Goiânia debaixo d’água (II): drenagem ruim é mais grave que mudanças climáticas

21 janeiro 2024 às 00h33

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Ao longo dos próximos anos, as mudanças climáticas talvez aumentem de 10% a 15% a intensidade de chuvas em Goiânia. Como tem acontecido nos últimos tempos com a desestabilização do regime pluviométrico, o volume tende a ser despejado de forma cada vez mais concentrada, em grandes pancadas, embora breves. Mas o fenômeno global, agravado nesta temporada por outro, o El Niño, passa longe de ser o problema principal ambiental da cidade: o que pode agravar o quadro vivido pela população são as próprias políticas públicas – no caso, a falta delas.
“Nosso problema não são as mudanças climáticas; não é o futuro, é o passado. Muito pior do que as mudanças climáticas é a mudança do uso do solo”, resume o professor Klebber Formiga, da Escola de Engenharia Civil e Ambiental (EECA) da Universidade Federal de Goiás (UFG). O que significa “uso do solo”? Em termos mais leigos e mais diretamente ligado em relação à questão hídrica das cidades, a expressão se refere à forma com que é gerida, nas leis e na prática, o processo de coleta, infiltração e escoamento das águas pluviais diante do terreno que está ocupado.
Esse processo tem um nome específico: drenagem urbana, que segue nesta edição sendo tema de material especial do Jornal Opção, em série aberta na semana passada. É esse o assunto que tem de ser tratado com extrema prioridade para a qualidade de vida nas cidades, portanto. Quanto mais bem planejada se apresenta a drenagem – o que pode ser feito obtido por várias técnicas, as quais vão muito além de bocas de lobo e galerias –, melhor será o resultado e menos dependentes os cidadãos ficarão do humor dos temporais. Eis a questão: é preciso colocá-la no alto da lista de tarefas a serem implementadas pelas gestões.
Semana passada, depois de mais uma sequência de dias de tempestades intensas e consequente caos no Rio de Janeiro, o portal satírico Sensacionalista soltou a manchete: “Chuva no Rio pega as autoridades de surpresa pela milésima vez”. E no corpo do texto: “É um evento raro, que acontece com frequência todos os anos, normalmente nos mesmos locais (…) No pacote de providências de Cláudio Castro [governador] está trocar o nome da cidade de Rio de Janeiro para Deserto de Janeiro para ver se melhora.” Uma galhofa carioca, no melhor estilo, mas que se aplica a praticamente todo o País.
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Do texto jocoso, característico das postagens do site, emerge uma verdade: o Brasil nunca se caracterizou por priorizar a prevenção de catástrofes e desastres naturais. Natural que governantes nas diversas esferas raramente se atenham com fervor a trabalhar políticas públicas nesse sentido. Tanto que um especialista no assunto, como Klebber Formiga, não consegue destacar nenhuma cidade brasileira que tenha um sistema de drenagem considerado acima da média. “Pelo contrário, 40% dos municípios goianos não têm nada de drenagem, nem uma boca de lobo sequer”, acrescenta.

O docente tornou-se um personagem central na discussão do tema ao assumir a coordenação do Plano Diretor de Drenagem Urbana de Goiânia (PDDU-GYN), à frente de uma equipe de aproximadamente 60 pesquisadores da UFG diretamente envolvidos e divididos em quatro equipes: modelagem hidrológica e hidráulica; meio ambiente; levantamento de campo e processamento de dados; e comunicação e mobilização social. No trabalho de campo, há muito o que fazer, mas em 4 das 12 bacias – Cascavel, Botafogo, Taquaral e Macambira – as tarefas já estão bem avançadas: .
“Infelizmente, no Brasil se acostumou a trabalhar para sanar problemas de drenagem depois que a situação já se agravou bastante. Em Goiânia, estamos buscando as soluções mais adequadas, que vamos apresentar e recomendar no relatório à Prefeitura”, diz o professor.
No trabalho de remontagem do sistema que busca conduzir, ele sente o grande contraste com o que há em Amsterdã, onde viveu em meados da década passada, enquanto cursava um pós-doutorado. Em sua estação de trabalho no Centro de Estudos em Hidrologia e Geotecnia Ambiental (Cehige) na EECA, ele mostra à reportagem a diferença – melhor seria dizer discrepância – da engenharia de calçadas, ruas e avenidas da cidade holandesa em relação ao padrão brasileiro. Na tela, fica difícil reconhecer uma rua onde parece ser uma estrada no meio de um parque. Os piscinões – essenciais no processo de amortecimento antes de a água cair no manancial e algo que ele acredita que Goiânia deva implantar como medida de contenção – se integram totalmente à paisagem, podendo mesmo ser considerados pontos turísticos.
Em Amsterdã, veículos individuais automotores não têm qualquer hegemonia, o que também implica diretamente no processo de drenagem: sem tanta pavimentação, dando espaço mais para calçadas e ciclovias com piso mais adequado, reduz-se em muito a impermeabilização do solo.
Esta é a questão em Goiânia: a responsabilização pela má drenagem urbana, que vai acarretar grandes problemas “lá na frente” – entenda-se regiões de fundo de vale, vias marginais, áreas de alagamento etc. –, começa literalmente dentro de casa. “Toda pessoa deveria se sentir responsável pela água que deixa escorrer para a rua, em vez de se infiltrar no terreno da própria residência”, afirma Formiga. É simples entender: se todo o lote está ocupado com algum tipo de construção – mesmo uma área coberta com cerâmica –, a penetração da água da chuva será mínima. Ela vai entrar por calhas e canos e vai parar na rua, aumentando o volume pluvial e, com isso, a força e a velocidade da enxurrada. “Agora, imagine você todas as residências de um bairro com esse alto índice de impermeabilização dos lotes jogando para fora ao mesmo tempo o que cai em uma chuva torrencial”, exemplifica o professor.
Novamente navegando no Google Earth em seu monitor, ele mostra uma visão aérea de bairros de Goiânia. A cena impressiona: na região central da cidade, ele aponta, praticamente inexistem áreas não impermeabilizadas na grande maioria dos lotes. Isso impacta fortemente na redução do índice de drenagem e faz entender melhor como em pouco tempo uma grande extensão de uma avenida pode estar completamente alagada, como ocorre frequentemente na Rua 87, no Setor Sul, local onde recentemente um cidadão mais irreverente tirou o jet ski da garagem para pilotá-lo na via.

