Uma das tribos indígenas mais poderosas e destemidas por outras etnias no Cerrado do continente americano, os avá-canoeiros (ãwa) resistiram ao contato com os colonizadores das regiões dos rios Tocantins e Araguaia. Mas pagaram com as próprias vidas para manterem suas tradições ancestrais. De inúmeras e gigantescas tribos, aos poucos eles foram sendo expulsos dos seus territórios com a expansão de diversas atividades econômicas, como a agropecuária, após a decadência do ouro. Guerreiros destemidos e até então senhores de todo o vale, os confrontos foram inevitáveis.  

Em Goiás, por volta dos anos 60 restaram apenas quatro membros dessa etnia. Eram um homem, duas mulheres e um menino. Vagavam sem destinos, enfrentando todos os perigos, sem a quem gritar por socorro. O líder do grupo, Matcha, a irmã dela, Nakwatcha, e Iawi. A luta pela sobrevivência foi duríssima. Tiveram que se esconder por mais de uma década em cavernas. Tornaram-se invisíveis. Mudaram costumes milenares e alimentação, passando a comer não mais das roças e do pescado, mas de morcegos, filhotes de pássaros, frutas e de castanhas. Apesar do medo, eles sabiam que precisavam manter a descendência. Foi nas grutas que nasceu Tuia, a quinta integrante do grupo, preparada para casar com Iawi. Outras crianças foram evitadas para não correrem riscos durante as fugas, caças ou o choro delas revelarem os esconderijos. Para isso, Matcha foi submetida a vários abortos. Escondiam-se durante o dia e caçavam a noite. Em uma delas, o líder foi atacado por uma onça, sangrou por toda a noite e morreu ao amanhecer.

Assim, o grupo retornou para quatro membros, sendo que o único homem era Iawi. Ele tinha entre 10 e 12 anos e havia perdido o pai e a mãe no massacre. Para assegurar o sangue avá-canoeira precisou ser protegido. Sem o líder, Matcha passou a conduzir o grupo, agora formado apenas por duas mulheres e duas crianças. Para tanto, foi necessário violar regras da própria organização tribal e social. Ela pegou em armas, virou caçadora, passou a realizar rituais para não permitir que os costumes não sucumbissem. Para eles, havia esperança, não sabiam qual era.

Nakwatcha assumiu a religiosidade, a pajelança – invocação do sobrenatural. Ficou responsável por tocar a flauta, até então instrumento proibido às mulheres. Tiveram que inverter a distribuição de tarefas, com Iawi ficando responsável pela preparação dos alimentos dos resultados das coletas e caças. A iniciação para a vida adulta e sexual dele foi conduzida por Matcha, quando se casou com Tuia, que estava entre 10 e 12 anos. Novamente, as crianças foram evitadas, estavam cercadas por perigos, que aumentavam a cada dia. Foram teimosos, resilientes e persistentes para chegarem a uma nova época de organização da sociedade brasileira. Já na transição do regime militar para a redemocratização. Em 1983, eles reapareceram, não por quererem, mas por necessidade.   

Iwai: único homem sobrevivente dos avá-canoeiros | Foto: Agência Brasil
Iwai: único homem sobrevivente dos avá-canoeiros | Foto: Agência Brasil

Naquele período, iniciava-se a construção da usina Serra da Mesa por Furnas. A construção em território da população indígena, onde circulavam grupos isolados. A iniciativa gerou impacto direto ao grupo sobrevivente. Isso porque havia sérios e irreversíveis danos socioambientais, embora a barragem tenha inundado apenas parte da terra indígena, que foi reconhecida pela Funai apenas a partir de 1996, sendo que a terra foi interditada em 1985, logo após os primeiros contatos, e demarcada em 1999. O acordo foi realizado em 1992 e elaborado originalmente por pesquisadores e indigenistas com o objetivo de compensação e proteção dos avá-canoeiros do rio Tocantins. Todo o processo foi apenas homologado em 28 de abril deste ano. Entretanto, falta o registro em cartório do título.

Devido à dificuldade de conseguirem alimentos e doentes, as primeiras iniciativas de contatos foram feitas com moradores da região. Os quatros sobreviventes encontram um jovem caçador, que os levaram para casa, lhes deram comida e depois ele fez contato com a Funai, em Goiânia. Esse grupo era composto por Matcha Ãwa-Canoeiro (a mais velha do grupo; nascida aproximadamente 1939), Nakwatxa Ãwa-Canoeiro (irmã de Matcha; nascida aproximadamente 1941) – Iawí Ãwa-Canoeiro (único homem do grupo; nascido aproximadamente 1965 – faleceu em 6 de junho de 2017); e Tuia Ãwa-Canoeiro (a mais jovem, filha de Matcha e mulher de Iawí; nascida aproximadamente em 1970).

