Conflito atual é entre nacionalismo e liberalismo, não direita e esquerda

15 dezembro 2019 às 00h01

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Debate político ainda se dá em termos ultrapassados da Guerra Fria. Estudiosos afirmam que próximos conflitos e alianças serão pautados por tecnologia, movimentos migratórios e guerras cambiais

Há duas semanas, via Twitter de Donald Trump, o Brasil foi ameaçado pelo nacionalismo americano; o presidente ameaçou taxar o aço e alumínio brasileiros como forma de retaliação por uma suposta desvalorização intencional do real. Mas a pequena disputa cambial não é nada quando comparada às Tax Wars entre Estados Unidos, França e China, movidas pelas esferas de influência tecnológica. Além das políticas de proteção fiscal, as crescentes barreiras contra migração vêm caracterizando um retorno ao nacionalismo.
A pauta foi assunto da reportagem de capa da Valor de 6 de dezembro, escrita pelo repórter Diego Viana. O jornalista ouviu pesquisadores que interpretaram o movimento como perda de força dos sistemas de governança internacionais criados após o fim da Segunda Guerra Mundial (Organização das Nações Unidas, Fundo Monetário Internacional, União Européia e outros). Não por acaso, o que motivou a criação destes sistemas foi a crítica a um modelo de nacionalismo exacerbado. A derrocada da globalização em detrimento de um neo-nacionalismo econômico seria motivada por três fatores:
Primeiro, a ascensão de países emergentes (principalmente China) ao patamar de pólos tecnológicos deu a estes países o poder de barganhar mudanças nas regras da governança global. O risco de perder espaço provocou reações nos países estabelecidos na forma de políticas nacionalistas. Um exemplo concreto: a chinesa Huawei domina a tecnologia para fornecer de redes 5G, entretanto, países que firmarem este pacto podem esperar retaliações cambiais dos Estados Unidos.

Em segundo lugar, um sentimento de insatisfação estaria sendo gerado nos cidadãos porque as empresas se internacionalizaram mais rápido do que entidades globais puderam acompanhar, ultrapassando as autoridades de governos, fazendo pessoas sentirem-se confusas e sem poder sobre o mundo. O descompasso teria criado uma propensão ao populismo de direita, com sua mensagem nacionalista anti-imigrante e de incentivo industrial que vem varrido América Latina, EUA, Europa.
Por último, segundo a leitura da Valor, o pós-crise de 2008 seria análogo ao cenário de 1930. O período de incerteza financeira e política causaria fragmentação partidária que também privilegia políticas populistas de direita. A ideia é que a insatisfação com o mundo favorece o apreço por valores conservadores de ordem, hierarquia, dever, segurança.
Os especialistas de diversos posicionamentos no espectro ideológico ouvidos pelo Jornal Opção analisaram a tese, encontrando concordâncias e discordâncias das proposições apresentadas, além de refletir sobre uma possível radicalização do nacionalismo populista de direita na forma do fascismo. A palavra é utilizada com mais frequência que deveria nas redes sociais e tem se banalizado, mas é um conceito bem definido, com características mensuráveis.

Vilmar Rocha, professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás, foi quatro vezes deputado federal e é autor do livro “O Fascínio do Populismo”. Segundo ele, o populismo é uma estratégia para chegar e se manter no poder que um líder de esquerda ou de direita pode utilizar. “No Brasil, vemos características da direita autoritária, mas as instituições são sólidas e estão sendo respeitadas”, afirma Vilmar Rocha. “Quantas matérias não foram derrubadas na Câmara e no Judiciário? Se a onda populista se aprofundar, poderia chegar até o fascismo, mas acredito que não veremos a ruptura das instituições.”
O governo brasileiro preenche mais dois pré-requisitos da categorização fascista ao pertencer a uma extrema direita, segundo Makchwell Coimbra, doutor em história e professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Goiano. O professor, que estuda a história da extrema direita, afirma que o princípio fundador deste movimento foi a resistência aos princípios balizadores da Revolução Francesa, 1789. “Existem diversos grupos que se opuseram à forma como Revolução Francesa foi conduzida, mas a extrema direita ficou fora do processo revolucionário e foi contra os valores que podemos resumir em: liberdade, igualdade e fraternidade.”
Jair Bolsonaro figura na extrema direita

