Clarice Lispector, a mulher que se tornou um mito
21 maio 2016 às 11h10

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Sucesso nos Estados Unidos, volume único dos contos da escritora é lançado no Brasil

Márwio Câmara
Especial para o Jornal Opção
Em 1943, a escritora Clarice Lispector causou um verdadeiro impacto na literatura brasileira com a publicação de seu primeiro romance, “Perto do coração selvagem”, ao trazer uma narrativa sofisticada e diferente de tudo que havia sido feito até então. Na época, sua escrita foi comparada com a de nomes consagrados internacionalmente como James Joyce e Virginia Woolf, devido ao estilo introspectivo e à técnica do fluxo de consciência, característicos nas obras de ambos escritores. Desde então, Clarice transformou-se num cânone das nossas letras, ao lado de Machado de Assis e Guimarães Rosa.
Após a sua morte, em 1977, o mito “Clarice” consolidou-se. Desde então, o mistério em torno de sua vida e obra passou a ser alvo de inúmeras discussões e análises entre críticos e leitores dentro e fora do país. O mais interessante é que, quase 40 anos após sua morte, os textos da bela ucraniana naturalizada brasileira não perderam a dimensão arrebatadora de outrora, provocando fascínio e devoção aos seus novos leitores.
Para o jornalista José Castello, a escritora não é apenas a maior narradora do século 20 no Brasil, como está entre os maiores prosadores da língua portuguesa de todos os tempos: “Seus relatos rompem, rasgam, dilatam as fronteiras da literatura para muito além daquilo que, por hábito, costumamos chamar de ficção. Clarice foi, antes de tudo, uma inventora, que nos deixou um mundo singular e radical, que até hoje continua a nos desafiar”.
Ascensão nos Estados Unidos
Após o sucesso da biografia norte-americana “Why This World” (em português, “Clarice, Uma Biografia”), fruto do amor incondicional do biógrafo Benjamin Moser pela escritora, em 2015, o estudioso organizou, em volume único, todos os contos que integram as seleções publicadas em vida e de forma póstuma, tais como: “Laços de Família” (1960), “Legião Estrangeira” (1964), “Felicidade Clandestina” (1971), “A Via Crucis do Corpo” (1974), “Onde Estivestes de Noite” (1974) e “A Bela e a Fera” (1979). No conjunto, podemos conferir as diversas fases de Clarice, sobretudo ao que tange seu amadurecimento estilístico, uma vez que as narrativas reunidas, nesta edição, orquestram momentos plurais e um tanto significativos na carreira da escritora, que também foi jornalista, tradutora e cronista.
Com o título em português “Todos os contos”, recentemente publicada pela editora Rocco, a obra recebeu grande repercussão da imprensa internacional, o que fez com que Clarice fosse pauta em diversos veículos, e estampasse a capa da New York Book Review — feito inédito até então para um escritor considerado brasileiro. O livro também entrou para a lista das publicações mais importantes de 2015, segundo o New York Times, tornando-se rapidamente um best seller nos Estados Unidos.
Para Nadia Gotlib, uma das mais importantes pesquisadoras brasileiras da escritora, autora também da biografia “Clarice, uma vida que se conta” (1995) e “Clarice: Fotobiografia” (2007), é importante ressaltar que a divulgação da obra no exterior é fruto de um trabalho que vem sendo realizado há mais de seis décadas, e por diferentes colaboradores, não se resumindo apenas ao que Moser tem feito. A pesquisadora informa: “A divulgação, ao longo dos anos, atingiu dimensão tão grande que, há três anos, conforme informação da agência Carmen Balcells, que cuida dos seus direitos de publicação, já havia traduções de textos de Clarice espalhados por cerca de 30 países e em 28 línguas diferentes, incluindo o russo, o hebraico, o japonês, o tcheco, além de tantas outras.”
Mas o que distingue a recente publicação norte-americana, intitulada como “The Complete Stories”, das demais publicadas no exterior é o fato de ter conseguido libertar Clarice finalmente da redoma acadêmica em que ficara aprisionada. Além disso, por apresentar de forma integral o trabalho da escritora enquanto contista.