Família avá-canoeira | Foto: arquivo/Renato Sanchez
Família avá-canoeira | Foto: arquivo/Renato Sanchez

A morte do marido ficou gravada na memória de Matcha. “Nós ficamos na caverna. O pai de Tuia estava no mato. Saiu para buscar comida. Veio onça grande e o atacou. Ele voltou para a caverna. Perdeu muito sangue. De manhã morreu. A onça veio para perto da caverna. Fomos embora para o mato. Ficamos com medo. Dormimos três noites em cima de árvores. A Tuia era pequena. Dormia amarrada nas minhas costas. Igual macaco. A onça ficava debaixo da árvore. A chuva passou e a lua ficou clara. Quando a onça saiu pela manhã fomos embora para outro lugar. Longe (sic)]”, contou para antropólogos.  

Durante o contato, Tuia era a mais arredia. Nascida e criada nas cavernas e matas, não raro a criança era amarrada nos galhos das árvores mais altas durante as caçadas. Nunca havia experimentado a convivência de outras pessoas, como de outras crianças. Para ela, o processo de socialização foi definitivamente traumático. Tornar-se mãe, após vários abortos e sacrifícios dos próprios filhos, foi um desafio ainda maior. Já assistidos pela Funai, Tuia ao engravidar e próxima de dar a luz foi levada para Goiânia, onde nasceu Trumack. Um ano depois, sem mais o temor de que haveria riscos de crianças no grupo, Niwatima chegou para aumentar o grupo. O nascimento aconteceu em moradias da Funai, em terra avá-canoeira.

Matcha em entrevista à antropóloga Eliana Granado, em 1º de junho de 96, contou como fugiram para o mato. “Minha filha e o pai dela morreram no mato. Eu tive muito medo”, relembra do massacre que testemunhou. “Minha casa era grande. Moravam muitas pessoas. Uma família grande. Com muitas redes. Os índios tocavam muito maracá de noite. Plantaram mandioca. Precisa tocar para nascer planta nova. Depois que parou a música dos maracás… Já era quase de manhã. Então chegaram muitos homens. Atiram muito. Muito chumbo no meu povo. Acertaram na cabeça e o coração parava. E índio caia. Eu chorei muito. Índio homem, mulher, menino bonito morreram tudo. Acabou (sis)”, recorda. “Percebemos naquela ocasião que o tempo emocional dos avá-canoeiros que foram capturados parou ali. É como se este trauma continuasse vivo neles,” ressaltou a antropóloga Patrícia Rodrigues. 

Nakwatcha Avá-Canoeiro morreu neste mês | Foto: Agência Brasil
Nakwatcha Avá-Canoeiro morreu neste mês | Foto: Agência Brasil

O relato da matriarca do grupo se confirma com a história do genocídio na aldeia da Mata do Café, em Campinaçu. O episódio teria ocorrido entre os meses de maio e junho de 1966, no período da Festa do Divino. Em meados da década de 50, eram poucas as tribos avá-canoeiras, o território tradicional deles não estava totalmente invadido pelo colonizador. O que lhes permitiam ainda viver em pequenas aldeias, onde plantavam suas roças e navegavam pelo rio. Segundo as informações, um fazendeiro inflamou uma revolta de outros da região, em retaliação ao suposto sequestro de sua filha, como vingança dos avá-canoeiros pelo assassinato de alguns índios. Como a guerra com essa tribo já era antiga, devido às terras, porém, agora, os invasores estavam mais fortes. Assim, decidiram pelo massacre geral dos cerca de 100 índios do local. O registro consta que os indígenas cantaram a noite inteira, em comemorações e rituais, onde todos dançaram e cantaram até quase o amanhecer. No nascer do Sol a maioria foi executada a disparos de arma de fogo. Alguns remanescentes escaparam por causa da poeira levantada ou por estarem no mato no momento do ataque.

