COMPARTILHAR

A Inteligência Artificial (IA) tem ganhado espaço em todas as áreas de atividade humana. Já foram temas de reportagens recentes do Jornal Opção a forma como as máquinas têm sido usadas para encontrar empresas fantasmas, buracos nas ruas, queimadas e desmatamento. Na pesquisa científica, não é diferente. Um pesquisador da Universidade Federal de Goiás (UFG) tem utilizado programas de computador desenvolvidos pela própria equipe para testar possíveis medicamentos virtualmente, sem a necessidade de testes em animais, e de forma mais rápida e barata. Médicos usam a ferramenta para prever complicações da diabetes. 

Bruno Neves é professor da Faculdade de Farmácia da UFG e pesquisa as aplicações da inteligência artificial na farmacologia e toxicologia. O cientista explica: “Primeiro, ensinamos programas de computador a reconhecer o comportamento de moléculas, bem como os meios biológicos em que vão reagir. Fazemos isso com base em conhecimento prévio – são até milhões de dados estatísticos e da literatura científica – acerca das atividades químicas e biológicas dos fármacos.”

Com o conjunto de informações “ensinadas” à máquina, ela é então capaz de produzir um modelo – um conjunto de procedimentos cujo objetivo é construir um paralelo para tentar explicar, matematicamente, os fenômenos estudados. Quando os desenvolvedores julgam que o programa está calibrado o suficiente (ou seja, já é capaz de prever satisfatoriamente o resultado de experimentos), vem a etapa da validação.

“Com uso da Inteligência Artificial, encontramos moléculas promissoras”, diz Bruno Neves | Foto: Reprodução / Acervo Pessoal

Trata-se de uma prova para verificar a eficácia do modelo. Bruno Neves diz: “Quando vamos iniciar um processo, se peço para a IA prever o comportamento de uma molécula aleatoriamente, sua taxa de acerto é de 0,01%. Um acerto a cada mil tentativas. Depois do treinamento, a taxa pode chegar a 60%. Como são repetidas diversas iterações, a taxa de acerto é bem alta.”

Como resultado, a simulação das condições experimentais está sendo usada no Laboratório de Quimioinformática (Labchem) para encontrar possíveis tratamentos para a doença de Chagas, para desenvolver larvicidas contra o Aedes aegypti, para prever o potencial carcinogênico de produtos químicos e outros. “Em vez de testar drogas em ratos e camundongos, nós fazemos testes com os dados de experimentos de toxicidade passados”, diz Bruno Neves. “Essa metodologia já é aceita pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e órgãos reguladores internacionais. Por uma questão ética, hoje há a preferência por poupar os animais.”

Encontrando novos medicamentos

Em uma linha de pesquisa, Bruno Neves e sua equipe testam moléculas com atividade no parasita Trypanosoma cruzi, o protozoário causador da doença de chagas. São drogas ativas em modelos in vitro (em ambiente laboratorial), cujo próximo passo seria o teste em animais. “Com uso da Inteligência Artificial, encontramos compostos promissores, algumas 20 vezes mais potentes do que a droga atualmente utilizada para o tratamento da doença.”

O cientista destaca que estas drogas ainda não tiveram sua eficácia e segurança consolidadas. Os testes com a IA facilitam uma etapa do método científico, mas outros procedimentos serão necessários até que possamos nos assegurar de que um novo tratamento eficiente foi criado com a ajuda da ferramenta. 

Em outra linha de pesquisa, o Labchem analisa com inteligência artificial o risco de desenvolvimento de câncer por exposição prolongada a certos produtos químicos. Pelo método tradicional, roedores são submetidos aos produtos estudados por pelo menos dois anos. “Como não temos um centro de pesquisa no Brasil que faça este tipo de teste, os experimentos são extremamente caros. Com a IA, podemos acelerar e reduzir custos, além de não sacrificar os animais.”

Pela mesma metodologia, o pesquisador estuda inseticidas eco-sustentáveis para controlar os mosquitos transmissores da dengue. “Em vez de estudar os parasitas, podemos simulá-los. Estamos usando a IA para prever o potencial de mais de um milhão de compostos larvicidas para o Aedes aegypti. Buscamos filtrar aqueles compostos que sejam eficazes contra as larvas mas que sejam também eco-sustentáveis.”

