Ao Jornal Opção, PM reformado revela tragédia experimentada na Operação Césio

06 setembro 2020 às 00h00

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Aos 70 anos, o tenente reformado da Polícia Militar de Goiás, Wilson Quintino Alves de Souza, precisa tomar 11 comprimidos todos os dias, religiosamente. O militar, que mora há quase 40 anos no Parque Atheneu, em Goiânia, sofre de diversos males físicos e psíquicos como diabetes, neuropatia, cegueira parcial de um olho, depressão e ansiedade. Essas duas últimas são as que, normalmente, mais fazem Quintino perder o sono, levando-o a tomar um comprimido de Sertralina para voltar a dormir. Porém, nem sempre foi assim. Na verdade, a aflição do tenente, incluindo as doenças que hoje o acometem, teve início há pouco mais de 30 anos.
Para ser específico, tudo começou em 13 de setembro de 1987, quando Devair Ferreira, dono de um ferro-velho, comprou de Wagner Mota e Roberto Santos, catadores de material reciclável, um aparelho de radioterapia encontrado nas antigas instalações do Instituto Goiano de Radioterapia, no Centro de Goiânia. Curioso sobre o conteúdo, Devair abriu a cápsula e se encantou pelo brilho azulado da substância encontrada. Passou a ser o seu “tesouro”. Mas a bela luminosidade do pó vinha de um isótopo altamente radioativo usado no tratamento de câncer, conhecido como césio-137. Devair não sabia disso. Quintino e seus colegas de farda também não.
À época, a Polícia Militar era comandada pelo Coronel Waltervan Luiz Vieira, que ficou à frente da corporação até o ano de 1989. Quintino, um aluno sargento do 7º Batalhão da Polícia Militar, conta que naquele setembro de 1987, 50 alunos sargento e 50 alunos cabo foram escalados para se dedicarem integralmente ao que viria a ser a Operação Césio. O receio do desconhecido era forte, mas o poder hierárquico falava mais alto.
Sentado no sofá de casa enquanto sua esposa arruma a cozinha e a cadela Lilica descansa aos seus pés, Quintino começa a puxar pela memória tudo o que lhe ocorreu nos seis meses que durou a operação. “O conhecimento nosso era muito pouco. Nós não tínhamos ideia, não pensávamos que era tanta coisa. Polícia era “sim, senhor! Não, senhor!” e é assim até hoje. A gente simplesmente cumpre a ordem. A Polícia Militar também não foi avisada do perigo que corria. Eles não tinham a dimensão do que poderia acontecer no futuro”, relata.
O trabalho a ser feito pelos militares incluídos na Operação Césio era essencialmente simples. Segundo o tenente reformado, ele e os colegas tinham que realizar o isolamento e bloqueio dos lugares considerados epicentros do acidente, como a casa na Rua 57, no Centro, onde a cápsula havia sido aberta, e o local na 26-A, no Setor Aeroporto, para onde a substância havia sido transportada. O objetivo principal era manter longe os civis que, curiosos e assustados, se aglomeravam para tentar saber o que estava acontecendo.
“Vocês só usam isso?”
A cadeia de contaminação pelo césio-137 se expandiu de forma assustadora. Devair, o dono do ferro-velho que havia se apaixonado pelo brilho do isótopo, recebia visitas e as presenteava com pequenas quantidades do pó azulado e brilhante. O elemento só foi identificado no dia 29 de setembro, mais de 15 dias após a abertura da cápsula, quando a Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen) foi notificada. Porém, o estrago já estava feito, e o pânico começava a se alastrar.
Desconhecendo a causa, pessoas começaram a procurar unidades de saúde relatando mal-estar e eram diagnosticadas como portadoras de alguma doença infectocontagiosa. Foi quando o Governo de Goiás, à época sob o nome de Henrique Santillo, decidiu agir.
O Estádio Olímpico Pedro Ludovico Teixeira, no Centro da capital, se transformou num grande “ambulatório”. Convocadas pelo governo, a população das regiões próximas ao acidente compareceu em massa nos últimos dois dias de setembro e ao longo de todo o mês de outubro de 1987 para ser monitorada. Conforme o Centro de Assistência aos Radioacidentados (CARA), foram monitoradas 112.800 pessoas, com 249 identificadas com algum grau de contaminação no corpo e 120 com contaminação externa (roupas e sapatos). E lá estava Quintino e as equipes policiais.