Massacres

Antes, nos anos de 1957 e 1960, teria sido massacrada outra aldeia dos avá-canoeiros situada próxima ao Rio Praia Grande, no mesmo município. Registros informam que haviam mais duas aldeias naquela região, uma no Rio Boa Nova e outra no Córrego Três Ranchos, porém depois do massacre, os indígenas, temerosos, atravessaram o Rio Maranhão. Sumiram. Poucos sobreviveram que conseguiram fugir, se dividiram. Pequenos grupos se refugiaram no alto do rio Araguaia, médio Tocantins e Ilha do Bananal. Esse último teve que enfrentar os arquirrivais disputando o mesmo território com os karajá e javaé, que habitavam a região há séculos. Um tempo depois, moradores recordaram que equipes da Funai estiveram na região apurando sobre o genocídio. Nada foi feito por parte do Estado contra a matança.

A antropóloga Patrícia Rodrigues descreveu a situação de um grupo de dez sobreviventes que foi capturado pela violenta Frente de Atração da Funai. “Os avá-canoeiros foram transferidos compulsoriamente para a aldeia Canoanã, dos javaé, com quem disputaram um mesmo território por mais de cem anos, em um contexto de enfrentamentos e inúmeras mortes recíprocas. Embora tenham sido aprisionados por agentes do Estado, os avá-canoeiros foram recebidos por seus antigos adversários como perdedores de guerra e incorporados a uma posição subalterna de inferioridade social, sofrendo desde então severa marginalização socioeconômica, política e cultural nas aldeias javaé”, acentua.

De acordo com a pesquisadora, após quatro décadas do traumático evento da captura, os avá-canoeiros ainda residem na “aldeia dos inimigos” como cativos de guerra. A espera é por retorno a uma terra própria. “A precipitada ação estatal beneficiou unicamente o interesse dos grandes grupos econômicos que se instalaram nas terras ocupadas tradicionalmente pelos dois grupos indígenas. Apesar de todo o histórico de opressão, os avá-canoeiros têm demonstrado uma extraordinária capacidade de resiliência física e cultural”, frisou.

Titularização da terra

O indigenista Renato Sanchez, que trabalhou por anos na Funai, explicou ao Jornal Opção o processo para tornar um território de usufruto exclusivo de um povo originário. “A partir da identificação vem à delimitação. Delimitar é colocar alguns sinais, como estacas nos pontos principais”, pontua, destacando ser um trabalho geoprocessamento. Na sequência, há o estudo antropológico e de técnicos fundiários para elaboração dos projetos de demarcação do território. “Esse projeto é exclusivamente de geoprocessamento e trabalho de topografia. Esses técnicos da Funai fazem esses processos de demarcação e a Funai abre uma licitação. Existem empresas no Brasil que são especialistas na demarcação de terras tanto faz indígena ou não”, ressalta. A demarcação é feita com piquetes de bronze com um código em cima deles.

“A empresa demarcar e a Funai supervisiona e fiscaliza se o serviço está correto ou não, quando finaliza o trabalho, os técnicos da Funai fiscalizam se está dentro das normas da demarcação, paga empresa e a terra está demarcada”, aponta. Mas no caso da terra avá-canoeiro falta à homologação. “Quando homologa se pode registrar em cartório”, enfatiza. “Quando é demarcada, esse é o último ato governamental de reconhecimento que aquele território é terra indígena”, comenta. “Por que o governo Bolsonaro não reconheceu a homologação? Porque ele queria que o território virasse área para fazendeiro. E Goiás tipicamente agronegócio”, lamenta.  

Mesmo com apenas seis membros e um histórico de massacres e perseguições, os remanescentes passaram a sofrer ameaças de fazendeiros. “A Funai sofreu pressão, porque os índios estavam assustados. Os posseiros ameaçam que vão lá na aldeia acabar com os índios e matar tudo. Então, os avá-canoeiros ficaram assustados. Os indígenas que foram massacrados, quando chega alguém, eles ficam apavorados”, contou Sanchez. “Assustados, pressionaram o Ministério Público e no ano retrasado, a Polícia Federal fez uma operação surpresa lá de helicóptero. Retirou alguns [invasores], não todos. Um tanto saiu, mas outro tanto ficou”, emendou.

O episódio comentado pelo indigenista foi a Operação Tupã, que aconteceu em 14 de dezembro de 2021. Os agentes atuaram para combater os crimes ambientais e de invasão de terras públicas da União, em área pertencente à Terra Indígena Avá-Canoeiros, localizada na porção rural do município de Minaçu. Na ocasião, foram cumpridos 21 mandados judiciais, sendo sete mandados de prisão temporária e 14 mandados de busca e apreensão, sete ranchos construídos ilegalmente foram destruídos e houve o decreto de proibição de reingresso dos infratores ao local.

