Animais invasores ameaçam infraestrutura, saúde pública e meio ambiente

28 outubro 2023 às 17h55

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O Brasil lida há algumas décadas com a multiplicação de espécies exóticas – seres vivos introduzidos no território onde originalmente não existiam. Parte desses invasores já são conhecidos pelos produtores rurais por devorar lavouras. Entretanto, publicações científicas têm reportado aumento expressivo no número de invasões biológicas ao longo dos últimos anos. Caso as “bioinvasões” não sejam controladas, além do prejuízo financeiro direto na perda da produção rural, os brasileiros podem enfrentar ameaças à saúde pública, danos à infraestrutura e perdas ambientais irreparáveis.
O exemplo mais conhecido dos agricultores é o javali, uma espécie trazida pelos portugueses ainda no século XVI para servir como caça. Sem a inconveniência dos predadores e parasitas naturais que o suíno encontra em seu continente de origem, ele se multiplicou consumindo lavouras de raízes, frutos, castanhas e sementes; além de desequilibrar o sistema ecológico devorando caracóis, minhocas, insetos e ovos de aves. O javali também ameaça a biodiversidade brasileira por competir por recursos e espaço com os animais locais. Apesar de ter se tornado selvagem ao longo dos séculos, o problema se agravou nas últimas décadas com a entrada de espécies mais competitivas e com o cruzamento entre o javali e o porco doméstico, que dá origem ao híbrido “javaporco”.
Enquanto o debate sobre controle de espécies exóticas no Brasil fica centrado na polêmica “ambientalistas versus pecuaristas”, reduzida no tema da autorização da caça, o assunto é agravado pela entrada de novas espécies invasoras. Em 2021, a lista do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) de espécies exóticas que se estabeleceram no Brasil chega a quase 500 nomes. A relação inclui desde cães e gatos até tilápias, rã-touro, tucunaré, coral-sol, peixe-leão, eucalipto e o mosquito aedes aegypti.
Especialistas mostram que algumas dessas espécies se dispersaram naturalmente, mas a esmagadora maioria invadiu outros ecossistemas devido à ação humana. Desmatamento, mudanças climáticas e outras formas de degradação ambiental trazem risco de aumento expressivo das invasões biológicas ao longo desse século.
Por que invasões são tão rápidas e destruidoras
Paulo De Marco é doutor em Ecologia e professor da Universidade Federal de Goiás (UFG) na área de Ecologia, Evolução e Biodiversidade. O pesquisador afirma que há diversas espécies invasoras no Cerrado, mas que as agrupa em categorias distintas. Primeiro, há a categoria das espécies criadas com propósitos econômicos em áreas delimitadas. São plantas como o capim-gordura (Melinis minutiflora) e a braquiária (Brachiaria decumbens) utilizadas como alimento para o gado, os pinheiros para a produção de resina, e outros.

Paulo De Marco comenta: “O problema ocorre quando estas espécies escapam do processo de produção agrícola e vão para áreas protegidas por lei, onde deveria haver apenas espécies nativas; áreas com a função ambiental de preservar a biodiversidade. Essas espécies causam problemas não só pela competição por recursos e desequilíbrio dos sistemas ecológicos, mas também porque alteram características do bioma. Por exemplo: as três espécies de plantas citadas (pinus, capim-gordura e braquiária) aumentam a propensão do cerrado a pegar fogo, causando incêndios mais frequentes e intensos do que as espécies nativas evoluíram para suportar”.
Outra preocupação é com a fragilidade dos ecossistemas locais. O Cerrado é o mais antigo bioma brasileiro, com idade de aproximadamente 65 milhões de anos. Por isso, as espécies nativas puderam se especializar em condições muito singulares, fora das quais não podem manter seus modos de vida. “Temos sistemas muito frágeis, como os buritizais, que são sensíveis às alterações ambientais”.
Não há uma característica única que garanta o sucesso das espécies invasoras em novos ambientes, explica o pesquisador, e que cada caso deve ser analisado separadamente. Apesar disso, há alguns fatores comuns que podem favorecer estas espécies. “Um dos fatores que justifica o rápido sucesso é a ausência de predadores e parasitas. Outras características que representam vantagens são a tolerância a variações ambientais e a velocidade na capacidade de se reproduzir”.
Paulo De Marco comenta que, em 1986, quando ainda era aluno da graduação em Ciências Biológicas, participou do monitoramento da invasão do caramujo-trombeta (Melanoides tuberculata) no Brasil. Este molusco é o hospedeiro intermediário de vários vermes trematódeos, alguns dos quais parasitam o ser humano. “O Melanoides tuberculata é partenogenético (capaz de se reproduzir sozinho, sem se acasalar com outro indivíduo). Um dos fatores que explica seu sucesso é que um único indivíduo consegue criar toda uma população; por isso é muito difícil impedir sua proliferação.”
Mexilhão-dourado
A revista Science relatou no dia 21 de outubro a história da invasão do mexilhão-dourado (Limnoperna fortunei) no Brasil. Desde sua chegada à região Sul brasileira, na década de 1990, o bivalve asiático causou danos na estrutura de usinas hidrelétricas, barragens, dragas e ductos. Até agora, o mexilhão invadiu cerca de 40% das usinas hidrelétricas do Brasil. A Usina Hidrelétrica Governador José Richa do Iguaçu, que gera energia para 4 milhões de pessoas, gasta cerca de 1 milhão de reais por ano bombeando produtos químicos tóxicos que impedem a proliferação de mexilhões nos tubos de água que circundam e resfriam suas turbinas.
Se os tubos entupirem, a água para de correr e as turbinas podem superaquecer e parar. Conchas afiadas de mexilhões revestem as escadas e corrimãos nas câmaras da represa, tornando difícil para as tripulações fazer a manutenção de rotina. Um estudo preprint publicado em 2018 na PeerJ estima que a praga do mexilhão custa ao setor elétrico brasileiro 120 milhões de dólares por ano.

