Dizem que cidades são organismos vivos e assim devem ser entendidas. Gestores e empreendedores têm tratado Goiânia como algo a qual sempre podem protelar os cuidados básicos

Goiânia em seus primeiros anos e o complexo logístico-industrial instalado na região norte: exemplo da diferença entre uma cidade com planejamento adequado e um emprendimento a que qualquer planejamento da cidade precisa se adequar | Helio de Oliveira / Reprodução/Vale Verde
Goiânia em seus primeiros anos e o complexo logístico-industrial instalado na região norte: exemplo da diferença entre uma cidade com planejamento adequado e um emprendimento a que qualquer planejamento da cidade precisa se adequar | Helio de Oliveira / Reprodução/Vale Verde

Elder Dias

Estamos no início dos anos 50. Pedro, aos 17 anos, é um adolescente que tem uma vida inteira pela frente. Está cheio de planos, que não percorrem exatamente o mesmo caminho daquele é projetado por seus pais, obviamente até, mas incluem, ali à frente, faculdade, carreira sólida, um bom casamento, casa confortável com automóvel na garagem, um casal de pequenos herdeiros e férias na praia. Ambições bem convencionais, mas não se pode negar que seja isso que signifique qualidade de vida para um bom contingente dos humanos.

De repente, numa dessas saídas para uma baladinha dos anos dourados, é apresentado a um companheiro que vai acompanhá-lo pelo resto da vida: o cigarro, um vício que, visto de hoje, pareceria algo inofensivo diante de cracks e drogas sintéticas que rolam por aí. E, de fato, Pedro acabou se tornando fumante, e por toda a vida. Realmente entrou em uma boa faculdade; fez família e filhos, casa e carreira; tirou carro zero na revendedora e até férias em Copacabana. Mas tudo isso em meio à nicotina, que abreviou seus dias e, durante estes, reduziu seus prazeres: teve de se ausentar da companhia de parentes e amigos para ficar em seu “canto de fumar”, percebeu seu hálito e seu paladar mudarem, foi obrigado a tomar remédios indesejáveis e passou a comparecer ao médico e ao pronto-socorro com frequência acima da média para alguém de sua idade. Ficou velho rapidamente e foi embora cedo demais.

E eis que entramos no terceiro parágrafo de um texto que, na verdade, está sendo confeccionado para falar sobre uma relação nada republicana dos protagonistas de uma cidade com ela própria. Mas por que comparar Goiânia a um fumante inveterado? Para “encaixar” a analogia em princípio um tanto desconexa, é preciso antes se lembrar de que nosso personagem, Pedro, tinha projetos traçados que foram mudados ou abreviados por um elemento não previsto, o tabagismo.

Muitos arquitetos e urbanistas costumam dizer que cidades são organismos vivos e assim devem ser entendidas. Não se pode deixar de cuidar de uma cidade nem achar que ela é um “ser” que vai resolver tudo por si mesma. Uma comparação literal, nesse sentido, vem do especialista em meio ambiente urbano Nicholas You, também presidente do comitê de coordenação da campanha urbana mundial da ONU-Habitat: “A cidade é um organismo vivo que precisa ser gerido como uma entidade única e, como qualquer organismo vivo, precisa ser desenvolvida.”

Atenção para a palavra “gerido” da frase de Nicholas You, autor de vários livros e artigos sobre sustentabilidade e temas afins. “Gerido” vem do verbo “gerir”, que tem como alguns de seus sinônimos, segundo os dicionários: gerenciar, administrar, dirigir, reger, aplicar, gerir, governar, ministrar, regrar, superintender, capitanear, comandar, conduzir, controlar, encabeçar, encaminhar.

Todos os organismos vivos — entre eles o fumante Pedro ou a hoje populosa Goiânia — são de alguma forma geridos. Se há alguma força inteligente a conduzi-los (no caso de Pedro, o cérebro; no caso de Goiânia, seus políticos e a sociedade organizada), podem ser então geridos de forma virtuosa ou viciosa.

A questão, enfim: como pensar a capital goiana hoje como cidade? O que fizeram dela foi vício ou virtude? Não é à toa a comparação ao encontro de Pedro com o tabaco nos anos 50. Foi naquela década que Goiânia saiu dos trilhos originais de seu planejamento, com o desvirtuamento de sua concepção urbanística inicial.

A capital deu seus primeiros passos fora da rota planejada. É bem verdade que o “planejado” era para 50 mil habitantes, o que então já se alcançava. Mas, como organismo vivo, era possível reelaborar a rota de modo a contemplar a mesma linha de desenvolvimento. Isso não ocorreu. Mal comparando, a “tragada” inicial da adolescente Goiânia.