As três mulheres sobreviventes | Foto: Renato Sanchez
As três mulheres sobreviventes | Foto: Renato Sanchez

Após sete dias da homologação do território avá-canoeiro, Nakwatcha Avá-Canoeiro morreu de câncer aos 78 anos. Internada em um hospital de Uruaçu, ela não chegou a pisar com vida na terra, cujo seus pés correram por anos contra todos os perseguidores. Que a partir deste ato, faltando o registro do título, os descendentes desta tribo possam conviver novamente com a sua terra, plantando suas roças. Para garantir isso, que o governo federal, por meio da Funai, faça valer a Constituição Federal, assegurando os direitos de todos os povos indígenas. Atualmente, os avá-canoeiros de Goiás tem se misturado com outras etnias, embora venham retornando contatos com os parentes do ato do Araguaia. Em 21 de outubro de 2022, nasceu Numaeky, filho de Trumak Avá-Canoneiro e Tatiane Tapirapé.   

Homologação

Sanchez esclareceu que os processos para homologações dos seis territórios estavam na fase final do processo. “Ele [Lula] deu o veredito final. ‘Pronto. Essa terra é dos avá-canoeiros’. Aí ninguém pode reclamar”, acentua. Ele faz comparações com outros territórios com homologações mais antigas. “O Parque do Xingu. Ele é identificado, demarcado, homologado e registrado em cartório. Ele está 100% legal. Assim, várias terras indígenas no país. O yanomami na mesma situação. E vários municípios querem avançar sobre os territórios indígenas. Assim está acontecendo na Ilha do Bananal. Lá é um território indígena e patrimônio da União. Tem o Parque Indígena Carajá e tem o Parque do Araguaia”, elenca.

Sanchez, no entanto, denuncia que de seis e oito anos para cá tudo foi abandonado. “Os Carajás estão abandonados na miséria. O Parque está abandonado. E o que está acontecendo? Sem condições, por exemplo, de comprar remédios, os indígenas estão arrendando as terras para introdução de gado, que é o maior predador da ilha”, compadece. “Eu me lembro do professor Altair [antropólogo Altair Sales Barbosa] dizer que: ‘junto com o gado, tem o cavalo, o cachorro e a espingarda’. Ele já previa que a Ilha do Bananal não ia ser ilha mais”, sublinha, acrescentando que os rios da região estão secando.

No local, relata, há exploração de recursos naturais e culturais dos índios. “Quem são essas pessoas? As empresas de turismo. Entre as quais a agência de turismo Tocantins. A empresa infiltrou lá dentro”, revela. Por outro lado, “os índios tudo miseráveis, não têm água potável, não tem casa decente, as moradias tudo despencando, não tem remédios, tudo virando alcoólatras, sem expectativa de vida e muitos suicidando. No Carajás há o maior alto índice de suicídios”, aflige.

Guerreiros do Cerrado

Habilidosos no manuseio da madeira, os avá-canoeiros eram exímios construtores de canoas, flautas, flechas, cachimbos e outros instrumentos bélicos e para rituais religiosos. Registros históricos atribuídos ao bandeirante Bartolomeu Bueno da Silva, que ficou conhecido como o segundo Anhanguera, pois era filho do primeiro Anhanguera (Diabo Velho – apelidado por indígenas) a se embrenhar pelo sertão, dá conta de que sofreram muitos ataques desses bravos nativos da região. Presidentes da província de Vila Boa, atual Cidade de Goiás, também escreveram sobre o povo avá-canoeiro. As bandeirantes de Buena eram formadas juntamente com o seu genro, o capitão João Leite da Silva Ortiz.

Conhecidos regionalmente como “Cara Preta”, os primeiros estudiosos, pesquisadores e população acreditavam que os avá-canoeiros eram de origem cofusa, sendo uma miscigenação de indígenas com negros ou mesmo da etnia carijós (guarani). As características físicas dos avá-canoeiros são peles escuras e cabelos encarapinhados, o que sugere a origem mestiça, ou grupo negroide. Mas para a professora Dulce Pedroso os indígenas americanos são classificados entre o grande grupo mongoloide, identificados como habitantes da Ásia Central, Setentrional, Oriental e Indonésia. Ela chegou a conclusão que os avá-canoeiras possuem características biológicas mongoloides. “Olhos mongólicos, cabelos lisos e grossos. Lábios um pouco grossos, nem tanto como da raça negroide”, destaca. A pesquisadora é autora da obra “O Povo Invisível — A História dos Avá-Canoeiros nos Séculos XVIII e XIX”.