Goiás repassou mais de R$ 6,5 milhões para comunidades terapêuticas

09 agosto 2023 às 07h11

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O Governo de Goiás repassou mais de R$ 6,5 milhões para comunidades terapêuticas entre os anos de 2019 e 2023, segundo a Secretaria de Estado de Saúde de Goiás (SES GO). A gerente de saúde mental no Estado, no entanto, não acredita que as comunidades ofereçam um serviço de saúde, mas um atendimento religioso que não possui efetividade comprovada no tratamento.
De acordo com o Ministério da Saúde, comunidades terapêuticas são instituições de acolhimento voluntário a dependentes de substâncias psicoativas. Não integram o Sistema Único de Saúde (SUS), mas são consideradas equipamentos da rede suplementar de atenção, recuperação e reinserção social de dependentes. Por não integrarem o SUS, não deveriam receber recursos públicos. Na maioria das vezes, são mantidas por doações e financiadas por entidades religiosas.
Durante prestação de contas da Secretaria Municipal de Saúde de Goiânia, na manhã desta segunda-feira, 7, o secretário de saúde informou que R$ 2.096.848,22 milhões foram destinados à saúde mental em Goiânia. O Pronto Socorro Psiquiátrico Wassily Chuc e os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) do município sofrem com estrutura precária, falta de insumos, medicamentos e até mesmo segurança para os pacientes.
Em abril, a Secretaria informou que 35 unidades de saúde seriam reformadas até o mês de julho e 142 unidades seriam além de reformadas, construídas, o que não aconteceu. Sobre a situação precária do Wassily Chuc, a Prefeitura de Goiânia informa que não tem muito o que fazer porque o prédio é locado, o que limitaria reformas mais amplas que seriam de responsabilidade do proprietário.
Além do pronto socorro, a Rede de Atenção Psicossocial de Goiânia é composta pelos CAPS e pelo Ambulatório Municipal de Psiquiatria, que também sofrem com o sucateamento. O Instituto de Psiquiatria Hospital Dia, em Anápolis, anunciou o encerramento das atividades no começo de agosto devido à falta de recursos.
Procurado pelo Jornal Opção, o diretor do Hospital Dia, Marcelo Lucius, não quis comentar o assunto. O Consellho de Secretarias Municipais de Saúde (Consems) do Estado de Goiás também não quis informar se os repasses estão sendo feitos pelas prefeituras no Estado de Goiás.
“A atuação do Consems é representativa de cada município, porém o órgão regulador e fiscalizador é a Secretaria Estadual de Saúde”, disse o Consems. A Secretaria de Saúde de Goiás, no entanto, não respondeu o que o Estado está fazendo em relação à política de saúde mental para evitar o fechamento de unidades e atender as necessidades dos pacientes.
Em 2020, a gerente de saúde mental no Estado, Nathalia dos Santos Silva, havia dito à reportagem que não concordava que comunidades terapêuticas recebessem recursos públicos porque eles são “escassos e poderiam ser destinados aos CAPS”.
Comunidades terapêuticas
“Não é tratamento, é um atendimento religioso. Mas a pessoa pode querer fazer, ela tem liberdade. Não vejo problema que elas funcionem e atuem na caridade, mas desde que estejam funcionando dentro da lei, ou seja, minimamente reguladas e que não recebam recursos públicos”, informou Nathalia.
A SES GO informou que desde 2018, a gestão estadual assumiu a responsabilidade de acompanhar, monitorar e fazer o repasse de contrapartida às Comunidades Terapêuticas, caracterizadas como serviços de acolhimento transitório e voluntário aos dependentes de substâncias psicoativas. No início, 23 comunidades terapêuticas firmaram contrato com o Governo de Goiás. Em 2022, 7 unidades tiveram o contrato suspenso.
“Em 2011, elas [as comunidades] foram incluídas na portaria como Rede de Atenção Psicosocial, mas elas deveriam aderir a uma outra portaria, a 131, que saiu em 2012, que fala que alguns critérios que a comunidade terapêutica deveria ter para ser considerada um serviço de saúde, em implicação de regulação e essas coisas. Bom, nenhuma no país teve condição de se aproximar dessa portaria e nem foram habilitadas”, explicou a gerente de saúde mental.
Atualmente, 16 comunidades terapêuticas estão regulares e possuem contrato com a gestão estadual, ofertando 145 vagas para acolhimento de homens, mulheres e adolescentes. O repasse anual de recursos para as unidades totaliza, desde 2019, R$ R$ 6.589.923,44 milhões.