Desde então, frequentemente o discurso de quem gere esse organismo tem sido um e a prática tem sido outra. Dizem os gestores – assim como dizem as entidades que comandam os grandes empreendimentos – que é preciso “planejar a cidade”, que é necessário “pensar o espaço urbano de forma racional”, que não se pode viver sem estar “em sintonia com o meio ambiente”.

Desde a década de 50, a fumaça do crescimento desordenado tem entupido as artérias de Goiânia. O processo de intoxicação começou de forma lenta, quase sem ser percebido. Tudo foi se acentuando a partir do êxodo rural das décadas seguintes até atingir o estágio de alerta vermelho dos tempos atuais. Não foi por falta de aviso. Em cada período, alertas foram dados e recomendações foram feitas por especialistas. Os cérebros de cada gestão e os respectivos donos das planilhas urbanas — leiam-se construtores, empresários e suas entidades — fizeram sinais positivos, disseram que topavam o desafio de mudar o curso errado. Só disseram.

Para citar um caso de desvirtuamento: o emblemático episódio da instalação do complexo Arisco, depois Unilever e hoje Cargill, na zona norte da cidade. A centenas de metros da sede estão as margens do Rio Meia Ponte. Quando de sua inauguração, em 1985, a região era totalmente cercada por chácaras e pequenas propriedades rurais, como desmembramento da antiga Fazenda Retiro.

O mandatário do Estado na época da negociação do empreendimento da Arisco era Iris Rezende (PMDB). Eleito governador com grande aprovação popular em 1982, ele viabilizou uma nova legislação para que a indústria fosse instalada. Era o efeito Fomentar, com grandes privilégios fiscais e alta tolerância a impactos ambientais. No discurso, diziam que Goiás (e Goiânia também) estavam avançando. Era o progresso. Com que planejamento?

Talvez o mesmo que um fumante tenha ao colocar o cigarro em sua vida. Ele o vê como um detalhe, nada que o importune. Ninguém fuma pensando no preço que vai pagar, assim como ao trazer a indústria evitaram pensar nas consequências em longo prazo. Hoje, a região, tida como berço das águas da cidade, está lotada de empresas de logística, caminhões e muito asfalto. Isso em uma área onde só deveriam existir nascentes, talvez com alguma atividade de pequeno impacto ao redor.

Em Cingapura — a cidade-Estado que políticos e empreendedores antenados gostam de citar —, cada quadrante tem sua destinação prévia já concebida. Cada retalho de sua superfície tem sua função. O investidor que quiser se estabelecer vai ter de se adequar ao espaço (bem estruturado, diga-se) que lhe indicam. Ou nada feito. Em Goiânia, com a Arisco em 1985, com a Universidade Salgado de Oliveira (Universo), em meados dos anos 90, e agora com a Hypermarcas, a lógica foi sempre a inversa: o espaço urbano é que tem de ser adequado, em termos de legislação, para receber os megaempreendimentos. Esses são apenas alguns casos, mais emblemáticos: há inúmeros outros.

Por coincidência — e não é uma figura de linguagem para expressar ironia, até porque fatos como esses não são exclusividade de uma administração ou um administrador em particular — o mesmo Iris Rezende tem sua gestão como prefeito agora contestada. A atual Comissão Especial de Inquérito (CEI) da Câmara de Goiânia, que apura irregularidades ocorridas na documentação de vários empreendimentos imobiliários por ocasião da implantação do atual Plano Diretor, centraliza ações no período de 2007 a 2010, quando ele era o prefeito da capital.

Conhecida como CEI das Pastinhas, a investigação é importante politicamente. Mas, leva a pensar além: sobre o que aqueles que deveriam gerir o “organismo vivo” acabam fazendo dele. Um dos focos da discussão entre os vereadores é a destinação de empreendimentos na região do viaduto da BR-153 com a área vizinha ao Paço Municipal, já com fluxo bastante adensado.

Trânsito congestionado na Avenida 85: sintoma de que as “artérias” da cidade já estão comprometidas | Fernando Leite/Jornal Opção
Trânsito congestionado na Avenida 85: sintoma de que as “artérias” da cidade já estão comprometidas | Fernando Leite/Jornal Opção

Vejamos: apenas três empreendimentos vizinhos, dados os anúncios de seus idealizadores, darão ao lugar o total de 1,7 mil novas habitações. Uma pequena cidade. O entendimento do atual Plano Diretor é de que ali não há condições de implantar algo desse porte. Supondo que cada uma das famílias – de classe média alta, de acordo com os projetos assinalados – tenha dois automóveis, o que é a regra, o trânsito, que já está saturado, ficaria impraticável.

Ao mesmo tempo, qualquer empreendimento imobiliário de que se tenha notícia puxa o foco para a “qualidade de vida”, o “conforto”, o “bem-estar”. E, ao falar sobre o futuro do espaço que ocupam, as imobiliárias tecem um cenário de verde e brisas: é a “cidade do próximo século”, o “diferencial em termos de conceito” etc.

