Há quase uma década, pesquisadores da Universidade Federal de Goiás (UFG) e da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO) se embrenharam pela mata da Serra das Areias. Fizeram diversos estudos da fauna, flora e solo, que resultaram em cinco volumes de um plano de manejo para o local, que legalmente era considerado como parque. Dada a característica do ambiente, já com bastante ocupação de propriedades, a sugestão foi torná-la área de proteção ambiental (APA). Acolhida pela Prefeitura de Aparecida de Goiânia, na época sob o comando do ex-prefeito Maguito Vilela (MDB), que morreu em janeiro de 2021, foi elaborado um projeto que se chamou de Complexo Turístico Serra das Areias, que também já foi descartado.

A nova nomenclatura de APA foi determinada pela Lei Municipal nº 3.275, de 13 de julho de 2015. Proposta pelo Executivo, com base nos estudos técnicos, e aprovada pela Câmara Municipal. Na legislação ficou estabelecida a área da serra em 39,65 km² – menor do que os 50 km² considerados pela lei anterior – e delimitada a geografia do local. Entretanto, uma cláusula do texto colocou todo o trabalho em cheque. O artigo 10 determinou um prazo de 180 dias, contados a partir da publicação da lei, que o chefe do Poder Executivo por decreto deveria regularizar o zoneamento da APA e definir os usos permitidos e restritos feitos pelo Plano de Manejo da unidade de conservação da Serra das Areias. Logo retornaremos a este assunto.

Foi quase um ano de discussões e chegamos a uma minuta do decreto. Daí veio às eleições, e não foi publicado

Geólogo Sílvio Mattos

Com influência em Brasília, o então prefeito conseguiu a liberação de R$ 5,85 milhões de recursos do Ministério do Turismo para a construção do complexo turístico. Esse valor foi liberado em 3 de novembro de 2015. Como parte da burocracia, o dinheiro seria repassado por parcelas. Até 2016, de acordo com dados do Tribunal de Contas da União (TCU), foram liberadas sete parcelas, que totalizaram R$ 916 mil. Essas primeiras verbas foram utilizadas para a instalação de placas no local informando se tratar de área de proteção.  

Placas instaladas no local são vandalizadas e não contam com manutenção | Foto: divulgação

Em 2021, o TCU identificou uma irregularidade no edital de Concorrência Pública (nº 4/2010), cuja empresa Albenge Engenharia Indústria e Comércio Ltda foi a vencedora para construir o Complexo Turístico da Serra das Areias. Na medida cautelar, os ministros permitiram que a prefeitura realizasse uma nova minuta chamando empresas de engenharia para a obra. Em consulta à Controladoria-Geral da União (CGU) foi possível identificar que, após isso, a gestão realizou outra licitação. Todavia, reformulou toda a proposta, alocando os recursos para construção do Anfiteatro Municipal Cantor Leandro. Para a CGU, a administração justificou que a construção teria sofrido mudança de endereço, ou seja, segundo a prefeitura, o prédio seria construído na Serra das Areias e foi transferido para a região central do município, não é possível saber se há fundamento nisso. A vigência desse contrato foi de 29 de outubro de 2008 a 31 de dezembro de 2021.

Retornemos à cláusula da lei complementar, estabelecida na legislação nº 3.275/2015. Depois da aprovação do projeto pelos vereadores, o ex-prefeito Maguito Vilela determinou que a minuta para o decreto ficasse a cargo da Mattos Assessoria, do consultor ambiental e geólogo Sílvio Mattos, que coordenou a equipe de estudo para o plano de manejo da serra.  Ao Jornal Opção, ele recorda que, depois da aprovação do projeto, se passaram 180 dias, meses e anos, e nada aconteceu. Trocou-se de prefeito, sendo eleito e assumindo o cargo o então vereador Gustavo Mendanha (naquela época no MDB), mais anos se passaram e o assunto caiu no esquecimento.

Eu lembro desse projeto, mas era ruim. Tinha até um quadrilhódromo [praça para realização de eventos culturais]

Arquiteta e urbanista Maria Ester

Até que em 2021, Sílvio conta que foi procurado, se reuniu com o prefeito e com o secretário da Fazenda, André Rosa. “Foi quase um ano de discussões e chegamos a uma minuta do decreto. Daí veio às eleições, e não foi publicado”, relembra. Segundo ele, chegaram-se à conclusão que seria melhor a construção de um parque, que fosse intermediário entre a unidade integral de conservação com a APA, usaram como modelo o parque Macambira/Anicuns. Assim, era deixado de lado o projeto de complexo turístico. “Então seria um parque urbano-ambiental que admitiria equipamentos públicos, área de lazer, pista de caminhada e outros. A função era de amenizar o clima da região urbana, manter certa permeabilidade para infiltração de água. Mas tudo de usufruto da população, na linha do lazer e do esporte, que é um dos problemas muito sério na região Metropolitana de Goiânia”, pontua. 