Em relação a seus romances, por exemplo, uma parte da crítica literária aponta certa irregularidade no modo como a autora de clássicos como “A Paixão Segundo G.H.” (1964) e “A Hora da Estrela” (1977) costumava trabalhá-los estruturalmente. Em “O Lustre” (1946), publicado após o seu livro de estreia, a crítica da época o considerou como uma experiência incompleta.
Tal estranheza dita em Clarice, que foge à linha da narrativa tradicional, na verdade, trata-se de uma das características principais de sua obra (que ecoa em Joyce, Woolf e em Samuel Beckett). O interesse da autora não está exatamente na descrição dos fatos, mas na própria experiência com o eu consciente e inconsciente; no mergulho psíquico, amplamente rico e sensorial de suas personagens, onde as palavras ganham uma potência imagética estarrecedora. Sua prosa se delineia em um plano metamórfico, dando à leitura um caráter híbrido de múltiplas significações.
O traço intimista de Clarice promove um elo entre o leitor e a escritora, como se o eu clariceano se impregnasse na essência de suas personagens, comunicando-se também com a interioridade de quem a lê: “Em Clarice, não há como dissociar literatura e intimidade — das personagens, da autora e dos leitores. Uma intimidade com a vida — e a morte — e todos os seus ganhos e perdas. Ler Clarice é aprender e apreender tal intimidade e compreender tais perdas e ganhos”, afirma o escritor Rafael Mendes, doutorando em Literatura Brasileira, pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UFRJ).
Infância e epifania
Se na Clarice romancista exibe-se uma falta de linearidade ou mesmo carência de grandes eventos característicos do romance, ao menos em suas narrativas curtas não vemos o mesmo acontecer — pelo menos, em parte. Nos contos, encontramos crianças, mulheres, donas de casas e idosos, além de animais e registros, por vezes, semiautobiográficos que remontam à infância de Clarice em Recife, como no conto “Felicidade Clandestina”, onde a “menina loira” é vítima de uma “tortura chinesa” pela filha do dono da livraria, que lhe promete, mas sempre adia, com uma desculpa, o empréstimo do livro “Reinações de Narizinho”, de Monteiro Lobato.
Em “Restos do Carnaval”, o saudosismo da infância rememora o ano em que a menina Clarice pela primeira vez usa uma fantasia, feito de sobras de papel crepom, para participar do carnaval. Já em “Tentação”, uma “menina ruiva” tem o encontro com um cachorro da raça basset, desta vez em Grajaú. A criança e o animal trocam olhares, descobrindo um grande laço que os une, ao mesmo tempo em que os separa. Eles nasceram um para o outro, mas a menina ruiva era apenas uma criança “aprisionada em sua infância impossível”, enquanto o cão tinha a “sua natureza aprisionada” por outra dona.

A figura da mulher perpassa as páginas de Clarice. Aliás, donas de casa, mães de família, solteironas, viúvas, entre outras figuras que, de alguma forma, são extraídas do senso comum para uma atmosfera de iluminação e descoberta.
A epifania alcunhada por Joyce é dada como um processo de manifestação entre o eu do indivíduo que é modificado na sua forma de ver e pensar, através de um evento aparentemente banal, e que ocorre de forma natural e abrupta em seu cotidiano. É neste devir epifânico que emerge grande parte da obra de Clarice, tanto nos contos quanto nos romances.
Em “O Ovo e a Galinha” temos um belo achado de cunho saborosamente estético. O mistério em torno de quem vem primeiro, o ovo ou a galinha, levou a escritora a criar inúmeras reflexões e artimanhas na linguagem, numa tentativa às cegas de se alçar novos patamares de significação, através do devaneio de uma dona de casa, durante a preparação do café na cozinha.
O mesmo conto foi escolhido por Clarice, durante a sua inusitada participação no I Congresso de Bruxaria de Bogotá, em 1975. O convite conferido à escritora se deu muito por seus textos serem analisados como um tratado de laboriosidade mística.
O Rio de Clarice
Ainda na juventude, Clarice se mudou com a família para o Rio de Janeiro. Formou-se em Direito e casou-se com um colega de turma, o diplomata Maury Gurgel Valente. Passou um longo período em diversos países da Europa, assim como nos Estados Unidos, especificadamente em Washington. Nestes anos, escreveu inúmeras correspondências para familiares e amigos de dentro e fora do meio intelectual, entre eles: os escritores Lúcio Cardoso, Manuel Bandeira e Fernando Sabino.