Mylena Suely, de 34 anos, foi diagnosticada com Transtorno de Ansiedade Generalizado (TAG) e início de Depressão. Ela frequentava uma comunidade terapêutica em Nova Veneza (GO), região metropolitana de Goiânia, onde o tratamento consistia em rodas de conversas, orações e canto de louvores. Já o pastor e coordenador do grupo de Mylena, que preferiu não ser identificado, reconhece e deixa bem claro que o serviço prestado é apenas religioso. Além disso, incentiva os fiéis a procurarem tratamento médico.
A SES informou ainda que está em fase de finalização de um edital de chamamento para seleção de Comunidades Terapêuticas, com reorganização do fluxo de serviços e ocasião para conferir a forma de repasse da contrapartida, com o cumprimento das CTs na prestação de contas e execução dos serviços.
CAPS
Em contraponto às comunidades terapêuticas, temos os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), unidades especializadas em saúde mental para tratamento e reinserção social de pessoas que sofrem de transtorno mental, incluindo os decorrentes do uso de álcool e outras drogas. Os CAPS representaram um grande avanço na saúde mental do país e surgem como resultado de diversas lutas antimanicomiais dentro de um contexto de Reforma Psiquiátrica no Brasil.
Antes da Reforma, pessoas com transtornos mentais eram tratadas como “loucas” e afastadas da sociedade ao serem internadas em hospitais psiquiátricos. Sessenta mil pessoas foram mortas no maior hospício do Brasil. No Hospital Colônia, em Barbacena, pacientes sem nome ou endereço, invisíveis, foram transformados em nada, torturados e mortos sem direito a um mero atestado de óbito. A Reforma Psiquiátrica, no final dos anos 70, veio para que pessoas com transtornos mentais e usuários de álcool e drogas tivessem seus direitos resguardados. Foram anos de luta para que situações assim nunca mais voltassem a acontecer.
Em março de 1986 foi inaugurado o primeiro CAPS no Brasil, na cidade de São Paulo: o Centro de Atenção Psicossocial Professor Luiz da Rocha Cergueira. Em 2001, a Lei Paulo Delgado (Lei 10.216) é sancionada no país e estabelece o funcionamento dos CAPS como um serviço ambulatorial de atenção diária. Pela definição da lei, todas as unidades devem conter, pelo menos: 1 médico psiquiatra ou com formação em saúde mental, no caso de CAPS I e CAPS i II; 1 enfermeiro com formação em saúde mental; 3 profissionais de nível superior, que podem ser psicólogos, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, pedagogos ou professores de educação física; e 4 profissionais de nível médio, que podem ser técnicos ou auxiliares de enfermagem, técnicos administrativos, técnicos educacionais e artesãos.
Apenas em 2001 foi fundado o primeiro CAPS em Goiânia. Atualmente existem 9 unidades. Antes de sua fundação, os pacientes eram esquecidos, marginalizados e diariamente abusados no Hospital Psiquiátrico Profº. Adauto Botelho. É importante relembrar a história porque “aqueles que não conseguem lembrar o passado estão condenados a repeti-lo”, como bem escreveu o filósofo George Santayana.
Legislação sobre comunidades terapêuticas
Para funcionarem de acordo com a legislação brasileira, as comunidades terapêuticas devem atender aos requisitos estabelecidos na RDC nº 29/2011 (Anvisa) e na Resolução do Conad nº 01/2015.
A RDC Anvisa nº 29/2011 é clara ao dispor que a Comunidade Terapêutica Acolhedora deve garantir a permanência voluntária do residente, a possibilidade de interromper o tratamento a qualquer momento (resguardadas as exceções de risco imediato de vida para si e ou para terceiros ou de intoxicação por substâncias psicoativas, avaliadas e documentadas por profissional médico) e a proibição de castigos físicos, psíquicos ou morais.
Ademais, conforme a Lei Antidrogas e a RDC n° 29/2011, a adesão e a permanência voluntária na Comunidade Terapêutica deve ser formalizada por escrito, sendo que tal permanência é entendida como uma etapa transitória para a reinserção social.
Já a Resolução nº 01/2015, disponível no Diário Oficial da União, diz que as comunidades devem atender os seguintes requisitos:
I – adesão e permanência voluntárias, formalizadas por escrito,entendidas como uma etapa transitória para a reinserção sócio familiar e econômica do acolhido;
II – ambiente residencial, de caráter transitório, propício à formação de vínculos, com a convivência entre os pares;
III – programa de acolhimento;
IV – oferta de atividades previstas no programa de acolhimento da entidade, conforme previsão contida no art. 12;
V – promoção do desenvolvimento pessoal, focado no acolhimentode pessoas em situação de vulnerabilidade com problemas associados ao abuso ou dependência de substância psicoativa