A Revolução Francesa foi pivotal na história moderna pois lançou os valores liberais, de enaltecimento do indivíduo, que hoje vemos conflitar com os nacionalismos. O discurso liberal colocou o indivíduo como o mais importante, quebrando o paradigma anterior e a ideia de pertencimento a um grupo. Segundo Makchwell Coimbra, o discurso da extrema direita de então apresentou uma resistência a este movimento por meio de exaltação do antigo regime.
Makchwell Coimbra afirma que, durante a conflagração de 1789, os movimentos de extrema direita se baseavam nos seguintes princípios: antirrepublicanismo; ligação com grupos religiosos tradicionais; valorização da corte real, em um resgate da tradição nacional. Segundo o historiador, apenas uma destas características seria suficiente para classificar o governo brasileiro como pertencente à extrema direita como é classicamente concebida, “mas curiosamente, ele apresenta todos.”
“O governo brasileiro é antirrepublicano?”, pergunta Makchwell Coimbra. “O filho do presidente falou em fechar o Congresso, em AI-5. Se vale de tradicionalismo religioso? Não com o catolicismo, mas com os neopentecostais, definitivamente. E, curiosamente, Bolsonaro tem ao seu lado até mesmo um pretenso príncipe de uma monarquia que não existe mais, Luiz Philippe de Orléans e Bragança. Então, ele fecha todas as características da extrema direita, mesmo que apenas uma fosse suficiente.”
Makchwell Coimbra faz questão de lembrar que a extrema direita não corresponde a um único grupo coeso, e que tampouco compreender suas origens significará entender o momento atual. “Mas, se não definirmos bem este conceito, acabaremos equiparando políticas antidemocráticas e antirepublicanas com posições políticas quaisquer”, afirma o historiador.
Além de pertencer a uma extrema direita populista e nacionalista, a classificação do fascismo depende também da eleição de um inimigo. Makchwell Coimbra diz: “Aqui no Brasil, o inimigo eleito foram os comunistas. Na Itália e Alemanha da década de 1930, os comunistas também eram inimigos, além de minorias étnicas como os judeus. Hoje, na Europa, parecem ser os imigrantes.”
Quando perguntado se seria um exagero comparar as condições de hoje, pós crise de 2008, com as condições que geraram o fascismo europeu que guiou à Segunda Grande Guerra, o historiador responde: “Uma grande característica é que surgem em momentos de crise a possibilidade da personificação de um salvador da pátria. Também, a definição de um grupo como bode expiatório. A demonização da política. Tudo isso é semelhante, mas cada realidade histórica tem suas características específicas.”
Sucesso do nacionalismo deriva de crítica ao exotismo ideológico
Vilmar Rocha afirma que a valorização dos valores nacionais não necessariamente leva a um coletivismo bélico. Segundo o autor, se promovida de maneira racional, pode inclusive levar à cooperação, e não à competição, entre nações. O ex-deputado federal exemplifica: “O Brasil sempre teve protagonismo na área ambiental porque temos a Amazônia, diversas matrizes energéticas limpas. Mas, ao invés de usar isso para sermos protagonistas e liderarmos a questão ecológica, brigamos com o mundo negando a importância disso. O governo faria bem em ser nacionalista também quanto ao ecossistema, ao invés de criar conflito com França, Alemanha, Noruega.”
Além de compreender a guerra cambial travada em torno de áreas de influência tecnológicas, é importante compreender as críticas feitas ao consenso liberal, dominante há 30 anos, mas que vem perdendo espaço para o nacionalismo. Jean-Marie Lambert, professor de Direito Internacional e Doutor em Ciências Políticas pela Université de Liège na Bélgica, é um dos que enxergam características problemáticas na globalização.
O autor, que previu a vitória de Donald Trump quando este ainda era encarado como um candidato piada por cientistas políticos, afirma que, do um ponto de vista eleitoral, o que move o novo sucesso do nacionalismo é a crítica a pacotes ideológicos exóticos. A queda dos sistemas de governança internacionais, que podem ser exemplificada pelo ataque desferido por Trump à Organização Mundial do Comércio no dia 11 de dezembro, são bem vistas pelos americanos, segundo Jean-Marie Lambert, pois eleitores não se identificam com tais superestruturas.