O tenente diz que tem marcada na memória a figura dos funcionários da Cnen usando trajes especiais de proteção e máscaras enquanto descartavam objetos contaminados e monitoravam a população, enquanto ele e o restante dos policiais tinham a farda como única fonte de proteção.
“O pessoal da Cnen, quando começou a trabalhar no recolhimento de rejeitos, vestia aquela roupa especial, toda coberta. Lembro bem. Inclusive teve um funcionário, quando eu estava lá policiando, criando as barreiras para a não aproximação dos civis, porque também virou uma curiosidade, que chegou em mim e perguntou ‘Ué, vocês só usam isso?’. Era só a farda que a gente usava, mais nada”, rememora Quintino.

Policiais e bombeiros militares da época tiveram que ficar à disposição da Operação Césio. As funções eram várias, mas com um ponto em comum: os servidores, que tinham esposas, filhos, ficavam em constante contato com o isótopo radioativo. Quintino conta que foi designado algumas vezes para transportar pacientes infectados para o Hospital Geral de Goiânia – Inaps, hoje, Hospital Alberto Rassi, localizado na Avenida Anhanguera.
“Foi feito um departamento de atendimento aos infectados pelo césio, na época, nesse hospital. E muitas vezes a gente até levava paciente pra lá, mas sem nenhuma proteção”, revela.
“A gente entrava no ônibus e as pessoas desciam”
Quando a informação sobre a gravidade dos males da radiação do césio-137 começou a se espalhar, a população de Goiânia entrou em um estado misto de medo e confusão. As pessoas não sabiam exatamente o que era o césio e quais seus efeitos, mas perceberam que o contato direto com ele era prejudicial. Aqueles que haviam entrado em contato, de alguma forma, com o césio, passaram a ser vistos como “leprosos”.
O tenente Quintino revela ter sentido o preconceito de forma escancarada durante sua atuação na Operação Césio e também depois dela. “A gente era muito discriminado. Tinha amigo meu que não encostava em mim, com medo de ser contaminado”, conta.

Segundo o militar reformado, os policiais ganhavam um baixo salário na época e grande parte deles era pobre, de origem humilde. Segundo Quintino, os integrantes da corporação ficavam 100% à disposição da operação e, no fim do expediente, tinham que pegar o transporte coletivo para voltar para casa. Nesse momento, os policiais sentiam a hostilidade do preconceito. “A gente entrava no ônibus e as pessoas desciam. Era a gente entrar e eles descerem. Ninguém queria ficar perto da gente, não”, diz.
A rejeição por parte de amigos e conhecidos por conta da Operação Césio acabou afetando profundamente o psicológico de Quintino. O tenente desenvolveu ansiedade e depressão, que trata desde 1998, e, até hoje, 33 anos depois do acidente, costuma passar noites em claro. “Fica uma nódoa na sua vida, uma coisa, um trem esquisito. É uma luta constante, porque quanto mais você luta, mais ansioso você fica”, desabafa.
O enterro
Sobrinha de Devair Ferreira, o dono do ferro-velho que comprou a cápsula de césio-137, a pequena Leide das Neves, de apenas 6 anos, foi a vítima com a maior dose de contaminação radioativa pelo isótopo. Seu pai, Ivo Ferreira, ganhou de Devair uma pequena quantidade do pó azulado. Leide, fascinada e num ato de pura ingenuidade, passou os dedos pela substância espalhada pela mesa e depois, com as mãos contaminadas, comeu um ovo.

