Quarta-feira, 27 de dezembro. Desaba mais um temporal em Goiânia. A Rua 87, caso crônico de alagamentos no Setor Sul, desta vez vira palco de um evento bizarro dentro do evento extremo: um homem aproveita a espessa camada de água sobre o asfalto para experimentar seu jet ski onde carros e motos estavam impedidos de transitar.

Domingo, 7 de janeiro. Outra tempestade, mais forte ainda, detona a capital, especialmente da zona noroeste à sul. A bacia do Ribeirão Anicuns recebe uma quantidade absurda de água em pouquíssimo tempo. O resultado do acúmulo se escancara na parte mais baixa, na região de Campinas. Ali, mais precisamente na Vila São Luiz, outro flagrante insólito: um homem com água pela cintura atravessa uma via, com placa indicativa de “pare” e tudo, para resgatar um cavalo ilhado.

É sintomático que nos refiramos cada vez mais às precipitações pluviométricas com os termos “temporal” e “tempestade” e cada vez menos com expressões como “está chuviscando”, “invernou a semana inteira”, “chuva de molhar bobo”. Para quem viveu a vida na região do Cerrado e tem um pouco mais de décadas nas costas, essas eram falas populares na estação chuvosa, que costumava ter uma regularidade de outubro a abril, quando então se iniciava o ciclo da estiagem.

As palavras do fim do parágrafo anterior no pretérito imperfeito não são bom sinal. É um tempo verbal que geralmente descreve algo que era presente e contínuo no passado e isso não deveria se aplicar a assuntos hidrogeológicos. Hoje, não é raro encontrar pessoas saudosas se lembrando de quando eram mais jovens e “chuviscava sempre”, “invernava a semana toda” e “caía uma chuva de molhar bobo”. Somente a frequência dessas frases sobre o assunto, o aumento do uso de alguns termos e a redução de outros no decorrer das décadas, já seria uma maneira eficiente de compreender o rumo que a questão ambiental está tomando e, mais, de se estarrecer com isso.

Os eventos extremos estão cada vez mais comuns e intensos, apresentando a todos aquilo que durante a recente pandemia se acostumou a chamar de “novo normal”. Ou seja, o que está sendo vivenciado por essa geração não se trata de uma “crise”. Para usar uma metáfora adequada ao tema, não é uma nuvem passageira.

Em relação aos acontecimentos causados pela desestabilização do clima global, Goiânia não é uma ilha – o que, se fosse, ironicamente, seria ainda pior, dada a elevação das águas do planeta e suas consequências para populações inteiras no meio ou à beira de mares e oceanos. Em 2009, na COP 15, em Copenhague, Ian Fry, representante de Tuvalu – um arquipélago na Oceania cujo ponto mais alto é de 5 metros acima do nível do mar – implorou com lágrimas nos olhos que o mundo assumisse um compromisso quanto à redução de suas emissões. Seu país deve ser o primeiro do planeta a sumir do mapa, engolido pelas águas do Oceano Índico.

No meio do Planalto Central, os goianienses parecem estar livre da sanha de Netuno, mas o efeito do aquecimento global lembra mais Thanos: promete afetar todas as partes da Terra, cada uma de uma forma. Cada cidade tem de se prevenir, adaptando sua estrutura aos tipos de ocorrências de que tal população pode ser vítima.

O jet ski performando na avenida e o cavalo praticamente boiando em um bairro mostram as chuvas e suas consequências são um dos focos essenciais de prevenção a catástrofes, na metrópole em que se transformou Goiânia. Nesse sentido, em meio a tantas críticas que sua gestão tem recebido, o prefeito Rogério Cruz (Republicanos) tem a chance de deixar importantíssimo legado para a capital que administra: um inédito Plano Diretor de Drenagem Urbana (PDDU), que está sendo elaborado em convênio com a Universidade Federal de Goiás (UFG).