Com o término de seu casamento, Clarice retorna para o Brasil, onde se instalou com os dois filhos em um apartamento no bairro do Leme, na Zona Sul do Rio. Sua relação materna também foi registrada em alguns contos, como “Macacos” e “Uma Esperança”.
Agora como mulher divorciada, Clarice retorna ao ofício de jornalista e passa a escrever também crônicas para uma coluna no Jornal do Brasil. A produção foi reunida e publicada posteriormente, de forma póstuma, com o título de “A Descoberta do Mundo” (1984).
A paisagem do Rio também predomina fortemente na órbita de seus contos. Neles, suas personagens percorrem diferentes cantos da cidade, da Zona Sul à Zona Norte, do Centro à ponte Rio-Niterói. No primoroso “A procura de uma dignidade”, a narrativa, protagonizada por uma velha moradora de Ipanema, se trava em meio aos desencontros da senhora Jorge B. Xavier, com a sua oscilante memória. Ansiando chegar ao sarau artístico no bairro do Méier, ela acaba se equivocando com os endereços e indo parar dentro do Maracanã. Com a sua inquestionável genialidade criativa, Clarice tece uma brilhante e melancólica narrativa sobre a velhice, dotada de alta habilidade técnica nas construções cênicas e nos diálogos travados da senhora ante a sua própria liquidez humana.
Em “Amor”, uma dona de casa resolve comprar ovos durante a tarde. Enquanto encontra-se sentada no bonde, a personagem Ana é completamente tocada ao observar um cego mascando chiclete. Tal impacto da cena a leva até o jardim botânico (um dos lugares preferidos da autora), onde a dona de casa vive uma das experiências mais profundas de sua vida.
“Ler os contos de Clarice é se defrontar com as nossas próprias forças e fragilidades, vícios e virtudes, que, aliás, são inerentes à nossa condição humana. Mas o importante é o modo como a escritora Clarice monta essas histórias, criando uma linguagem sensível, intensa e original”, ressalta Nádia Gotlib.
Para Gustavo Czekster, mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRG): “Se existe uma qualidade que distingue os escritores excepcionais daqueles simplesmente bons é a certeza de que o mundo não seria o mesmo sem a presença da sua obra. A obra de Clarice Lispector sempre tem algo novo para nos dizer, não interessa quantas leituras sejam feitas ou quanto tempo se passe”.
O lado B clariceano
A sexualidade humana e a marginalidade passam também em alguns de seus contos, sobretudo aos que compõe “A Via Crucis do Corpo”, livro que a autora escreveu por encomenda, em 1974. Embora cheio de altos e baixos, nele é possível encontrar grandes achados como em “Ele me bebeu”, que narra um triângulo amoroso envolvendo uma mulher, seu amigo homossexual e um industrial de metalurgia; e em “Miss Agrave”, que trata o florescer sexual de uma beata inglesa após a visita de um anjo em sua casa.
É interessante salientar o trabalho de expropriação de Clarice nessa seleção, que usa recursos pouco usuais em sua obra, como a linguagem seca, pouco metafórica e elíptica, com apropriações estilisticamente cinematográficas. Prostituição, assassinatos, violência doméstica e sexual são alguns temas que perscrutam o lado B da escritora. Essa leva a envereda a um universo mais popularesco, diferente de suas origens, embora nada medíocre.
Na última entrevista concedida ao programa Panorama, da TV Cultura, em 1977, a escritora respondeu ao jornalista Júlio Lerner: “Eu escrevo sem a esperança de que o que eu escrevo altere qualquer coisa. Não altera em nada”. Certamente, a obra de Clarice Lispector pode não ter alterado o mundo, mas, sem dúvida, alterou a sensibilidade de seus leitores.
Leia abaixo o miniconto inédito da escritora paulista Andrea del Fuego, em homenagem a Clarice Lispector.

Tomei um elevador com Clarice Lispector. Ela usava um vestido esmeralda e uma opala pendurada numa corrente. Segurava o cigarro para acendê-lo quando saísse, me olhou do joelho aos pés. Eu parei no térreo, ela continuou descendo.