Leide das Neves morreu em 23 de outubro de 1987, por hemorragia de múltiplos órgãos no Hospital Naval Marcílio Dias, no Rio Janeiro, unidade que recebeu algumas vítimas do césio. Leide retornou do Rio no dia 26 de agosto. Morta. Seu corpo chegou lacrado num caixão revestido de chumbo e cimento que pesava em torno de 700 quilos. Sob os olhares de uma multidão de cerca de 2 mil pessoas, a menina foi enterrada no Cemitério Parque, em Goiânia. O Tenente Quintino, à época aluno sargento, era um desses olhares.
“Os caixões foram enterrados bem na beirada do muro, porque eram muito pesados e tinham que ser erguidos e descidos com guindaste. Eu presenciei aquilo”, conta Quintino. O militar relembra o principal sentimento que transparecia na expressão dos presentes: horror. A tensão pairava no ar. A impressão que se tinha, segundo Quintino, era que o conteúdo do caixão não era o corpo de uma pessoa, mas sim um rejeito radioativo.
“Quem via aquilo, pensava ‘Eu estou na mesma, eu estou sujeito a também ser um rejeito’. Porque ali não foi um corpo, foi um rejeito. Foi uma bomba de césio que foi enterrada ali. Emocionava, causava medo, causava revolta”, narra.
Quintino e os colegas de farda haviam sido designados para controlar a população presente e também a fúria dela. Isso, porque no dia do sepultamento de Leide das Neves houve um intenso tumulto de manifestantes que não aceitavam que o corpo da menina fosse enterrado no Cemitério Parque, pelo medo da contaminação.
“Nós, policiais militares, que tivemos que conter a emoção e revolta do povo. Todo e qualquer ato envolvendo o césio, que poderia ter revolta ou qualquer reação popular, nós tínhamos que estar presentes justamente pra conter a turba, a revolta do pessoal”, recorda o tenente.
O caixão de Leide das Neves desceu ao solo sob pedradas e xingamentos. Lourdes das Neves, mãe da criança, só conseguiu se aproximar do caixão da filha para se despedir sem ser agredida porque contou com a intervenção da primeira-dama de Goiás da época, Sônia Santillo. “Deixem a mãe enterrar sua filha”, teria implorado à multidão.
O depósito
Em Goiânia, por causa da contaminação, 41 casas foram evacuadas e 7, demolidas. Famílias que perderam seus lares após serem atingidos pelo terror do “brilho azul”. A Operação Césio também se estendeu à Abadia de Goiás, local escolhido para abrigar o depósito, inicialmente temporário e depois, definitivo, de rejeitos do césio-137.
Apesar dos protestos de moradores próximos da região, o material radioativo fruto da exposição do isótopo foi todo levado para o município a pouco mais de 20 quilômetros da capital. Conforme dados do Centro de Assistência dos Radioacidentados (CARA), foram transportados 6 mil toneladas de rejeitos; 4,2 mil tambores comuns de 200 litros; 1,3 mil caixas metálicas; 8 recipientes de concreto e 10 contêineres marítimos. Quintino também estava lá.
Para o tenente reformado, o horror que havia impregnado Goiânia recaiu sobre Abadia de Goiás com a transferência dos rejeitos. “As pessoas lá se revoltaram”, relata. Quintino evoca lembranças de fazendeiros e moradores da zona rural próxima do depósito que entraram em desespero após terem suas terras drasticamente desvalorizadas e seus animais sacrificados.