Projeto de parque também foi sugerido pelo Ministério Público | Foto: divulgação/MP-GO

“Temos uma carência grande destes tipos de equipamentos. Temos perto o ‘Banana Menina’, o ‘Dream Park’, e ao norte, em Teresópolis, a ‘Fazenda Santa Branca’, mas não tem nada público, é tudo privado. A ideia era que teríamos um parque urbano-ambiental público nos moldes de muitos parques que existem no mundo todo. Em Nova York tem estes parques, Londres tem estes parques e na Europa está cheia destes parques. São parques que admitem o usufruto da população. Isso já ficou previsto no decreto”, pontua. Mas, de acordo com o geólogo, algumas desapropriações terão que ser feitas e, para tanto, a busca de financiamentos até com bancos internacionais.

Tardiamente, e já com olhos na disputa ao governo de Goiás, em abril de 2021, Gustavo Mendanha, acompanhado dos secretários André Rosa (Fazenda) e Felipe Cortez (Relações Institucionais), bateu na porta do secretário Nacional de Infraestrutura Turística, Vicentinho Alves. Na pauta, o pedido de novos recursos destinados a APA Serra das Areias e no pacote as construções do Centro Cultural Quilombola e do Centro de Artesanato. A intenção do político era reapresentar o projeto durante a comemoração dos 100 anos do município, o que não ocorreu.

Flagrante de constantes crimes ambientais na Serra da Areia, em Aparecida de Goiânia | Foto: Juliano Camargo
Flagrante de constantes crimes ambientais na Serra das Areias, em Aparecida de Goiânia | Foto: Juliano Camargo

O secretário do Meio Ambiente de Aparecida de Goiânia (Semma), Cláudio da Unifan, minimiza a situação de abandono da reserva ambiental. “Neste momento, nós temos aí, a legislação federal e a municipal que a gente consegue cobrar e fiscalizar. A administração pública, hoje, tem a obrigação, para não ocorrer em omissão, no caso de degradação, sem a devida autorização, é fazer o seguinte: ‘vai lá fiscaliza’. Mas hoje, por exemplo, se o proprietário quiser fazer qualquer coisa na serra, como pedir para tirar o uso do solo, que é o primeiro passo para se fazer algo no município, no sistema aparece que não pode ser feito nada lá”, exemplifica.  

Tudo aponta que o tal Complexo Turístico da Serra das Areias se tornou uma vitrine diante dos assuntos urgentes sobre questões mundiais relacionadas às mudanças climáticas e ao meio ambiente, como algo sensível para se conseguir verbas junto ao governo federal, mas nada dentro de uma política de conservação da reserva ambiental. A arquiteta e urbanista Maria Ester chegou a trabalhar na Semma neste período. “Eu lembro desse projeto, mas era ruim. Tinha até um quadrilhódromo [praça para realização de eventos culturais]”, recorda. “Penso que o projeto não caminhou pela inconsistência no programa e seria muito caro de fazer”, emenda.

Patrimônio ambiental   

Com cerca de 50 km² de extensão e ocupando quase 20% do território de Aparecida de Goiânia, parte de Hidrolândia e Aragoiânia, a Serra das Areias é ocupada por propriedades privadas e aproximadamente 40 bairros estão em mais de 3 km da APA. Parece ser pouco, mas, além disso, o local possui intensa movimentação de visitantes a pé, de carro, de motocicleta e de bicicleta diariamente e com maior fluxo aos finais de semana. Tudo sem controle ou fiscalização, apesar das autoridades terem conhecimento disso. Dono de terra dentro da zona de proteção ambiental, Edmar Kavitera, relata que sofre até ameaças de quem invade a sua propriedade, cortando as cercas de proteção e arrancando placas. Outros problemas estão relacionados com as práticas de motocross na região, esses veículos em contato com o solo criam trilhas que formam erosões com as chuvas. 

O lugar é um dos poucos ambientes dentro de uma zona urbana, com a dimensão de uma região Metropolitana como de Goiânia. Lá se encontram cachoeiras e represas, em certa parte, com nenhuma restrição regida do Poder Público que impeça acessos descontrolados de pessoas. Talvez, por isso, a área é vista como sendo pública, mas há um grande engano quanto a isso. Para se ter ideia, mais de 97% de toda a zona é privada, dividida entre aproximadamente 150 proprietários, o que sobra, menos de 3% pertence ao município de Aparecida de Goiânia. Porém, como terra sem lei, embora a entrada no local seja considerada crime de invasão de propriedade particular, muitos frequentadores acabam se tornando ‘os foras da lei’ ao desmatarem ou colocarem fogo na mata. Apesar da destruição, a fauna ainda tenta resistir. Na unidade de conservação ainda são encontrados animais silvestres do Cerrado ameaçados de extinção.

