Eleitorado de direita se consolidou, apesar da vitória de Lula
13 novembro 2022 às 00h00

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A polarização promovida desde o período pré-eleitoral produziu o resultado que as campanhas demonstravam almejar: um país dividido. Duas semanas após o fim do segundo turno da eleição presidencial, analistas, políticos e estudiosos se debruçam sobre o resultado das urnas na busca pelo entendimento dos seus reflexos. A diferença de votos que deu a vitória para o Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e fez de Jair Bolsonaro (PL) o primeiro presidente a ser derrotado ao tentar uma releição, foi muito apertada. Em termos percentuais, a distância entre os candidatos foi de 1,8%, confirmando a consolidação do eleitorado de direita.
As urnas mostraram revelaram 58.206.354 eleitores que deram preferência a alguma característica do governo Bolsonaro e desejaram sua continuidade. Esse eleitorado é composto pela direita e extrema-direita, que confirmaram no voto, a existência de um movimento que pesquisadores vinham apontando antes mesmo das eleições de 2018 – já que o PT sempre venceu o segundo turno por uma vantagem em torno de 60% a 40% contra o PSDB, exceção feita em 2014, quando Dilma venceu o tucano Aécio por três pontos percentuais. Em 2018, os conservadores cresceram, levando Bolsonaro à presidência da República e agora dividindo o eleitorado, perdendo pela menor margem já registrada em um segundo turno.
Identificar o eleitorado de direita e extrema-direita que vem se consolidando tornou um exercício de estudiosos das mais diferentes correntes e se mostra ainda como uma análise desafiadora. As pesquisas eleitorais demonstraram fragilidade em apontar, quantitativa e qualitativamente, quem são esses eleitores. A votação do presidente Jair Bolsonaro e de seus aliados surpreendeu eleitores pela discrepância entre o que apontavam as pesquisas de intenções de voto na véspera e o resultado nas urnas, repetindo uma sistemática que vem ocorrendo em outros países: o desempenho da direita foi bem melhor do que mostravam as sondagens – basta lembrar de Donald Trump em 2016 e 2020, Boris Johnson no Reino Unido, e o plebiscito sobre a Constituinte no Chile. Em todas essas situações houve dificuldade em retratar intenção de conservadores mais radicalizados.

A explicação mais buscada é o que motiva o alinhamento do eleitor, antes sem uma orientação ideológica, com a direita e extrema-direita. Nesse ponto, entre as razões mais apresentadas está a pauta moral . Um estudo conduzido pelo pesquisador Alberto Carlos Almeida, autor de livros sobre o comportamento político da sociedade, como A Cabeça do Eleitor (2008), traz como uma das principais conclusões que o eleitor do atual presidente – e do apoiador da direita em geral – é multifacetado e complexo. De acordo com o estudo, esse eleitorado valoriza, de forma mais equilibrada, todos os princípios — “justiça e reciprocidade”, “cuidado com os fracos”, “respeito à autoridade”, “lealdade ao grupo” e “pureza e santidade” — do que simpatizantes de candidatos à esquerda. “O leque de sabores morais do eleitor de direita é mais amplo”, afirma o escritor.
A imagem de Bolsonaro foi construída com base no conservadorismo moral e na noção de libertador do país de uma ameaça comunista que seria representada pelo PT. Há unanimidade entre os pesquisadores em apontar que a chamada ‘pauta de costumes’ é o ingrediente que dá a “liga” para o eleitor de direita e de extrema-direita. Os temas de moralidade e sexualidade, somados a religião, ao discurso armamentista e a proximidade com as forças armadas permitiram a configuração do radicalismo direitista.
Nesse cenário, os evangélicos surgem como uma das bases bolsonaristas e de apoio à direita. O movimento religioso assumiu feições de um movimento político extremamente conservador. Como resultado, o grupo evangélico, hoje considerado um terço da população, manteve em todas as sondagens seu apoio integral à candidatura Bolsonaro, revelando-se o mais fiel seguidor e apoiador do grupo político que segue a ideologia de direita.
O historiador, professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e membro do Observatório da Extrema Direita (OED, Observatório da Extrema Direita (OED, Michel Gherman, aponta que além das pautas morais e a força dos evangélicos, houve outros fatores que resultaram esse imenso eleitorado de direita. “Na minha avaliação, esse efeito ocorre desde 2016, quando se tem o processo de criminalização da política e o afastamento concreto de setores alinhados com partidos específicos e o fortalecimento de um discurso anticorrupção que criminaliza, principalmente, a esquerda. Nesse cenário se tem um processo de construção, quase que de manual, de uma extrema-direita”, aponta.

