não precisam ser inimigos. Eles podem caminhar juntos. Nos primeiros quatro meses deste ano, as exportações brasileiras do agronegócio alcançaram recorde de US$ 50,6 bilhões. O agro é importante para a economia do país, mas é a agricultura familiar quem coloca comida nos pratos das famílias brasileiras.
Como bem observou Romilda, apesar de alguns discursos de ódio, a maioria da população sabe quem realmente é o MST. E por mais que o debate hoje no país esteja polarizado entre esquerda e direita, o movimento sem terra não se restringe a essas barreiras.
“O Bispo de Formosa [Dom Adair José Guimarães} mesmo. Ele é de direita, parente do Caiado, mas celebra missa dentro do acampamento. Porque eles prezam pela vida, acima de tudo. Então toda a população e, até o prefeito da cidade, mesmo sendo de direita, eles enxergam os sem terra como pessoas bem vistas”.
Ela explica que o movimento é muito conhecido pelas feiras de produtos orgânicos que faz, com alimento saudável, de qualidade e sem agrotóxico. Maior produtor de arroz orgânico da América Latina, segundo o Instituto Riograndense do Arroz (Irga), o movimento também produz: feijão, farinha, batata, mandioca, tomate, cenoura, salada, café, leite, soja, açúcar, entre outros alimentos.

“As faculdades e a Igreja Católica também, a Comissão Pastoral da Terra (CPT), sempre apoiaram o MST”, completou Romilda. Dom João Justino, da arquidiocese de Goiânia é um grande doador para o movimento dos sem terra. A última ação que ambos participaram juntos foi o Grito dos Excluídos, na capital goiana, onde os católicos e sem terras reivindicaram o fim da fome e direitos básicos. O Movimento dos Trabalhadores Rurais tem origem vinculada às ações das Igrejas, principalmente da Igreja Católica, em sua vertente denominada Teologia da Libertação. As relações da Igreja Católica com os movimentos sociais do campo sempre foram muito presentes no Brasil. Segundo as integrantes do movimento, nenhuma igreja evangélica visitou o acampamento e o espaço está aberto para danças, cultos, missas, cerimônias e ajuda, seja ela como for.
Durante a entrevista, o filho de Alice, de apenas 3 anos, passava cantando “se o campo não roça, a cidade não almoça”. Ele aprendeu a cantiga no movimento e repete praticamente o dia inteiro, segundo a mãe. Ela explicou que não precisa nem ensinar, porque as crianças que crescem no movimento já desenvolvem automaticamente essa consciência social e senso de busca por justiça e igualdade.”Aqui as pessoas são engajadas naturalmente. Ninguém é programado para falar nada. Só fazemos reunião no acampamento para tratar das necessidades básicas mesmo e distribuir as doações. O sentimento de luta vai nascendo. Aquela senhora chegou hoje, por exemplo, e se você conversar com ela já vai ver o mesmo sentimento”.
Romilda comentou ainda que no Dona Neura existe um grupo de encaminhamento à universidade, do qual ela faz parte. Quando surgem vagas para universidades públicas, os educadores postam no grupo e ela vai e conversa com as famílias do acampamento, vê quem tem jovens, quem tem o desejo de estudar e faz a ponte para que eles ingressem nas faculdades.

Por meio do Pronera (Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária), mais de 250 advogados saídos de assentamentos já se formaram – inclusive com carteirinha da OAB – além de mais de 6 mil camponeses que já chegaram à universidade.
Na Universidade Federal de Goiás (UFG) em Goiânia, há o curso de educação no campo. Já no Câmpus da UFG da Cidade de Goiás, há a oferta de turmas de direito. No Rio Grande do Sul, por exemplo, Romilda conta que há turmas de veterinária. Recentemente, ela contou a conquista de jovens acampados que foram cursar medicina em Cuba e na Argentina.
Destinando a Fazenda São Lukas para o Incra, o propósito da Superintendência do Patrimônio da União em Goiás (SPU-GO), proprietária do imóvel desde 2016, era redimir o território para as famílias que foram afetadas pelos crimes praticados no imóvel rural. As famílias, no entanto, seguem prejudicadas por uma gestão que se recusa a entender que a propriedade é posse das famílias agricultoras. “Aquela área já é do Incra, não tem o que brigar por aquela área mais, ela já é do Incra e lá vai virar um assentamento”, afirmou o superintendente do Instituto em Goiás, Elias D’ângelo.