A situação não melhora com a forma com que tem sido feita a ocupação em novos bairros. Nos estudos do PDDU-GYN, há grande preocupação com a concentração de loteamentos e outros empreendimentos imobiliários na região da bacia do Cascavel, por exemplo, que tem impacto bastante crítico na parte central da cidade – justamente a mais baixa. “É preciso ter mais rigor na avaliação dos novos parcelamentos, para que não haja uma impermeabilização que piore ainda mais o quadro”, explica o professor.
Ele deixa o recado: “Drenagem é um serviço de saneamento, assim como a água e o esgoto. Faz parte da classe dos serviços que as pessoas só veem quando falha, como a coleta de lixo, por exemplo. É preciso entender dessa forma”, afirma. Ele critica o fato de que todas as pessoas acabam por pagar injustamente o mesmo valor. “Como a água é gerada na própria casa, seria necessário beneficiar quem tem mecanismos para fazê-la infiltrar e compensar o custo com aquele que usa mais o sistema de drenagem, impermeabilizando toda sua área”, raciocina.
Outro problema na drenagem urbana que tem sido avaliado pela equipe é o sistema de galerias, que ou é antigo e está ultrapassado ou é mais recente, mas muitas vezes mal calculado. O mal planejamento também cobra sua conta: nas décadas de 70 e 80, muitos loteamentos pegaram totalmente o que seria a área de preservação permanente às margens dos cursos d’água. “O limite do lote é a margem do córrego”, diz o coordenador do PDDU-GYN, mostrando em sua tela trechos do leito do Córrego Cascavel.
Mas qual seria a solução? “Em Goiânia, como um todo, a tendência é tentar reduzir já nas casas com poços de infiltração e, quando a água chegar ao córrego, reduzir a vazão com piscinões”. De antemão, já se sabe que o PDDU-GYN vai bater de frente com as diretrizes do Plano Diretor de Goiânia sancionado em 2022. Curiosamente, os dois documentos têm o prefeito Rogério Cruz (Republicanos) como protagonista, de alguma forma.
“Precisamos ser mais restritivos ainda em relação ao aumento de vazão”, alerta o pesquisador, de olho no que pode ocorrer com a possibilidade aberta pelo Plano Diretor em relação a novos eixos de desenvolvimento em Goiânia. O professor é bem claro em sua exposição: é preciso reduzir ao máximo a água que chega aos córregos da cidade para evitar transtornos como alagamentos e transbordamentos e, por causa deles, até a perda de vidas. “Em boa parte de Goiânia, como nas regiões mais críticas, como a bacia do Cascavel, a porcentagem de escoamento de chuva que chega ao curso d’água é de 0.9 [90% ou mais]. Não podemos ter mais regiões na cidade que aumentem seu próprio índice; pelo contrário, temos de buscar diminuir onde temos essa porcentagem alta”, esclarece.
Como Klebber Formiga ressalta, Goiânia não é mais nem menos do que a grande maioria das grandes cidades brasileiras em termos de drenagem. Nesse sentido, o PDDU-GYN será um instrumento valioso para colocar a capital à frente de outras que enfrentam, cada vez mais, consequências dramáticas de uma ocupação desorganizada. “O que será do plano de drenagem urbana vai ser também o resultado da briga política que vai envolver poder público e sociedade”, sentencia o coordenador do trabalho. E como está a disposição dos políticos para lidar com isso? É o tema que vai encerrar a série de reportagens especiais Goiânia Debaixo d’Água, na próxima edição do Jornal Opção.