O pesquisador ainda aponta que já nas eleições presidenciais de 2014 houve um ‘start’ para esse eleitorado que se coloca do lado mais extremo da direita. “Com o refugo que aconteceu quando não houve o reconhecimento dos resultados das urnas de 2014 (PSDB de Aécio pediu auditoria no processo eleitoral em que Dilma Rousseff foi reeleita), ocorreu o fortalecimento de perspectivas pró-ditadura. Esse movimento não foi combatido. Então passou a se ter a ideia de que qualquer coisa que fosse contrataria a perceptiva moral ou à direita, representava um inimigo”, avalia Michel Gherman. “Era uma receita pronta de um bolo de extrema-direita. Seria estranho se não surgisse esse eleitorado”, completa.
O professor titular de Literatura Comparada na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e um dos grandes intelectuais do País, o pesquisador João Cezar de Castro Rocha, em entrevista recente ao Jornal Opção, avaliou que entendendo essa nova perspectiva do eleitorado, a direita modulou o discurso para conquistá-lo e o colocar em evidência. “A grande novidade do século 21 é que a direita aprendeu a conquistar corações e mentes. Essa sedução pelo discurso, essa criação de uma utopia de sociedade ideal era, para alguém da minha geração, uma prerrogativa da esquerda. A extrema-direita conseguiu se tornar desejável. Esse discurso hoje é desejável para uma porção nada pequena da população brasileira – Jair Bolsonaro mantém 20% de eleitorado cativo, que pode chegar a 30%.”
Um pesquisa realizada pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, coordenada pela Doutora em Antropologia Izabela Kalil, ainda em 2018, apontou como a pauta de costumes influenciam no perfil do eleitor ao ponto dos simpatizantes e eleitores de Bolsonaro, apesar de compor uma diversidade de pessoas e grupos, eles se colocam na figura do “cidadão de bem”.
Segundo a pesquisa, “o ‘cidadão de bem’ passou a designar aquele que, além de ter uma conduta individual “correta” e saber se comportar nas manifestações, se distingue dos “bandidos” (corruptos) ou de quem apoia bandidos”. O estudo ainda aponta que é possível capturar os sentidos desse grupo a partir da “tríade Deus, Pátria e Família – mote defendido pelos grupos de ultradireita seculares ou religiosos.”
Comunicação com o eleitorado de direita
A mídia, tando a tradicional, quanto as do ambiente de redes sociais, tiveram também um papel significativo na formação do grande eleitorado de direita. Michel Gherman avalia que as emissoras de TV e os jornais de grande circulação abriram espaço para uma comunicação que agradava o eleitor que possui identificação com o espectro ideológico da extrema-direita. Para ele, o maior exemplo, é que a mídia estabeleceu um vínculo com Jair Bolsonaro, ainda deputado, que sempre foi de baixo clero. “Ele elogiava Hitler, fazia referência o tempo todo a perspectiva ditatoriais, mesmo assim a imprensa passou 8 anos sem chamá-lo de extrema-direita. Inclusive, na eleição de 2018, ele foi considerado um deputado conservador, sem ser considerado de extrema-direita ou fascista. A mídia normalizou Bolsonaro e a direita moderada fez o mesmo”, salienta.
Se a mídia tradicional deu espaço para Bolsonaro e permitiu a consolidação dele como um líder que a extrema-direita ansiava, as redes sociais foi o espaço usado para um posicionamento estratégico desse eleitorado. Segundo o historiador, foi na internet que esses eleitores foram se posicionando dentro da narrativa do “nós contra eles”. “Esse eleitorado é fruto de uma decisão da sociedade brasileira de normalizar o bolsonarismo. Deu certo”, diz Michel Gherman.