A investigação que agora ganha os corredores da Câmara de Goiânia tem o curioso apelido de CEI das Pastinhas. Por quê? Porque empresários que se comprometeram a cumprir acordo firmado na transição ao novo Plano Diretor, resolveram dar um “jeitinho” de abrir processos de novas edificações no prazo limite para ainda poder usufruir das regras antigas, mais maleáveis. E, então, encheram os processos de vento. Faltaram documentos. Alguns tinham praticamente só as pastinhas.

Tal qual o fumante inveterado que não quer largar o vício “agora” — mesmo em evidente decadência física —, gestores e empreendedores jogam para o futuro o real planejamento para Goiânia. Não veem que a hora já passou. E que uma pastinha vazia é o cigarro que se fuma escondido. E ambos, cidade e fumante, vão perdendo a força nos pulmões. Até não poderem mais gritar pelo socorro que nunca se deram.

Vereadores pedem condução coercitiva de Lourival Louza
Vereador Elias Vaz: “Tentamos notificar Lourival Louza várias vezes. Não queremos condenar ninguém, só fazer nosso trabalho” | Fernando Leite/Jornal Opção
Vereador Elias Vaz: “Tentamos notificar Lourival Louza várias vezes. Não queremos condenar ninguém, só fazer nosso trabalho” | Fernando Leite/Jornal Opção

O presidente da Comissão Especial de Investigação (CEI) que apura irregularidades em projetos imobiliários, a CEI das Pastinhas, Elias Vaz (PSB), confirmou que o pedido para que o empresário Lourival Louza, dono do grupo Flamboyant e de outros empreendimentos, seja conduzido coercitivamente para depoimento aos vereadores. “Tentamos notificá-lo várias vezes. Quando era para ele ir, nós não o encontramos e ele chegou a dizer que não deveria ser investigado. Ora, o objeto da CEI é apenas apurar os indícios de irregularidade, não estamos condenando ninguém. Quando resolvemos acionar o Judiciário para a condução coercitiva, um dos advogados dele nos procurou e nos disse que ele aceitava marcar nova data. Falei para que ele nos enviasse esse pedido por ofício. Como não ocorreu até hoje (sexta-feira), demos entrada com o pedido na Justiça.”

Elias Vaz aproveitou o contato da reportagem do Jornal Opção para ressaltar a matéria de Marcos Nunes Carreiro, publicada na edição 2095 e intitulada “Justiça considera ilegal decreto de Iris Rezende sobre o Plano Diretor”. Nela, de forma exclusiva, o repórter apresenta e detalha uma sentença do juiz Sebastião Luiz Fleury que classifica um decreto do então prefeito Iris Rezende (PMDB) e uma Lei Complementar como ilegal e inconstitucional, respectivamente. “Foi um divisor de águas. Tivemos acesso a um material muito importante, uma novidade que nos abriu caminhos”, classificou o vereador.

Empresário Lourival Louza | Foto:Divulgação
Empresário Lourival Louza | Foto:Divulgação

Na sexta-feira, 11, a CEI das Pastinhas recebeu o depoimento de Paulo Silas, ex-sócio da J. Virgílio Imóveis e atual dono da SIM Construtora. Elias Vaz considerou “enriquecedora” a fala de Silas. “Ele admitiu que entregou documentos fora do prazo, mas acrescentou que não só ele, mas vários fizeram isso. Reconheceu que alvarás foram assinados fora do prazo. O depoimento produtivo porque veio ao encontro de fatos que estão apontados na investigação até o momento.”

Esta semana da CEI terá a quarta-feira como principal dia: os vereadores vão visitar obras apontadas na investigação como irregulares. Já na outra semana, na quarta-feira, 23, devem ser colhidos mais depoimentos de importantes empreendedores, entre eles o ex-presidente e conselheiro nato da Associação das Empresas do Mercado Imobiliário de Goiás (Ademi), Ilézio Inácio Ferreira, sócio-proprietário da Consciente Construtora; Malkon Merzian, diretor da Merzian Incorporadora; e Dener Justino, diretor da Opus Inteligência Construtiva.

Os vereadores discutem se o ex-prefeito Iris Rezende deverá ser chamado a depor. A opinião geral é de que no momento ainda não seria necessário. Eles querem primeiro avaliar as informações repassadas por Marconi Pimenteira, ex-procurador-geral do Município em sua gestão. Caso ele não consiga convencer sobre os três questionamentos que pairam sobre Iris — a conturbada venda da área para a Euroamérica, o decreto polêmico e a inconsistente justificativa para a circulação atrasada do Diário Oficial com a sanção do Plano Diretor — o ex-prefeito é quem deverá prestar esclarecimento à CEI das Pastinhas.