Montaigne leu Maquiavel; Rogério Cruz ainda não (e precisa)

17 outubro 2023 às 18h54

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Bendita a hora em que “uma melancólica disposição de espírito” tomou conta do espírito do filósofo, escritor e humanista francês Michel de Montaigne, o qual apresenta a causa dessa inhaca mental: “tristezas da solidão em que vivo sumido alguns anos”. Disso resultou o livro “Ensaios”, o qual o jornalista Euler de França Belém, acertadamente, chama de “bússola intelectual”. A obra tem o autor como assunto, pois ele se encontrava “inteiramente desprovido de qualquer assunto específico”. Montaigne deveria ter mandado a modéstia pentear macaco, mas não mandou. Chamou seu livro de “extravagante e fora de todas as regras convencionais” de então e que assim “se tornou o único do mundo gênero”. E mais: chamou o tema, no caso ele, de “magro e insosso”.

Se me fosse apresentada a alternativa de só poder ler um único livro na vida, ele seria “Ensaios”. Sua primeira publicação aconteceu em 1580, 48 anos após a publicação de “O Príncipe”, de Nicolau Maquiavel, que escreveu a respectiva obra em 1513, que é um clássico do pensamento político muito atual, e isso em decorrência de conter uma abordagem aplicável em qualquer época política. Maquiavel, no entanto, morreu em 1527 sem ver sua obra vir a lume, o que aconteceu cinco anos depois. Montaigne leu Maquiavel. Fato que, certamente, ainda não aconteceu com o prefeito Rogério Cruz. Se tivesse lido, assim saberia uma lição imprescindível para sua sobrevivência no ringue político em que se encontra cheio de “prefeitinhos e feudos”: “Os homens hesitam menos em prejudicar um homem que se torna amado do que temido, pois o amor mantém-se por laço de obrigações que, em virtude de os homens serem maus, quebra quando surge ocasião de melhor proveito”. A faca e o queijo, ou melhor, a caneta, está na sua mão, dependendo do que fizer, Rogério pode comer a faca. Creio que ainda dá tempo de ele atravessar o Rubicão… Deixemos o prefeito pra lá, pois o assunto desta crônica não é ele.
Montaigne prova ter lido Maquiavel quando disse: “Mas ainda que me fosse possível tornar-me temido preferiria ser amado”. Sua preferência pelo amor está relacionada à velhice, nada voltado à sobrevivência política de um príncipe (coisa que não foi). Segundo ele, “há tantos defeitos na velhice, tanta impotência, eles prestam-se tão bem ao desprezo, que o que de melhor pode ajuntar a seu ativo é a afeição, o amor dos seus”. Putz. Dei essa volta toda para chegar a um conhecido, que está entre as borboletas que voltam ao estágio de lagarta em vez terminar seus dias enquanto borboleta. Esse conhecido, já na velhice, já não goza mais do amor dos seus, muitos amigos estão passando para o outro lado da calçada quando o veem. Na toada iracunda em que se encontra, é provável que nem o espelho queira vê-lo daqui a alguns dias (se é que isso já não esteja acontecendo).

Recentemente conversei com seu único filho, que morava com o pai, que há 13 anos ficou viúvo. Me relatou que seu pai está vivendo uma metamorfose, que, de certa forma, lembra a kafkiana vivida pelo jovem Gregor Samsa, só que de modo piorado, haja vista que a de seu pai é real. Me contou que vê no pai uma borboleta que está voltando a lagarta. Já troquei algumas palavras com seu pai. Lembro-me dele nos seus tempos áureos de alegria. “E não é demência que o torna amargo, muitas vezes tem explosões grosseiras por motivação pequena”, disse, alegando que não está conseguindo mais visitar o pai, por não estar conseguindo estabelecer um papo legal com ele sem que haja alvoroço na conversa.
O poeta Carlos Drummond certa vez abriu a janela de seu apartamento e viu uma amendoeira (árvore que muitos conhecem como sete-copas). A árvore, segundo o poeta numa crônica, teve um bate-papo metafísico com ele. Num determinado momento da conversa, o poeta pede à árvore que não o entristeça, visto que lhe falava algumas verdades doloridas. A amendoeira, então, dá um toque que, de alguma maneira, tem a ver com a preferência de Montaigne em ser amado em vez de temido: “Quero apenas que te outonizes com paciência e doçura. O dardo de luz fere menos, a chuva dá às frutas seu definitivo sabor. As folhas caem, é certo, e os cabelos também, mas há alguma coisa de gracioso em tudo isso: parábolas, ritmos, tons suaves… Outoniza-te com dignidade, meu velho”.
Sinésio Dioliveira é jornalista