“Por incrível pareça, eu tenho encontrado muita oferta de áreas para vender para o Incra. Agora, é preciso que o governo federal arrume orçamento para que a gente possa fazer o trabalho e adquirir essas áreas para assentar essas famílias. Resistência vai ter, mas eu estou esperançoso. E o agronegócio nem precisa querer ou não, sabe? Não precisamos nem entrar nessa disputa”, concluiu.
Segundo a última decisão judicial da 6ª Vara Federal Cível da Seção Judiciária de Goiás (SJGO) foi decorrido o prazo para a prefeitura desocupar a fazenda no dia 21 de setembro. A prefeitura, no entanto, segue no local.

História da disputa judicial da Fazenda São Lukas
Por cerca de três anos, criminosos usavam a terra para tráfico de pessoas e exploração sexual de mulheres. O grupo criminoso que atuava na fazenda era composto, segundo a Polícia Federal (PF), por 18 pessoas. No local, dezenas de mulheres e meninas eram aprisionadas e depois traficadas para a Suíça, onde eram submetidas à todo tipo de exploração sexual. As vítimas, em sua maior parte menores de idade, vinham das cidades de Anápolis, Goiânia e Trindade.
A própria fazenda havia sido adquirida com dinheiro do crime, apontou as investigações da PF. Os embros da quadrilha chegaram a estar na lista de Difusão Vermelha da Interpol, em que aparecem foragidos internacionais. O chefe do grupo, o espanhol Aquilino Gonzalez Iglesias foi condenado pela Justiça brasileira a mais de 13 anos de prisão pelos crimes de tráfico internacional de mulheres e formação de quadrilha, após denúncia apresentada pelo Ministério Público Federal em Goiás (MPF-GO).
As jovens e adolescentes eram seduzidas a trabalhar com Aquilino Gonzalez em sua casa noturna na Espanha, o clube “Las Ninfas”, com a promessa de uma vida de dinheiro e luxo fora do país. O esquema era sustentado no Brasil pela cunhada do espanhol, Magna Pires da Costa. Em escutas telefônicas, a brasileira usava o codinome Karen e atuava no recrutamento de garotas goianas para sustentar o esquema de prostituição.
A aliciadora foi condenada a mais de 10 anos de prisão. Uma das atribuições dela na associação criminosa era encontrar as vítimas, em sua maioria mulheres com boa aparência física. Em seguida, ela enviava fotos das garotas para o espanhol, que selecionava as candidatas. Aprovadas, as meninas recebiam orientação de como deveriam proceder para viabilizar a viagem. Quando os passaportes ficavam prontos, eram entregues por um motoboy junto às passagens aéreas. Todos os custos com a viagem, inclusive o dinheiro para passar pela imigração estrangeira, eram financiados pelo espanhol. Todas as meninas do esquema tinham como destino à cidade espanhola de Vigo.
Ao chegar à Espanha, as brasileiras já possuíam uma dívida de quase R$ 9 mil com a quadrilha e ainda eram obrigadas a pagar diárias de R$ 150 ao proprietário da boate. Sem conseguir saldar a dívida, as mulheres eram maltratadas e coagidas. De acordo com a polícia da Espanha, as garotas recebiam ameaças de morte. A denúncia do Ministério Público goiano incluía oito pessoas no esquema, das quais quatro foram absolvidas. Além do espanhol e sua cunhada, foram condenadas ainda Edite de Souza e Patrícia Miranda de Moraes Araújo.
O Clube Las Ninfas registrou lucro de quase 2 milhões de euros, equivalentes a cerca de R$ 6 milhões. Com a prisão dos criminosos em 2009, a fazenda ficou sem proprietário e esteve abandonada por muitos anos. Os bens e valores adquiridos no Brasil com o dinheiro do crime, de acordo com a decisão judicial, foram cedidos para a União, em 2016. Como forma de reparação ao sofrimento sofrido pelas vítimas, a terra foi cedida às mulheres sem terra e às famílias do MST para projeto de reforma agrária.
A fazenda São Lukas foi sequestrada pela Justiça Federal e repassada à SPU (órgão responsável por administrar os bens da União). Em maio de 2022, a Secretaria noticiou o Incra da posse do imóvel e solicitou uma vistoria de avaliação. Os peritos do Instituto, mediante análise, determinaram o valor de mercado.