“Lá na Abadia, o depósito de rejeitos, me marcou muito. Lá, ao redor, tinham aquelas pessoas que viviam ali, tinham suas terras, tinham criações. Elas tinham que pegar seus animais e matar, porque vender… vender pra quem? Ninguém queria comprar”, conta.
Quintino revela que, de setembro de 1987 a fevereiro de 1988, ficou integralmente à disposição da Operação Césio. “Nós só voltamos para o quartel depois para fechar as aulas e terminar o curso e ser formado sargento. Porque toda essa operação contou como aulas pra gente, ne”, expõe.
A Operação Césio findou, mas suas impressões no corpo e na mente do Tenente Quintino permaneceram.
33 anos depois
Wilson Quintino tornou-se militar da reserva em 1998 e reformado em 2015, aos 65 anos. Desde que entregou sua atuação na Operação Césio, junto com os colegas de farda, sua vida nunca mais foi a mesma.
O militar, hoje, precisa usar uma prótese na boca, uma vez que, devido à contaminação radioativa, perdeu absolutamente todos os dentes. Quintino também desenvolveu uma série de doenças, todas crônicas. Seu sangue, coração, pernas, boca, mente, olhos, praticamente tudo em seu corpo perdeu o bom funcionamento depois do acidente.
Mesmo depois de mais de três décadas, Quintino revela que seu psicológico ainda revive aqueles dias como se fossem atuais. Ele conta que não dorme bem e quase sempre precisa estar medicado para que isso aconteça. Para “ocupar a mente”, Quintino conta que começou um curso de Direito. Está no quarto período. “Isso justamente para aliviar a mente, ter ocupação e esquecer essas coisas, esse passado tenebroso”, diz, enquanto olha para algum espaço vazio, além do alcance da vista.

Graças à graduação em curso, Quintino relata que ajuda vários conhecidos e amigos, que também estiveram na Operação Césio, a entrar na Justiça. “Faço processo para eles, entro na Justiça. Tenho advogados que são meus amigos, porque isso, essa coisa do césio, é uma coisa que não acaba mais, nunca mais”, diz.
As perdas não se restringiram a ele próprio. Após a Operação Césio, boa parte de seus amigos, um a um, padeceram sob os efeitos da radiação e morreram. “Não foi um, nem dois, foram vários. Amigo meu que trabalhou comigo, lá. O índice de câncer da polícia de lá pra cá aumentou demais, demais mesmo. Alguns amigos meus tiveram filhos depois disso. Nasceram todos especiais”, conta.
Quando a tragédia se concretizou, em 1987, Quintino já tinha esposa e três filhos (um deles vindo a falecer tempos depois por outras causas). A família já era constituída. Questionado se a radiação os afetou de alguma forma, Quintino hesita, mas responde. “Qualquer patologia que eles venham a sofrer pode ser devido a isso. Mas não tem como provar isso, porque não existe um exame pra dizer o grau de contaminação”, lamenta.
O militar reformado conseguiu o direito à pensão federal, no valor de um salário mínimo, e agora luta para receber a estadual. Em 2016, Quintino ingressou com uma ação contra a União e a Cnen por danos morais em razão de seu contato com o césio-137. Em agosto deste ano, a decisão saiu favorável a ele.
A União está recorrendo, mas, ao que tudo indica, a sentença que garantiu ao tenente o valor de R$ 60 mil de indenização, mais de 30 anos depois do acidente, deve ser mantida. O caso ganhou bastante repercussão na imprensa e nos meios de comunicação em geral. Foi a primeira ação desse tipo, proposta por um militar, ganha da história.

Hoje, Quintino conta também com o auxílio do CARA, em Goiânia. “Pessoal muito atencioso, todos eles. Me dão todo apoio, psicológico, moral, mas é uma coisa que vai demorar muito pra acabar”, descreve. Ele exibe com orgulho uma dedicatória do Centro de Assistência na parte interna da capa de um trabalho de fotorreportagem, onde está escrito “Para o Tenente Quintino. Obrigada pela sua contribuição”.
O militar folheia o livro de fotos e reconhece alguns de seus amigos policiais nelas. Alguns já falecidos, outros não. A descrição que faz de tudo é viva, quase dolorida. “Isso aqui destruiu famílias inteiras, sabe”. Ele se demora numa das páginas. A foto mostra operários colocando um bloco de concreto sobre a sepultura de uma vítima do césio-137, no Cemitério Parque. “Famílias inteiras”, repete.