Plagiar uma obra de arte pode gerar um processo jurídico, mas afinal, plagiar um estilo, também pode ser crime? Estilo é um conceito da história da arte de significado amplo, que indica um grupo de características que permitem a identificação da arte e do artista. Porque, nas inteligências artificiais geradoras de imagens, são utilizadas outras imagens como base. Desse modo, os resultados, ainda que sigam o estilo do autor da obra original, são consideradas obras “novas”.

Anderson Soares, doutor em Engenharia Eletrônica e Computação explica que “essas ferramentas não usam o dado exato, a inteligência está justamente em replicar sem que seja idêntico. É uma brecha regulatória sobre o uso indireto de textos, sons e imagens que precisamos debater com a sociedade”. 

As grandes empresas de tecnologia, como a Meta Platforms, Stability AI e OpenAI estão no centro da enxurrada de acusações de plágio por inteligência artificial. A OpenAI, que criou o ChatGPT, já vem reconhecendo a tendência e está correndo para evitar uma onda de “plágio auxiliado por IA”. 

Inclusive, a empresa Getty Images abriu um processo contra geradoras de inteligência artificial (IA) por uso indevido de imagem; artistas entraram na justiça por ilustrações utilizadas pelas mesmas empresas sem o devido crédito; alunos “colando” em avaliações com a ajuda do ChatGPT. Problemas como esses não faziam parte do nosso dia a dia, porém, cada vez que a tecnologia de aprendizado avança, esses dilemas se tornam mais comuns. 

Anderson Soares afirma que será necessária a adaptação da tecnologia à sociedade e vice-versa | Foto: Fernando Leite / Jornal Opção

Ainda assim, em alguns países, a criação digital tornou-se possível graças a inovações no campo legal. EUA, China e Austrália revisaram suas leis para permitir o uso, sem fins lucrativos, de bases de dados digitais por parte de pequenas startups, universidades e centros de pesquisa para o treinamento de algoritmos de classificação, geração e recomendação. 

Entre agentes culturais – artistas e produtores culturais no campo das artes visuais e da música – a IA tem sido utilizada em processos criativos com finalidade operacional em procedimentos como edição, mixagem e masterização. Existem relatos de artistas que utilizam ferramentas de IA como um acelerador do processo, e inclusive a transparência sobre esse assunto é tema de debate ético.

De acordo com Soares, “a cultura é grande e envolve uma das capacidades mais incríveis do ser humano, que é a abstração. Na cultura, as principais aplicações das inteligências artificiais está na produção e na edição de materiais visuais e sonoros”.

E afinal, como as inteligências artificiais interferem na cultura? Para responder a essa pergunta, primeiro é necessário entender o que são as inteligências artificiais, as consequências que elas trazem, suas aplicações, vantagens e riscos.

O que é a inteligência artificial?

Trata de tecnologias para a automatização de processos que exigem capacidade intelectual. Possibilita que as máquinas, para além da produção física e industrial, consigam desenvolver um raciocínio lógico para cumprir objetivos específicos.

O primeiro relato do uso de uma máquina com inteligência artificial aconteceu em 1936, com o matemático e pai da computação, Alan Turing. Este dispositivo era capaz de executar processos cognitivos, desde que os passos fossem quebrados em pequenas etapas individuais representadas por um algoritmo.

Tipos de inteligência artificial

Máquinas Reativas – Modelo mais simples e básico da inteligência artificial, essas máquinas não têm memória ou capacidade de aprender. Entretanto, elas são bem-sucedidas quando o contexto histórico ou experiências passadas não são necessárias para a resolução do problema.  O exemplo mais famoso vem da década de 90, o computador criado pela IBM, o Deep Blue, foi desenvolvido com o objetivo de vencer Garry Kasparov, o maior jogador de xadrez do mundo. Para a população da época, foi uma supresa quando o computador de fato venceu um ser humano. 

Memória Limitada – Com banco de dados e uma memória limitada, essas inteligências artificiais são capazes de realizar tarefas especificas de forma autônoma. O funcionamento ocorre através de algoritmos, modelos pré-programados e um banco de dados da própria máquina. Ou seja, não estão vinculados à internet, por exemplo. Esse tipo de inteligência é comumente visto em sistemas de atendimento ao cliente automatizados e sistemas de recomendação personalizada. Um dos exemplos mais comentados desse modelo são os carros autônomos, que são programados para operar no trânsito sem a necessidade de um motorista.

Teoria da Mente – Ainda em estágios iniciais, pode ser vislumbrado, em alguns momentos, com as Inteligências Artificiais do cotidiano, como ChatGPT, Alexa e Siri. O que difere esse modelo dos anteriores é a compreensão dos seres humanos; incluindo seus estados mentais, emoções, crenças e intenções. O aprimoramento dessa etapa continua como um desafio, pois é complexo e desafiador fazer com que uma máquina compreenda a natureza humana e suas subjetividades. 