A prefeitura do município, porém, requereu a posse da terra judicialmente e ganhou. Dois dias após a visita da CPI no Acampamento Dona Neura, o juiz Jesus Crisóstomo de Almeida concedeu a liminar mantendo a posse com a prefeitura. Dois dias depois, o juiz federal Paulo Ernane Moreira Barros derrubou a liminar e manteve a posse da Fazenda São Lukas com o Incra.
Em agosto de 2023, porém, a história ganhou um novo capítulo: a terra voltou para a posse do Incra e vai se tornar um assentamento do MST. De posse do laudo de vistoria, SPU e Incra iniciaram em fevereiro de 2023 as tratativas para a destinação do imóvel.
Para o superintendente regional do Incra em Goiás, Elias D’Angelo, “a transformação de uma área ligada ao crime e à exploração de mulheres em assentamento dá um recado muito importante à sociedade sobre o caráter pacificador da reforma agrária”.
A destinação da área à reforma agrária foi definida pelo Governo Federal por meio de ação conjunta do Incra, SPU e Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDAAF), em atendimento à demanda dos movimentos sociais.
“O referido imóvel, denominado de “Fazenda São Lukas”, passou a integrar o patrimônio da União em decorrência de perdimento de bem em processo criminal, em razão da aquisição do imóvel mediante pratica de crimes” , diz trecho da decisão judicial. A justificativa da prefeitura para entrar com uma ação contra a União é que “há décadas o local se encontrava em total abandono, sendo depreciado por transeuntes/andarilhos e servindo de abrigo para criminosos, o que era motivo de inúmeras e constantes reclamações da população local e dos Órgãos de Segurança Pública”, relatou a Prefeitura de Hidrolândia.
Pelos fatos citados, o prefeito entrou com uma ação requerindo a posse, preocupado em garantir a “ordem pública e interesse social da propriedade”, segundo ele. A municipalidade se propôs a assumir todas as ações necessárias à guarda, vigilância e manutenção do referido imóvel, com ônus exclusivo ao Tesouro Público Municipal, disponibilizando recursos humanos e materiais para tanto, a fim de que o imóvel atingisse alguma utilidade pública e social.
Essa história desaguou na celebração do Termo de Acordo de Cooperação Técnica n. 159/2022, em 23 de setembro de 2022, cujo prazo de vigência era de 24 meses, contados a partir de 16 de agosto de 2023. A prefeitura, então, passou a ocupar a terra, instalando um transformador, fazendo um poço artesiano para abastecimento de água e disponibilizado servidores e materiais para vigilância, limpeza e manutenções cotidianas.

Estava tudo ótimo para a prefeitura até a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que tomou posse em janeiro de 2023 e iniciou um projeto de reforma agrária no país. “O acordo em questão fora celebrado com Governo Federal antecessor [Jair Messias Bolsonaro] de modo que com ultimo pleito eleitoral, ante a mudança de chefe do Executivo Nacional, cuja politica visa a demarcação de áreas e destinação aos movimentos existentes, de sorte a pressão política para tais atos se intensificaram, todavia sem nenhuma justificativa jurídica para tal fim”, justificou a prefeitura. As justificativas jurídicas, no entanto, estão previstas desde 1987 pela Constituição, como já explicou a reportagem.
“Assim que a transferência de domínio pleno se concretizar, o Incra irá iniciar a implantação de um projeto de assentamento no local. A previsão é assentar 13 famílias de trabalhadores rurais sem-terra, na área aproximada de 67 hectares”, disse o governo federal. A fazenda foi ocupada por mulheres sem terra no dia 24 de março deste ano, durante a Jornada Nacional de Luta das Mulheres Sem Terra.
Como parte da Jornada, está a realização de: acampamentos pedagógicos, ocupações de terras, doação de alimentos e de sangue, feiras com produtos da reforma agrária, plantio de árvores, espaços de formação e debates além de marchas em parceria com movimentos e organizações populares urbanas e rurais.

O Incra notificou a prefeitura para “imediatamente desocupar e desobstruir a sede do imóvel e as benfeitorias ali presentes”, fazer prontamente a retirada de veículos, materiais, animais, máquinas e implementos agrícolas, uma vez que a referida área será objeto de seleção de trabalhadores e trabalhadoras rurais, através de ampla divulgação de Edital de Convocação, na forma prevista no § 1º do art. 19 da Lei nº 13.465, de 11/07/2017.