Suas conchas escuras têm em média dois centímetros e se fixam nas superfícies liberando filamentos superadesivos, quase invisíveis, conhecidos como fios de bisso. Os fios permitem que eles ocupem áreas inexploradas por moluscos nativos – nenhum dos quais tem esse poder de aderência. Seus poderes reprodutivos também são formidáveis. Se a água estiver mais quente que 15 ° C (como a maioria dos rios brasileiros), eles liberam milhares de gametas na água.
Sem nenhum predador local para controlá-los, eles sufocaram e apodreceram as raízes das plantas ao longo da costa, e até cresceram em cima de outros animais, como moluscos nativos e caranguejos, sufocando-os. Poucos meses após terem sido registrados pela primeira vez, os mexilhões sem predadores se multiplicam de tal maneira que obstruem os encanamentos que abastecem a cidade, incrustam rochas, barcos, cais e pontes, formando densas estruturas semelhantes a recifes com mais de 200 mil indivíduos por metro quadrado.
Uma catástrofe ainda maior se aproxima: a invasão do Amazonas e de seus afluentes, parte da maior bacia hidrográfica da América do Sul, que se estende por oito países e é um dos mais ricos focos de biodiversidade do planeta. Mexilhões dourados foram documentados no Pantanal, a apenas 150 quilômetros do rio Téles Pires, que deságua na bacia amazônica e se conecta ao rio Tapajós, um afluente do Amazonas.
“Basta um barco incrustado de mexilhão para atravessar o pantanal para que o invasor faça uma nova morada em um rio amazônico”, diz a bióloga Márcia Divina, da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Se o invasor se espalhar pela Amazônia, pode exterminar espécies nativas que os cientistas ainda nem estudaram, acrescenta. “Não podemos nem calcular o tamanho do impacto.”
Em 2020, o Ibama finalmente lançou um plano nacional para monitorar e controlar o mexilhão dourado. O plano, criado coletivamente por autoridades, acadêmicos e indústria, estabeleceu metas para os próximos 25 anos para mitigar o impacto do invasor e prevenir sua chegada à bacia amazônica. As medidas incluem fomentar a pesquisa, informar o público sobre as espécies invasoras e criar legislação que exigiria, por exemplo, que usinas hidrelétricas verificassem a presença de mexilhões em suas represas.
Mas a pandemia e os cortes no orçamento federal atrasaram as ações planejadas, afirma o biólogo Rogério Santos, da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), em Cuiabá, que integra a força-tarefa nacional de controle da propagação do mexilhão. Esforços de controle sub financiados têm se concentrado em medidas locais que protegem barragens individuais e empresas privadas, diz ele. Enquanto isso, os cientistas sabem mais sobre o invasor do que sobre a fauna local que ele está destruindo, o que torna difícil medir o número de vítimas dos mexilhões. Ele acredita que a chegada do mexilhão dourado à bacia amazônica é inevitável e teme que pará-la ainda não seja uma prioridade do governo federal.
Atividade humana pode ser a causa
Segundo informações da Agência Bori, pesquisadores da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) em parceria com as universidades federais do Rio Grande do Norte e da Paraíba relatam a proliferação de uma nova espécie de peixe na bacia do rio Paraíba do Norte, vinda do canal do rio São Francisco. Identificada pela primeira vez na região pelos pesquisadores após a transposição do rio, a espécie de peixe Moenkhausia costae, popularmente conhecida como tetra fortuna, pode provocar um desequilíbrio no ecossistema da região ao competir com outras espécies de peixes nativos. O estudo está publicado na edição de maio da revista “Biota Neotropica”.
De acordo com o pesquisador Telton Ramos, autor do estudo, os peixes da bacia do rio Paraíba do Norte já vinham sendo monitorados há alguns anos pelos autores do trabalho, mesmo antes das obras de transposição do rio. A transposição de rios em regiões secas ao redor do mundo tem ocorrido bastante, principalmente, devido à alta demanda por água doce. Porém, estes grandes empreendimentos representam, também, uma ameaça à biodiversidade aquática das regiões ao provocarem um desequilíbrio na fauna nativa, diz o cientista.

“A introdução de espécies exóticas é considerada uma das maiores causas de perda de biodiversidade nativa em todo o mundo, levando muitas populações à extinção”, enfatiza Telton Ramos. O pesquisador afirma que o estudo alerta para futuras transposições de rios. “É necessário muito cuidado em projetos de transposição, para evitar situações como essa. O projeto da transposição do rio São Francisco previa diversas barreiras que em tese impediriam a passagem de peixes pelos canais, mas pelo jeito, não foram suficientes”, explica.
Controle
A erradicação completa de espécies exóticas invasoras é frequentemente inviável, afirma Paulo De Marco. E tentativas feitas nesse sentido já produziram resultados indesejados e até mesmo prejudiciais, porque a simples retirada da espécie exótica invasora não reconstitui o ambiente. O pesquisador afirma que a melhor política é planejar para impedir que espécies nocivas cheguem. Segundo ele, é bem estabelecida a relação entre alteração do sistema pelo ser humano (antropização) e o aumento das espécies exóticas.
Então é necessário preservar áreas sem influência humana. “O Brasil tem uma legislação ambiental que deixa muito claro a participação governo poder público na proteção ecológica das unidades de preservação ambiental. Entretanto, já há três anos, os mecanismos de controle estão desorganizados e ineficientes. Nosso principal problema não é criar novas estratégias para o controle de espécies invasoras, mas sim executar o planejamento para evitar que esse problema aconteça e fiscalizar constantemente”.