Seguem, ainda, depoimentos de renomados escritores da nova cena literária brasileira sobre a obra de Clarice Lispector.
“A consciência do fazer literário (e do propósito que a mobilizava) e o apuro técnico da realização certamente estão entre os elementos que garantem a permanência da escrita de Clarice. Trabalhando quase sempre com temáticas humanas, a escritora tinha não apenas pleno domínio daquilo que almejava, mas também a persistência ao retrabalho com a linguagem a fim de dizer aquilo que é indizível. Qualquer primeira leitura da escrita de Clarice é sedutora, como se aquele texto simplesmente fluísse como algo natural e espontâneo — e, consequentemente, seduzido por essa ideia, não é raro que um escritor fique a ideia de que basta sentar-se e permitir que a literatura aconteça” — Maurício de Almeida, escritor.
“Clarice Lispector trabalha o texto de forma ritualística, o leitor é iniciado a um ritual epifânico da palavra. Em cada história escrita por Clarice, o leitor encara com surpresa os mistérios da existência. Ela tem o poder de conseguir traduzir em palavras algo que muitas vezes é inexplicável. Muitas vezes ao ler Clarice temos a sensação de navegar num transe. Talvez, por isso, a evidência da lembrança de Fauzi Arap, em seu livro “Mare Nostrum”, sobre a experiência de Clarice com expansores de consciência no momento e que escrevia “A Paixão Segundo GH”. O melhor em Clarice, assim como em Caio Fernando Abreu, é profundo e intenso. E, ao retornar dessa viagem, sem dúvida, não somos os mesmos” — Ramon Nunes Mello, jornalista e poeta.
“Clarice é um desses autores que ao criar uma obra, cria um universo que permanece. É também uma voz feminina num meio regido por homens. Fico muito feliz com o justo reconhecimento, sem falar que Benjamin Moser vem fazendo um trabalho esplêndido, que tirou Clarice do rótulo ‘literatura feminina’ para inclui-la entre os grandes autores de literatura mundial” — Carola Saavedra, escritora.
“Certa vez, Clarice escreveu que quando não sabia onde havia guardado um papel importante dizia: ‘Se eu fosse eu e tivesse um papel importante para guardar, que lugar escolheria?’ Às vezes, dava certo, mas outras vezes ela se sentia pressionada por esta expressão ‘se eu fosse eu’. Se eu fosse eu? Se você fosse você?, pergunta, Clarice. E eu lendo aquilo, fiquei atônita. Se eu fosse eu estaria aqui? Se eu fosse eu quem seria? O que faria? Estaria levando esta vida? E, assim, me vi em perigo. Mas aquela não era a primeira vez. Ler Clarice, seja em seus romances, novelas, contos e crônicas, é estar em perigo” — Paula Parisot, escritora.
“Recordo-me de como Clarice encarava toda a questão judaica. Isso me comoveu muito, mas só agora, ao escrever, me dou conta disso. Quando perscruto meu interior me vejo representado como Macabéa em “Hora da estrela”. Talvez o grande livro judaico. Talvez o que mais perto tenha chegado da essência cruel, inútil e impossível de um povo milenar, que não pertence a nada, mas que também pertence a tudo. ‘Ela era subterrânea e nunca tinha tido floração. Minto: ela era capim’. O meu povo judeu é esse capim, que insiste em existir com todas suas idiossincrasias e adversidades. E é capaz de brigar e odiar a si mesmo. E pedir perdão. A frase dita por Macabéa: ‘Me desculpe o aborrecimento’, ressoa eternamente em meus escritos” — Jacques Fux, escritor.
“Há dois contos de Clarice que sempre me agradaram, talvez porque, quando os li, tivesse idade próxima a de suas protagonistas. Um é ‘Preciosidade’. Identifiquei-me com aquela jovenzinha, inconformada com as mudanças de seu corpo, atenta aos olhares masculinos, suspeitando segredos e mistérios. O outro é Felicidade Clandestina, onde encontrei o meu duplo na menina esfomeada por livros, parada à porta da outra, dona de tesouros, que cruelmente sonegava. Cultivo essas duas, a criança e a adolescente, como delicadas plantas” — Lucia Bettencourt, escritora.