A legislação dispõe sobre a regularização fundiária rural e urbana, liquidação de créditos concedidos aos assentados da reforma agrária e sobre a regularização fundiária no âmbito da Amazônia Legal; além de instituir mecanismos para aprimorar a eficiência dos procedimentos de alienação de imóveis da União.

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Quem é o MST e como nasceu o movimento
O Movimento Sem Terra está organizado em 24 estados nas cinco regiões do país. No total, são cerca de 450 mil famílias que conquistaram a terra por meio da luta e organização dos trabalhadores rurais.
O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é um movimento social de massas, autônomo, que procura articular e organizar os trabalhadores rurais e a sociedade para conquistar a Reforma Agrária e um Projeto Popular para o Brasil.
Mesmo depois de assentadas, estas famílias permanecem organizadas no MST, pois a conquista da terra é apenas o primeiro passo para a realização da Reforma Agrária.
Os latifúndios desapropriados para assentamentos normalmente possuem poucas benfeitorias e infraestrutura, como saneamento, energia elétrica, acesso à cultura e lazer. Por isso, as famílias assentadas seguem organizadas e realizam novas lutas para conquistarem estes direitos básicos.
Com esta dimensão nacional, as famílias assentadas e acampadas organizam-se numa estrutura participativa e democrática para tomar as decisões no MST. Nos assentamentos e acampamentos, as famílias organizam-se em núcleos que discutem as necessidades de cada área. Nesses núcleos, são escolhidos os coordenadores e as coordenadoras do assentamento ou do acampamento. A mesma estrutura se repete em nível regional, estadual e nacional. Um aspecto importante é que as instâncias de decisão são orientadas para garantir a participação das mulheres, sempre com dois coordenadores/as, um homem e uma mulher. E nas assembleias de acampamentos e assentamentos, todos têm direito ao voto: adultos, jovens, homens e mulheres.
O acampamento Dona Neura, por exemplo, é dividido em 5 núcleos, onde a maior parte da liderança é formada por mulheres. Romilda e Alice explicaram que os Núcleos de Base (NB) possuem dois departamentos financeiros por núcleo. Ocasionamente, todos os financeiros se reúnem e fazem uma reunião para apresentar as demandas do acampamento. Elas explicaram ainda que existem dois tipos de divisões: os núcleos e as assembleias. Os primeiros são mais internas e específicas, enquanto o segundo são reuniões mais gerais.
Da mesma forma, isso acontece nas instâncias nacionais. O maior espaço de decisões do MST são os Congressos Nacionais que ocorrem, em média, a cada cinco anos. Além dos Congressos, a cada dois anos o MST realiza seu encontro nacional, onde são avaliadas e atualizadas as definições deliberadas no Congresso.
Para encaminhar as tarefas específicas, as famílias também se organizam por setores, que são organizados desde o âmbito local até nacionalmente, de acordo com a necessidade e a demanda de cada assentamento, acampamento ou estado.
Em 1850, mesmo ano da abolição do tráfico de escravos, o Império decretou a lei conhecida como Lei de Terras, que consolidou a perversa concentração fundiária. É nela que se encontra a origem de uma prática trivial do latifúndio brasileiro: a grilagem de terras – ou a apropriação de terras devolutas através de documentação forjada – que regulamentou e consolidou o modelo da grande propriedade rural e formalizou as bases para a desigualdade social e territorial que hoje conhecemos.
Antes de chegar às mãos de dom Pedro II, a primeira lei agrária do Brasil independente percorreu um lento e tortuoso caminho dentro do Senado e da Câmara. O projeto da Lei de Terras entrou no Parlamento em 1843, baseado num anteprojeto redigido por conselheiros do imperador. Após sete anos de debates, negociações, impasses e reviravoltas, os senadores e deputados enfim deram ao projeto de lei a versão definitiva. Documentos da época hoje guardados no Arquivo do Senado, em Brasília, revelam como a composição do campo brasileiro foi planejada. Os próprios senadores e deputados eram, em grande parte, senhores de terras.
O grande obstáculo que a Lei de Terras impôs aos camponeses, afastando deles a anistia, foi a cobrança de taxas para a regularização da propriedade. Para os grandes posseiros, as taxas não pesavam no bolso. Para os pequenos, elas podiam ser proibitivas.