Reserva ambiental é um patrimônio rico em recursos hídricos; imagem da Cachoeira Três Marias | Foto: divulgação

Pela sua importância ambiental, sendo local de recarga de lençóis freáticos e aquíferos, e de abastecimento de água para quase metade da população do município, ao longo dos últimos anos, a serra passou por algumas intervenções políticas. Uma delas foi a transformação do local em parque. Mas, qual foi o problema? É que os parques não admitem a ocupação demográfica, sendo, portanto caracterizada como de áreas públicas. No entanto, a região já contava com diversas propriedades. Neste caso, precisaria ser feita a desapropriação e indenização para todos. De acordo com o ex-secretário do Meio Ambiental de Aparecida de Goiânia, Fábio Camargo, os valores chegam a bilhões de reais. “O município não tinha e nem tem estes valores para indenizar os donos”, salientou ao Jornal Opção.

Foi na tentativa de se resolver o conflito, que o ex-prefeito Maguito Vilela a enquadrou como APA. Isto é, passou a ser uma unidade de conservação para uso sustentável e destinada à preservação dos recursos ambientais como a fauna, flora, solo e recursos hídricos. Antes, porém, foi desenvolvido o Plano de Manejo pela equipe do geólogo Sílvio Mattos, com diagnósticos dos meios físicos, bióticos, socioeconômicos e zoneamento rural e urbano. A elaboração do plano foi uma determinação judicial.

Reserva ambiental é cheia de cachoeiras que atraem muitos visitantes | Foto: divulgação
Reserva ambiental é cheia de cachoeiras que atraem muitos visitantes; imagem cachoeira do Guará | Foto: divulgação

O estudo delimitou a Serra das Areias em três zonas distintas. As quais definiram as atividades permitidas ou não em cada uma delas. A primeira, zona de preservação, compreende uma área total de mais 2.716 hectares, podendo ser utilizada apenas para fins de pesquisa. A segunda, zona rururbana, com pouco mais de 547 hectares, comporta somente ações de recuperação e ocupação controlada. Ou seja, mantém proteção ambiental nos empreendimentos já existentes no local, cumprindo as legislações federal, estadual e municipal. No perímetro pode ser implantado apenas atividades autossustentáveis economicamente e infraestrutura própria, independente e com controle ambiental. Dentre as permissões, estão: sítios de recreios, agrovilas e escolas rurais.

A última, zona agropecuária, cerca de 660 hectares, onde há propriedades rurais estabelecidas, as atividades econômicas continuam sob a orientação do município. Neste contexto, cumprindo normas estabelecidas no Plano de Manejo, dentre eles: a compensação ambiental. A urbanista Janaína Holanda, que trabalhou no projeto, cita que a serra tem grande potencial, que deve ser compreendida como remanescente de Cerrado. “É uma área de preservação de caráter metropolitano”, pontua. Vários estudos realizados demonstram a pujança da reservar para o ecoturismo, fortalecendo a economia da cidade. A unidade de conservação conta com três quedas d’água: a cachoeira do Guará, a cachoeira Ninho do Gavião, o mirante ‘Janela do Mundo’ e as cachoeiras das Três Marias. Com base também no Plano de Manejo, um material chamado de turismo sustentável da Serra das Areias foi elaborado pelos professores Carlos Shiley Domiciano e Veronica Araujo Silva. Ambos do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás (Anexo).   

Histórico de abandono

Em 2017, o então secretário municipal de Meio Ambiente, Ezízio Barbosa, chegou a anunciar em uma rádio de Goiânia que a Prefeitura de Aparecida de Goiânia iria instalar câmeras de videomonitoramento em pontos estratégicos na Serra das Areias. Entretanto, a região segue padecendo de fiscalização e as denúncias do uso do local para crimes se acumulam. Há de tudo: desmanches de carro, abatedouros clandestinos de cavalos, homicídios e ocultação de cadáveres. Ezízio foi procurado pela reportagem para saber qual o avanço das ações naquela época, mas não retornou os contatos. 