É o que aposta o secretário-executivo da Secretaria Municipal de Infraestrutura Urbana (Seinfra), Alexandre Garcês de Araújo. “O projeto que está sendo pensado vai dar a Goiânia um plano diretor de drenagem completo, um dos melhores do Brasil”, garante. É uma afirmativa que dá esperança de dias melhores para os cidadãos, mas há um trajeto longo, em que o técnico se mistura ao político, até que o que é projeto vire concreto.

Alexandre Garcês de Araújo, secretário-executivo da Seinfra: “Vamos ter um dos melhores planos diretores de drenagem urbana, senão o melhor” | Foto: Divulgação / Secom

Sua importância como política pública diante do quadro de mudanças climáticas faz agora com que o PDDU e a drenagem urbana na capital sejam objeto de uma série de reportagens especiais que o Jornal Opção publica a partir desta semana, com o objetivo de jogar luz sobre um assunto que literalmente não costuma se mostrar, a não ser quando já não se pode fazer muita coisa.

Em uma linguagem simplificada, drenagem urbana é o sistema que coleta as águas da chuva e previne alagamentos e transbordamentos no perímetro de uma cidade. Pode vir à cabeça imediatamente o mecanismo composto por bocas de lobo e galerias pluviais, mas isso constitui apenas os métodos mais tradicionais. “Costuma-se entender drenagem por esses equipamentos, mas também se faz drenagem urbana por infiltração, retenção e reutilização”, diz o executivo da Seinfra, que sabe do que fala: Garcês é graduado em Engenharia e professor do curso na Universidade Estadual de Goiás (UEG), com mestrado e doutorado relacionados à questão da drenagem urbana.

No geral, os gestores de Goiânia nunca colocaram a drenagem urbana como prioridade. Prova disso é que, a despeito do crescimento vertiginoso da cidade e de sua malha urbana, apenas em 2005, com o projeto Macambira-Anicuns, houve um plano diretor de drenagem exigido pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) – financiador da obra –, mas que foi parcial (algo em torno de 60%), para a área abrangida direta ou indiretamente pela execução do parque linear. “É bem verdade que não é uma área pequena e é bastante importante, mas agora é a primeira vez que se executa uma obra pela cidade inteira”.

Assinado em fevereiro do ano passado, o protocolo de intenções da Prefeitura de Goiânia com a UFG prevê um “pente fino” em toda a cidade, de modo com que o diagnóstico possa nortear todas as medidas que o poder público deva adotar. Uma equipe de mais de 60 pessoas, coordenada pelo professor Klebber Formiga, da Escola de Engenharia Civil e Ambiental (EECA), está executando os trabalhos, que contam, por exemplo, com minuciosidades como a tomada de medidas de cada boca de lobo da cidade.

O valor da verba para o projeto é de R$ 6,2 milhões e o relatório final está previsto para 2025, portanto depois das eleições municipais e possivelmente em uma nova gestão, caso Rogério Cruz não seja reconduzido ao Paço. Haveria o risco de uma decisão do eventual gestor eleito fazer o projeto ser abandonado? Negativo, garante Alexandre Garcês. “O compromisso desta gestão é fazer o repasse integral das parcelas até o fim deste ano. Dessa maneira, o diagnóstico pela UFG está garantido e será concluído”, afirma.

No entanto, resolve-se até aí só parte do desafio: é que será preciso que os eleitos em outubro deste ano – prefeito e vereadores – coloquem em prática as diretrizes do PDDU, o que não é algo que vai muito além da questão técnica que estará então detalhada no plano. Para dar exemplo de um dos prováveis dilemas: o PDDU certamente apontará incongruências do uso do solo em relação ao zoneamento que foi estabelecido pelo Plano Diretor “geral” sancionado em 2022 pelo mesmo Rogério Cruz. “Na verdade, o certo seria fazer primeiro os planos diretores de cada área – como drenagem, mobilidade urbana, saúde etc. – para que todas essas diretrizes fossem então assimiladas pelo Plano Diretor macro da cidade. Mas não é assim que ocorre”, diz Garcês.