Estudiosos da questão dizem que o histórico predomínio do latifúndio levou ao surgimento dos trabalhadores rurais sem terra e tornou rotineira a violência no campo. Segundo o Ministério Público do Trabalho (MPT), Goiás é o estado que mais tem trabalhadores resgatados em condição análoga à escravidão até o momento em 2023.
Além disso, também condenou a agricultura brasileira a um longo período de atraso técnico. A vastidão das propriedades permitiu que os fazendeiros mudassem suas plantações de lugar sempre que determinada terra se esgotava, avançando sobre novas fronteiras agrícolas e derrubando florestas. Caso os lotes fossem pequenos, eles teriam sido forçados a investir em novas tecnologias para aproveitá-los ao máximo.
No início da década de 80, começaram então a acontecer as ocupações de terra de forma massiva. Essas lutas isoladas, em quase todos os estados do país, passaram a constituir um movimento articulado pelos camponeses sem terra do Brasil, que ganhou o nome de MST.
O I Congresso com a palavra de ordem “Sem reforma agrária não há democracia”, em 1985, reuniu 1.500 delegados e foi criada a Coordenação Nacional do MST, com representantes de 13 Estados do Brasil.

O Movimento dos Trabalhadores Ruais Sem Terra (MST) nasceu oficialmente no Rio Grande do Sul, em 1984. A organização foi motivada por pequenos trabalhadores rurais que se reuniram para protestar contra a construção da hidrelétrica de Itaipu, um crime ambiental.
A partir da década de 1950, as organizações camponesas do país conseguiram pautar a reforma agrária como uma medida de importância nacional, decisiva para o desenvolvimento e para garantir o acesso à terra para quem nela trabalha. Apesar da ditadura militar perseguir essas organizações, a necessidade de Reforma Agrária fez ressurgir a luta por terra a partir da década de 1970, a qual permanece viva e necessária até os dias atuais.
A ausência de uma reforma da estrutura fundiária no Brasil, mesmo após a Constituição Federal de 1988, tornou a luta pela terra a única possibilidade de milhões de famílias Sem Terra conquistarem um lote de terra para sobreviver e obter seu sustento. A organização das famílias Sem Terra no MST permitiu a conquista e a desapropriação de latifúndios em todo o país, garantindo a criação de Assentamentos da Reforma Agrária, que beneficiaram cerca de 400 mil famílias no Brasil.
João Pedro Stedile se tornou figura pública de importância significativa da política brasileira nas últimas quatro décadas, em especial após fundar, com outros companheiros, o MST. O representante do movimento foi convocado a prestar esclarecimentos na Comissão da Câmara dos Deputados, onde ele depôs por mais de 7 horas. João Pedro rebateu as críticas e ofensas contando a história do movimento, da luta por reforma agrária no Brasil e fazendo críticas ao agronegócio consevador. O líder recebeu o apoio de grande parte da Casa, e durante seu discurso, parlamentares e presentes paravam e iam até ele cumprimentá-lo.
Oriundo de uma família de pequenos agricultores descendentes de italianos, formou-se em Economia pela PUC do Rio Grande Sul e pós-graduou-se na Universidade Nacional do México (UNAM). Escreveu livros como Brava gente: a trajetória do MST e a luta pela terra no Brasil (1999), em colaboração com Bernardo Mançano Fernandes, Assentamentos: uma resposta econômica da reforma agrária (1986), entre outros.
João Pedro Stedile acumula 60 prêmios por sua atuação à frente do movimento, como o Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos (1986 e 1990), Medalha Pedro Ernesto (1995), Memorial de la Paz y la Solidaridad entre los Pueblos (1995), Medalha Chico Mendes de Resistência (1989, 1998), Prêmio Hebert de Souza (1998), Medalha da Inconfidência (1999), Prêmio Paulo Freire de Compromisso Social (2000), Prêmio em Tecnologia Social, pela Fundação Banco do Brasil e Unesco (2003), Prêmio Santos Dias de Direitos Humanos (2018), Prêmio Espanha Reconhece (2021), entre outros.
A CPI que investigou o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) acabou desmoralizada e o movimento saiu fortalecido. E a luta for reforma agrária foi reacendida, porque como dizia Dom Tomás Banduíno, “Direitos humanos não se pede de joelhos, exige-se de pé”.