João Cezar aponta que há na comunicação da extrema-direita, patrocinada por Jair Bolsonaro, uma estratégia que ele chama de Midiosfera. “Há um acordo entre os bolsonaristas de só se informar naquilo a que eu chamo de “midiosfera extremista”. Ela é formada por quatro elementos internos e um externo. Os quatro internos são: 1) as correntes multitudinárias de WhatApp – e todos sabemos o impacto que elas tiveram em 2018; 2) o universo das redes sociais; 3) um circuito integrado de canais de YouTube de bolsonaristas e extremistas de direita, que produz fake news e teorias conspiracionistas 24 horas por dia; por último, aplicativos que reúnem tudo sobre Jair Bolsonaro, como a Bolsonaro TV.”
Direita adormecida e os militares
Há uma corrente de pensamento que defende que o eleitorado de direita esteve adormecido, e que os que se movem pelas pautas morais aguardavam pela ascensão de um novo líder. O pesquisador da Universidade de São Paulo (USP), colunista da Folha de S. Paulo (2012-2019) e autor dos livros Os sentidos do lulismo (2012) e O lulismo em crise (2018), André Singer, argumenta que o eleitorado brasileiro sempre teve uma preferência pela ideologia de direita, embora ela nem sempre se manifestasse na hora do voto. Segundo o professor, Bolsonaro teria sido bem-sucedido ao “reativar” esse direitismo e ao convencer o eleitor a expressá-lo na urna.

Em seu artigo, “A Reativação da Direita no Brasil” ele registrou como a presença dos militares na política influenciam e consolidam o eleitorado de direita. Segundo ele avaliou na publicação, as “eleições presidenciais vencidas por PSDB e PT, a direita saiu do foco, parte dela, inclusive, afastando-se da máquina federal em 2003 . Tal situação atrapalhou as análises, sendo que, na confusão, perdeu-se de vista, além das predisposições latentes no eleitorado, o papel dos militares. Com a volta destes à política em 2017, percebeu-se o quanto estão associados a momentos de ascensão da direita. Mas, até então, o potencial intervencionista das Forças Armadas foi esquecido na mesma sombra que dificultou ver a identificação ideológica com que à direita seguia contando. Quando Bolsonaro, cuja carreira parlamentar havia se desenvolvido em boa parte nas siglas sucessoras da antiga Arena, foi eleito presidente da República, a direita reentrou na Série A, tornando-se perceptível que uma fatia relevante do universo eleitoral ficara fora do sismógrafo. Encerrava-se, então, o ciclo iniciado em 1964, com os conservadores outra vez misturando o baralho e dando as cartas”
O pesquisa ainda indica que o fortalecimento de partidos como o Progressistas, o DEM, o PSD e o Republicanos na eleição municipal de 2020 confirma o processo de reativação do direitismo.
O presidente do PSD goiano, Vilmar Rocha, compartilha do pensamento de que à direita estava adormecida. Na opinião dele, o cenário político permitiu o ressurgimento do eleitorado de direita no momento em que os líderes progressistas “exageraram em suas pautas”, assim teria ofendido os conservadores e buscou ter voz no processo eleitoral.

“Sempre existiu um eleitorado de direita e conservador, mas ele ficou enrustido por um tempo. Essa massa de gente, agora, começou a aparecer, e assumiu sua posição”, opina o líder do PSD. “Esse é um ponto positivo, pois é melhor as pessoas assumirem suas posições políticas, explicitar seus apoios e pautas. É assim que se abre a discussões com os divergentes. Teremos que conviver com esse eleitorado de agora em diante”, completa.
O futuro da direita e a ausência de Bolsonaro
Tornou-se comum ouvir políticos das mais diferentes correntes ideológicas se questionarem se à direita será a mesma após a saída de Bolsonaro do poder. E mais, se Lula, que vai governar o Brasil, saberá ouvir a voz dos descontentes.
Os bloqueios em rodovias feito por bolsonaristas logo após o resultado do segundo turno, e as manifestações que ainda aglomeram pessoas em portas de quartéis, apesar do silêncio de Bolsonaro, servem de demonstração que a extrema-direita está sem uma liderança clara, mas não está desmobilizada.
A forma como reage os manifestantes, que não aceitam os resultados das urnas, mas também já não querem Bolsonaro no poder, e chegam a implorar por um golpe militar – ou como se tornou comum em seus cartazes: intervenção federal. Assim, Bolsonaro deverá trabalhar a partir de agora para fidelizar sua base de apoio mais ideológica e radical e também para se manter como a principal liderança de direita no Brasil.