“Veja bem, não foi o Brasil que fabricou a pauta LGBT, o feminismo, as agendas identitárias”, diz o belga. “Tudo isso vem de fora e soa artificial no Brasil profundo.” Embora o tema dos costumes pareça superficial em debates políticos de países com problemas tão sérios como o Brasil, na realidade, está diretamente ligado com os valores liberais lançados na Revolução Francesa. Quando a conflagração de 1789 virou o velho continente de cabeça para baixo, enaltecendo indivíduos, a resistência às mudanças se deu na forma da valorização do da família, da herança nacional, da religião tradicional. Da mesma forma no mundo atual, que é sempre mutante pela tecnologia, globalização e informação, volta a soar apelativo o discurso de dever, disciplina, lei e ordem.
Jean-Marie Lambert é ainda mais incisivo: “As esquerdas trataram o povo com paternalismo, como se não soubessem o que é melhor para si mesmo e tivessem de importar soluções. A eleição de Bolsonaro não foi movida por uma análise econômica, que é muito racional – você não ganha uma eleição com intelecto apenas, tem de tocar o emocional também. Acredito que seu discurso tenha ressoado ao prometer um reencontro do Brasil com o Brasil. Com o Trump, a mesma coisa.”
O escritor faz uma recapitulação do consenso liberal que moveu o mundo nos últimos anos: “É cultura gestada nos meios universitários norte americanos, projetada artificialmente. Seus epítomes são a Unesco, Unicef, OMC, etc. Foi iniciada com a Carta do Atlântico – Franklin D. Roosevelt e Winston Churchill negociaram ajuda militar na Segunda Guerra pela abertura comercial entre Europa e suas colônias. Os EUA precisavam de mercado consumidor e o velho mundo tinha o monopólio deste mercado pelo pacto colonial. Hoje, o colonialismo atual não é mais bilateral, mas triangularizado e multilateralizado via organismos internacionais, que por sua vez são controlados pelo primeiro mundo”.
Jean-Marie Lambert admite que o processo talvez não seja arquitetado deliberadamente, mas que o conceito de nação como muralha que defende nossos velhos valores e culturas é intuitivo. “Acontece que, para vender 1 milhão de carros iguais, você precisa de 1 milhão de consumidores com o mesmo desejo. Os métodos do marketing também são usados para vender para vender ideias políticas. Vender um projeto único de democracia significa formatar bilhões de eleitores com as mesmas aspirações, ou seja, criar aquele estereótipo do cidadão Coca-Cola. É uma coisa que incomoda, impor isso às pessoas.”
Quando questionado se o acirramento da identidade cultural tradicional poderia criar conflitos, como os que existiram na década de 1930 e 1940, Jean-Marie Lambert afirma: “Trump não está se isolando do mundo, mas negociando em outra base. Renegociou o Tratado Norte-Americano de Livre Comércio em termos mais favoráveis para os EUA – ele é presidente dos EUA. Se isolar como na década de 30 não está no programa do nacionalismo atual. Além disso, se você acha que nacionalismo é sintoma de briga, bom, então tem de admitir que a Guerra do Golfo, Iraque, Congo, todas são criações da globalização.”