Gestor ambiental Juliano Cardoso na Serra da Areia | Foto: arquivo pessoal
Gestor ambiental Juliano Cardoso na Serra das Areias | Foto: arquivo pessoal

O gestor ambiental Juliano Cardoso e membro dos Anjos Verdes, que realizam ações de defesa da serra, critica a falta de fiscalização e conscientização ambiental por parte da Prefeitura de Aparecida de Goiânia. “A cidade não tem nenhuma campanha educativa, nem para orientar, nem para educar e nem para fiscalizar. Então, como se diz, eu não educo, daí a pessoal ‘toca a coisa do jeito que quer’. Se for punir a pessoa, ela fala que não sabe e fica por isso mesmo. Só que a Constituição é clara: ‘A ninguém será dado o direito de dizer que não conhece a lei’. Na verdade, Aparecida de Goiânia segue como um barco à deriva no meio do oceano, sem vela, em motor de popa, sem remo e, segue assim, do jeito que o vento toca. De quatro em quatro anos, se tem política de gestão, não há política de governo e não tem política de Estado. Desta maneira, não é o que a lei diz, mas o que o mandatário tem na cabeça para fazer naquele momento e quando a Justiça condena os erros o ‘cara’ já não está mais no poder”, lamenta.

O gestor ambiental cita que, além de crimes ambientais por derrubada de árvores na Serra das Areias, o uso de motosserra pode ser punido com prisão. Isso, porque, quem porta ou utiliza a ferramenta sem registro ou autorização do Ibama está sujeito a detenção de um a três meses e multa de um a dez salários mínimos, com apreensão do equipamento sem prejuízo da responsabilidade pela reparação de danos (Lei n.º 4.771/65).

A ativista Hayanne Huchelly corrobora que há falta de campanhas educativas e de conscientização ambiental por parte da prefeitura. “A população aparecidense não tem acesso à educação ambiental e a fiscalização é falha, ou seja, a área verde desprotegida muitas vezes é vista como abandonada e sem uso pela coletividade”, enfatizou. Para ela, o uso irregular do solo é a primeira problemática ao expandir a ocupação urbana. “Essas invasões contribuem para diminuir o tamanho da APA, por conseguinte, aumenta o descarte irregular de resíduos sólidos; diminui a área verde disponível para os animais silvestres e a caça dos mesmos; causa a poluição do lençol freático por despejo irregular de dejetos no solo; dispersa animais domésticos e flora exótica, entre outros”, lista.

Reserva tem mais riqueza de espécies do que muitos parques estaduais, aponta estudo | Foto: reprodução
Reserva tem mais riqueza de espécies do que muitos parques estaduais, aponta estudo | Foto: reprodução

Cabe ressaltar, que a Serra das Areias é o pico mais alto da região metropolitana, conforme os estudos do Plano de Manejo, a altitude fica entre 840 e 999 metros acima do nível do mar, sendo mais alta do que os Morros da Serrinha e do Mendanha. E como destacou o geólogo Sílvio, ela funciona como uma “esponja” para absorver a água da chuva e transportá-la para o lençol freático, que vai chegar até as torneiras de boa parte da população da grande Goiânia. É no Cerrado que está a maior concentração de nascentes do Brasil, responsáveis por contribuir com a vazão de importantes mananciais e na APA Serra das Areias isso não é diferente. Lá há a nascente do Ribeirão Lajes, sendo um importante manancial para o abastecimento de 49 bairros de Aparecida de Goiânia e de inúmeros córregos, como o Santo Antônio que corta todo o município até deságua no Rio Meio Ponte. Juliano, por inúmeros vezes reforçou que as pessoas que adentram à serra estão cometendo crimes, mas o maior deles é a prevaricação do Poder Público de fazer vistas grossas para um patrimônio importante para a sobrevivência da atual e futura geração.  

APA Serra da Areia | divulgação/Pref. de Aparecida
APA Serra das Areias | divulgação/Pref. de Aparecida

Entrevistados para a reportagem

Sílvio Costa Mattos é geólogo, especialista em Políticas Públicas, engenheiro da segurança do trabalho (CREA 1117/D-GO) e coordenador da equipe do Plano de Manejo da Serra das Areias.

Juliano Cardoso é gestor ambiental, perito judicial de crimes ambientais e especialista em incêndios florestais, gestor de riscos e operações em desastres naturais e tecnológicos, oficial legionário QESOL AV. Desde 2009, é superintendente de Proteção e Defesa Civil Municipal em Aparecida de Goiânia.

Hayanne é ativista, militante ambiental, bombeira florestal, educadora ambiental e bacharel em Ecologia e Análises Ambientais pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Foi agente de Proteção e Defesa Civil.

Maria Ester é professora universitária, arquiteta e urbanista, mestre e doutora em Geografia.

Fábio Camargo é ex-secretário de Meio Ambiente de Aparecida de Goiânia.

Cláudio da Unifan é secretário de Meio Ambiente de Aparecida de Goiânia.

Edmar Kavitera é proprietário de terras dentro da zona de proteção ambiental.


Lei n. 3.275/2015 cria a APA Serra das Areias

Acordão do TCU sobre irregularidades em edital para a construção do Complexo Turístico Serra das Areias

Acompanhamento de liberação de recursos para o complexo turístico de Aparecida de Goiânia

Relatório da CGU de recursos alocados pela Prefeitura de Aparecida de Goiânia