Bolsonaro terá que concorrer com outras lideranças que já demonstram interesse eleitorado e traçam estratégias para conquistá-lo. Pensando nas eleições municipais, em 2024, a direita moderada tem projetado reagrupar esse eleitorado que se sente perdedor com Bolsonaro. A tática a ser adotada é com base na econômica liberal, sem deixar distante as pautas de costume, assim encontrando pontos de convergência para fortalecer um nome fora da polarização Lula x Bolsonaro.
Vilmar Rocha acredita que, após a derrota de Bolsonaro e a forma com que ele reagiu aos resultados das urnas, o eleitorado de direita e extrema-direita já anseia por um novo líder. “Eles querem uma nova liderança e querem uma que expresse esse sentimento do conservadorismo. O Bolsonaro teve mérito porque identificou essa faixa do eleitorado e fez uma narrativa para eles. Mas agora há um vácuo a ser preenchido.”
Já o professor Michel Gherman concorda e pontua que o Bolsonaro derrotado deixou como herança o bolsonarismo absolutamente consolidado. “O Brasi é o único lugar do mundo onde houve uma derrota da extrema-direita no voto. Vai ser desafiador para o Lula, mas o esvaziamento da extrema-direita só pode ser feita pelo próprio Lula, pois, ele possui perspicácia e pragmatismo para isso”, avalia.
Entrevista

“Esse movimento veio para ficar”
O pesquisador e sociólogo da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Leonardo Nascimento, acredita que a mídia fomentou a polarização na disputa a presidência, o que ajudou a inflamar o eleitorado de direita e extrema-direita. Em entrevista ao Jornal Opção, o professor fez uma breve análise sobre os pontos-chave do atual cenário político que deram força para esse eleitorado.
Na sua avaliação, quais os fatores que permitiram o surgimento desse imenso eleitorado alinhado a extrema-direita?
A resposta a esta pergunta envolve diversos aspectos de curto, médio e longo-prazo. Existem raízes profundas que vem do processo de constituição do Brasil, de suas elites e de uma estrutura cruel de desigualdade, passando pela ditadura militar e ausência de uma “resolução” histórica sobre o seu real significado em termos de monstruosidade e perseguição. Além disso, desapareceu, no contexto mundial, qualquer perspectiva de superação utópica das condições impostas pelo capitalismo contemporâneo.
Os governos do PT, por outro lado, causaram transformações econômicas e nos costumes e, com isso, afetaram um conjunto amplo e multifacetado de camadas médias, religiosas e sub-letradas de brasileiros que têm em comum o conservadorismo nos costumes, isto é: o racismo, o machismo, a discriminação de gênero, de classe e a regional.
Outro fato relevante de curto/médio prazo diz respeito ao papel das redes sociais em disseminar a polarização, informações falsas e teoria da conspiração. Isso foi algo gestado lentamente com apoio de setores conservadores da elite e de agentes políticos interessados tão-somente em ver o PT fora do poder.
As eleições mostraram a ascensão de figuras de extrema-direita e fundamentalistas religiosos, como Damares Alves e Hamilton Mourão. O senhor acha que houve uma consolidação na mudança de perfil do eleitorado a partir do movimento das eleições de 2018, quando o bolsonarismo eclodiu?
Não seria capaz de responder que houve uma consolidação no perfil do eleitorado porque eu não sou cientista político. Acredito que a eleição destes atores se conecta com o que, de fato, constitui uma parte da nossa sociedade. Há uma grande massa de brasileiros que são (ou se tornaram) conservadores, religiosos, avesso à crítica social e, mais importante, profundamente sub-letrados e ignorantes. Durante muito tempo este eleitorado esteve fora.
É possível prever que esse eleitorado se desorganize no próximo ciclo eleitoral?
Não, esse movimento veio para ficar e terá que ser “elaborado” – como dizem os psicanalistas – historicamente por todos nós. Sobretudo porque por detrás deste conservadorismo religioso obscurantista há muita violência e agressividade.
De que forma o senhor analisa o papel da comunicação na construção desse eleitorado da extrema-direita?
As redes sociais, todas elas, através do que denominamos de ecossistema multiplataforma, fomentou a polarização, a disseminação de fake news e o discurso de ódio durante quatro anos. Na pandemia de covid nós vimos diversos experimentos que visavam desacreditar a pandemia e as vacinas. Posteriormente, a realidade social e política foi sendo distorcida de tal maneira no mundo social que muitos brasileiros abandonaram os meios de comunicação tradicionais em favor de notícias que chegam sem qualquer tipo de controle e que sempre tendem a reforçar as crenças delas. Trata-se de uma poderosa máquina de controle do pensamento que precisa ser repensada e criticada pelas forças políticas.