Prevendo o mal súbito

Em Goiânia, a Unimed tem utilizado uma inteligência artificial capaz de prever quando pacientes crônicos de doenças como a diabetes terão complicações clínicas. O mais surpreendente: o software é capaz de fazer estas predições com base apenas em informações financeiras da operadora de planos de saúde, sem ler dados clínicos como resultados de exames, pareceres médicos ou prontuários de pacientes. O resultado da tecnologia será apresentado em simpósios da Unimed e poderá ser adotado em outras unidades do país.

Fruto da tese de doutoramento em Ciências da Computação de Rafael Teixeira pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e orientado por Anderson Soares, o algoritmo é um exemplo do potencial que imensas bases de dados (big data) oferecem. A dupla de cientistas da computação explica que a ideia surgiu de conversas com médicos e funcionários da operadora de planos de saúde que estavam preocupados em reverter esforços da cooperativa médica para o pequeno percentual que mais necessita de atenção. 

Sabendo que o programa teria de seguir as diretrizes da Lei Geral de Proteção de Dados para ser aplicável na prática, Rafael Teixeira não pôde contar com informações pessoais dos clientes, nem mesmo as de valor médico. Por isso, acessou apenas os dados transacionais da operadora de planos de saúde: informações financeiras que significam apenas a realização de exames ou a ausência de acompanhamento. “Fizemos a ferramenta, mas precisávamos ligar à outra ponta, que são os clientes das operadoras”, explica Rafael Teixeira. “Eles nos ajudaram a fazer a modelagem fornecendo informações sobre exames feitos por 300 mil clientes.”

Para a tese de doutorado, Rafael Teixeira se concentrou nas complicações advindas da diabetes, como amputações de membros, paradas cardíacas e falências renais. Alimentada com os dados transacionais financeiros, a inteligência artificial começou a encontrar padrões nos exames que foram feitos por pacientes antes de complicações surgirem. A ferramenta foi “ensinada” por deep learning a reconhecer quais exames precedem uma parada cardíaca e o desempenho do software foi continuamente aprimorado à medida que novas informações foram inseridas. 

Rafael Teixeira criou um modelo capaz de prever complicações da diabetes | Foto: Arquivo Pessoal

Rafael Teixeira explica: “Só sabemos que a pessoa fez um exame, mas sabemos sobre todos os clientes fizeram esse exame no passado e o que ocorreu com eles posteriormente. Existe um padrão de progressão da pessoa em tratamento. Um paciente vai ao pronto socorro algumas vezes, sentindo determinados sintomas, médicos pedem certos exames. Assim, o programa percebe o que acontece antes do infarto e alerta os médicos sobre pacientes em risco”. 

O orientador da tese, Anderson Soares, explica sobre a importância do diagnóstico precoce: “A ideia é prever a entrada de pacientes em fase aguda. Pode-se fazer uma angioplastia eletiva ao invés de aguardar a parada cardíaca. Recupera-se o paciente de forma tranquila, sem sequelas, já que a maioria das pessoas que sobrevivem a uma parada cardíaca saem dela com sequelas”. 

Ciência em favor da saúde

Atualmente, o algoritmo é capaz de prever com seis a 12 meses de antecedência quem sofrerá as consequências de doenças crônicas com 97% de acurácia. Através da análise dos exames que estão sendo feitos pelos clientes, a IA é capaz de direcionar a atenção de médicos a pacientes em risco. “Consigo identificar metade dos diabéticos que irão piorar com taxa de falso positivo de 50%”, explica Rafael Teixeira. “De 100 pessoas que terão complicações, prevejo metade”.

O índice parece baixo, mas quando se considera que cerca de 97% dos pacientes permanecerão estáveis, o algoritmo ganha importância. O programa encontra com alta acurácia o pequeno grupo de risco em um universo com milhares de indivíduos. “Em uma lista de 300 mil pessoas, identificamos 100 em que pelo menos 50 terão complicações. Então reduzimos bastante o foco e podemos destinar atenção adequada à esta centena”, explica Rafael Teixeira.

O cientista afirma que a solução resolve um dos maiores problemas das operadoras: o alto número de clientes com doenças crônicas que precisam de cuidados. “Não se pode oferecer o mesmo nível de cuidado preventivo. Nem mesmo é desejável exigir consultas frequentes ou destinar nutricionistas e psicólogos a pessoas saudáveis”.