Mais do que acatar as soluções que recomendará o PDDU, a próxima administração precisará destinar recursos para que o plano seja de fato efetivado. Isso implica a destinação de recursos que, eventualmente, iriam para obras talvez menos urgentes, mas mais agradáveis do ponto de vista eleitoral: afinal, não se vê prefeitos inaugurando sistemas de drenagem. Numa região afetada diretamente pelas águas da chuva, o eleitor considerará mais memorável uma nova escola ou um posto de saúde do que algo que ele nem mesmo tem contato visual.

A arquiteta Maria Ester de Souza, também professora da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO), sempre bastante envolvida com a discussão dos espaços da cidade – tema de seu doutorado em Geografia pela UFG, resume: “É o prefeito quem precisa decidir, de acordo com a responsabilidade que o cargo lhe confere, que medidas deve priorizar. E eu aconselharia que ele trabalhasse urgentemente em adaptar a cidade para os eventos extremos”, diz.

Maria Ester de Souza , arquiteta e professora da PUC-GO: “É preciso que o poder público enfrente de verdade o problema da drenagem em Goiânia” | Foto: Fernando Leite / Jornal Opção

Maria Ester considera que, relativamente, trabalhar na melhoria da drenagem urbana de Goiânia não seria algo tão complexo. “Em situações de chuvas de grandíssimas proporções, como as que tivemos recentemente, as águas dos córregos sobem rápido, mas em poucas horas voltam ao leito. Não é como São Paulo, uma metrópole que tem dois grandes rios (Tietê e Pinheiros) em sua área central.”

Em 2021, a Defesa Civil identificou 99 pontos de alagamento em Goiânia. Alexandre Garcês diz que houve intervenção da Prefeitura em praticamente todos esses locais desde então, com gastos que ficaram em torno de R$ 200 milhões. Ainda assim, as precipitações de grande volume são um desafio. “Não há sistema de drenagem capaz de conter uma chuva como a de domingo (7/1). É um episódio raríssimo, que a engenharia consegue estimar em período de recorrência, por exemplo, para uma a cada 50 anos”, exemplifica o secretário-executivo da Seinfra.

O desafio que se impõe é que a própria engenharia está sendo surpreendida com os eventos extremos. Ou seja, as previsões valeriam para o cenário que até então se conhecia. Maria Ester delineia a questão: “Veja a combinação de chuva e vento que Goiânia tem sofrido ultimamente. É algo que não existia, chuvas tão intensas com rajadas tão fortes. A gente não tem dimensão do que virá como novidade”, explica. “E então não há só o desafio da água, mas o vento também se torna um problema. E aí é preciso recalcular a execução de obras e equipamentos, como outdoors, totens, coberturas de posto de combustíveis. Todos os cálculos mudam, para que haja uma margem de segurança.”

E não só desse excesso de água vive o goianiense, lembra a professora da PUC-GO. “É preciso lembrar que temos uma longa estiagem também e problemas de abastecimento que tendem a se agravar com as mudanças climáticas. Qual o plano para ‘segurar’ essa água para minimizar o período crítico?”, questiona.

Diante dos sinais que deixam cada vez mais evidente de que não há mais como esperar para que a cidade se adapte a esse “novo normal” climático, entra uma discussão seríssima: até que ponto o próximo prefeito pode se abster de enfrentar a questão da drenagem urbana em uma perspectiva abrangente e não apenas em obras paliativas?

Na sequência deste material especial sobre a drenagem urbana de Goiânia e os desafios trazidos pelas mudanças climáticas, a reportagem vai detalhar o trabalho que tem sido feito pela UFG para o PDDU e os pontos chave que precisam ser enfrentados para proteger toda a população, especialmente os mais vulneráveis, diante dos eventos extremos.