“É problemático, como vemos em muitos estudos e ensaios, o uso da psicanálise como chave para interpretar os enigmas contidos na obra de Clarice, uma vez que, dessa perspectiva, a singularidade e genialidade da autora podem se reduzir a conceitos previamente construídos. No entanto, se tomarmos também a psicanálise em sua potência inventiva e criativa, daí, sim, ambas — a poética de Clarice e a psicanálise — podem alimentar-se reciprocamente acrescentando sentido uma à outra. Essa abertura radical à alteridade, por sinal, talvez seja o principal ponto de aproximação entre os textos de Clarice Lispector e a psicanálise” — Renato Tardivo, escritor e psicanalista.
“Se existe uma qualidade que distingue os escritores excepcionais daqueles simplesmente bons é a certeza de que o mundo não seria o mesmo sem a presença da sua obra. Cada vez que lemos Clarice, temos a impressão de que foi escrita ontem, e isto explica muito da sua importância: a obra de Clarice sempre tem algo novo para nos dizer, não interessa quantas leituras sejam feitas ou quanto tempo se passe” — Gustavo Czekster, escritor.
“Tomei contato com a obra de Clarice durante a faculdade de comunicação, eu com vinte anos. Naquela época, mais do que hoje, eu era um pouco Macabéa, com as minhas inocências, o cabelo desgrenhado, a falta de saber. Macabéa me dizia tudo o que eu não tinha coragem sobre mim mesma. Dez anos depois, li ‘Felicidade clandestina’ e ‘Laços de família’, e, outra vez, me vi diante das minhas maldades e infortúnios. Enfim, Clarice nos expõe e isso dura para sempre” — Paula Fábrio, escritora.
“Clarice é a minha predileta. Freud fala da Coisa (das ding) para além da palavra. A coisa da loucura. Clarice nos vai conduzindo até a Coisa. Esse é o lugar da Literatura. Esse é o lugar de Clarice. Ela fala do lugar de onde deixamos de ser. Clarice rói o osso da vida” — Evaristo Magalhães, psicanalista.
“Clarice caminha sempre à beira de um abismo. Na linguagem, no lirismo, nas metáforas desconcertantes, na persistente e tocante humanidade. Ler Clarice é sentir a potência de sua escrita ao nos fazer mergulhar na subjetividade pungente com que nos invade e desnuda, revela e sangra, nos desdobra. Lembro-me do exato momento em que a li pela primeira vez e da sensação de sentir o chão se abrindo, eu de pé na biblioteca da escola com ‘Perto do coração selvagem’ entre as mãos e uma pergunta ecoando em minha mente: então é possível escrever assim? Foi uma epifania que se revelou persistente. Ela é eterna e fundadora de uma linhagem, múltipla, densa, pede o voo e o mergulho simultaneamente” — Monique Revillion, escritora.
“Clarice fugia da ideia de elite literária, que poderia ter alçado ela à notoriedade mais cedo. Preferia a dessublimação. Sobre ‘A paixão segundo GH’ ela escreveu, em crônica no Jornal do Brasil: ‘Tornar um livro atraente é um truque perfeitamente legítimo. Prefiro, no entanto, escrever com um mínimo de truques’. Foi essa visão que a tornou grande escritora para as gerações das últimas décadas do século 20 e no século 21”, Godofredo de Oliveira Neto, escritor.
“De Clarice a gente ouve falar tanta coisa. E nunca o suficiente. Fui ler Clarice como se ela fosse uma velha conhecida, quase uma prima distante, meio estranha, viajou não sei para onde. Não estava preparada, mas quem está? O susto, a precisão, o corpo decidido de suas pausas. O pulso de quem ensina o caminho das palavras não para um desconhecido, mas para o desconhecimento. Dizem que Clarice é uma sombra que persegue toda escritora mulher, um encosto, uma maldição. Prefiro pensar que ela é uma invocadora de sombras. Melhor: uma sacerdotisa” — Sheyla Smanioto, escritora.
Márwio Câmara é jornalista e pesquisador nas áreas de Literatura e Cinema. Mora no Rio de Janeiro.