Autoconsciente – Esse modelo existe apenas no campo teórico, sendo um dos principais debates dos pesquisadores da área. Como o nome sugere, nesse modelo de inteligência, a IA tem consciência sobre si mesma, sua existência e suas capacidades. Ou seja, é capaz de refletir e tomar decisões de forma independente. 

Vantagens

O Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br), departamento do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br), elaborou um panorama sobre a utilização de IA no setor cultural do Brasil, que foi utilizado como fonte de pesquisa para o desenvolvimento dessa matéria.

“Na cultura, tem sido utilizada para criação, edição e adaptação de conteúdos por artistas e produtores no campo das artes visuais, da música e da literatura. Entre instituições culturais – como bibliotecas, museus e centros culturais –, sistemas de IA têm sido usados para a gestão e a mediação cultural, seja no desenvolvimento de estratégias para maior alcance de seus públicos, seja para interação e atendimento por meio de ferramentas automatizadas. Na esfera da memória e do patrimônio, adiciona-se ainda sua utilização para a gestão da informação e catalogação de acervos, via indexação automática e qualificação de metadados. Além disso, destaca-se seu emprego, especialmente, por parte das plataformas digitais que disponibilizam conteúdo na Internet, cujos sistemas de recomendação têm se tornado determinantes não só para a fruição cultural online, como para a cadeia de produção, sobretudo do audiovisual e da música”, relata a publicação.

“A Voz da Arte”, realizada em 2017 pela Pinacoteca de São Paulo em conjunto com a IBM. A mostra utilizada um sistema cognitivo de IA, chamado Watson, para “conversar” com o público sobre algumas obras exibidas. Além da utilização dessa ferramenta na intermediação de interações entre a tecnologia e indivíduos e na mediação das criações humanas, a IA também oferecerá recursos para a manutenção de instituições e seus produtos, como no Projeto SIAP (Sistema de Inteligência Artificial para a detecção e alerta de riscos sobre o Patrimônio), realizado em 2019, em Portugal. O projeto, afirma em seu site que surgiu devido à “emergência de salvaguardar patrimónios, pessoas e comunidades, convoca os ganhos da evolução tecnológica e as metodologias de Inteligência Artificial para operacionalizar um sistema proativo de deteção e alerta de riscos”.

Além disso, as inteligências artificiais também aumentam a resiliência do setor cultural quanto ao fechamento em tempos de crise, ao suprirem meios de manter a visibilidade, a divulgação e os negócios, mitigando, assim, perdas financeiras incorridas por criadores e intermediários tradicionais. Durante a pandemia COVID-19, 300 museus chineses passaram a oferecer tours virtuais; o Ministério da Cultura egípcio criou um canal no YouTube para a disseminação de performances culturais; e a iniciativa japonesa #MusicAtHome ofereceu palcos digitais a jovens músicos, conectando-os a seus públicos.

Riscos

Anderson Soares afirma que será necessária a adaptação da tecnologia à sociedade e vice-versa. “Ainda temos que entender as consequências das tarefas automatizadas. Assim como nas revoluções industriais, onde muitas pessoas perderam seus empregos. Teremos manifestações classistas dos afetados, mas o resultado coletivo é mais importante do que alguns grupos”.

Inovações na geração cultural baseada em IA também levantaram questões com relação à autoria: a quem atribuí-la, especialmente quando algoritmos usam bases de dados cujos conteúdos são expressões de outros criadores? O que dizer de vídeos em que músicos falecidos cantam músicas geradas a partir de suas composições quando vivos e que são propriedade de terceiros, como ocorreu com Kurt Cobain, Jimi Hendrix e Amy Winehouse?

Algoritmos de reconhecimento têm sido adotados para a gestão de direitos sobre conteúdos digitais, a fim de impedir seu uso não-licenciado, mas com riscos para a liberdade de expressão em casos de paródias e adaptações criativas. A IA é tratada como um dos desafios para a diversidade de expressões culturais na era digital, na medida em que se apresenta sob o monopólio de grandes plataformas.

Além disso, a fragilidade dessas inteligências ao lidar com questões subjetivas também pode esconder vieses discriminatórios que prejudicam grupos sociais, ao afetar sua inclusão e seu senso de pertencimento. Essa tecnologia pode ter também efeitos negativos sobre a qualidade dos conteúdos culturais, por enfraquecer habilidades que poderiam ser pontos de partida para expressões criativas, ou por reduzir a intervenção humana na seleção de insumos, em seu processamento, ou na filtragem dos resultados.  

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