Pesquisas apontam menos fluxo na Serra de Caldas. Exploração mal planejada ameaça as águas termais, o recurso mais valioso da região

Caldas Novas em 1983 | Foto: Biblioteca IBGE

“A região de Serra de Caldas foi descoberta por bandeirantes provenientes de São Paulo que, no caminho para as terras Goiás, des depararam com insurgências de águas quentes. O local era um território indígena em terras devolutas. As águas termais brotavam em diversos locais ao redor da serra e, em um deles, várias nascentes originaram o ribeirão de águas quentes, lugar que foi batizado de Caldas Velhas.

“Na primeira década do século XX, o local começou a atrair doentes de muitas regiões do país que acreditavam na cura por meio daquelas águas, também conhecidas como ‘águas milagrosas’. Para lá, se dirigiram indivíduos com hanseníase e outros males. As notícias de cura dessas e de outras enfermidades se espalharam país afora, atraindo cada vez mais doentes para a região das águas quentes de Caldas Novas e de Caldas Velhas, atual cidade de Rio Quente. Assim, ali se constituiu um lugar mítico, a partir da crença no tratamento e na cura das ‘fabulosas’ águas termais.

“Por trás de um mito ou de um rito há mais do que uma versão religiosa: há uma cultura, uma tradição, uma concepção do uso que é importante resgatar em uma época assinalada pela crise de recursos e de valores. Na realidade, as águas termais de Caldas Novas e de Rio Quente são terapêuticas e não medicinais, mesmo assim, de acordo com a Organização Mundial do Turismo (OMT), ali se pratica também o turismo de saúde. Desse modo, para conhecer a história e desvendar os mistérios que cercam a região das ‘fabulosas’ águas termais da Serra de Caldas, optou-se por ingressar no mundo do imaginário mítico.”

Ycarim Melgaço Barbosa em “Por que as águas são termais? Dos mitos ao turismo” (Editora da PUC Goiás, 64 páginas)

O declínio

Parque aquático de Caldas Novas hoje | Foto: Reprodução

A região das águas termais em Goiás tem passado por profundas transformações nas últimas décadas. A mudança na forma de exploração dos recursos locais trouxe sofisticadas estruturas de lazer e entretenimento numa região onde se encontra o mais importante manancial hidrotermal do país, mas relegou a sustentabilidade ambiental. Como resultado, pesquisadores afirmam que, além de danos irreversíveis ao ecossistema, o próprio recurso da água termal que trouxe o turismo em primeiro lugar para a região pode se esgotar. 

Para os goianos, o cenário de Rio Quente e Caldas Novas sem o turismo é difícil de se imaginar. Segundo pesquisa das Regiões de Influência de Cidades (Regic), publicada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), o município de Caldas Novas é o quinto mais atrativo para turistas de todo Brasil. Ao redor da estrutura turística, uma grande estrutura foi montada. Por exemplo, a cidade está ligada a outros 58 municípios de seis estados por linhas de ônibus permanentes.

A mesma pesquisa, entretanto, aponta queda de 1,1% em participação no setor cultural nos últimos dez anos. Em 2009, a cultura representava 6,1% das unidades locais de empresas ou organizações que realizam atividades com 34,5 mil pessoas assalariadas. Em 2019, cerca de 9,6 mil unidades de empresas ou organizações atuaram no setor cultural em Goiás, o que corresponde a 5% do total das unidades cadastradas no Estado e 25,4 mil pessoas assalariadas. Os dados são ainda mais baixos em 2020 com 4,4% de participação.

Pouca competitividade

O que explica o declínio da receita em turismo concomitante a expansão e inauguração de novos resorts? Em dezembro de 2020, o Grupo Privé Hotéis e Parques, pertencente à WAM Group, inaugurou a ‘Praia do Lago Eco Resort’, às margens do Lago Corumbá, com investimento de R$ 93 milhões. A WAM Group possui outros quatro resorts com parques aquáticos somente na cidade de Caldas Novas. Segundo a pesquisa Índice de Competitividade do Turismo Nacional, do Ministério do Turismo, a competitividade entre os empreendimentos em Caldas Novas é menor do que a média nacional. O município alcançou pontuação de 57,1 em uma escala de 0 a 100 na metodologia estudada. 

Ycacrim Melgaço é doutor em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador na área do turismo, tendo publicado artigos como “Grandes projetos turísticos na savana brasileira: O Modelo Disney no Rio Quente Resorts”. Ele estima que cerca de 50% do pib das duas cidades esteja concentrado entre 12 empresários. “Gera emprego, é claro, mas a concentração de renda exacerbada dificulta o planejamento público que, no final das contas, traria maiores ganhos para os próprios empreendimentos que o impossibilitam”, afirma o pesquisador. 

Yacrim Melgaço afirma que há potencial não aproveitado no turismo ecológico | Foto: Jornal Opção/Fábio Costa

A tese da falta de planejamento público é reforçada pela própria pesquisa Competitividade do Turismo Nacional. Os maiores desafios elencados no texto da pesquisa, na realidade, não dizem respeito a maior competição entre empreendimentos, mas concernem à falta de investimento dos órgãos de turismo: “1) a inexistência de um plano que defina diretrizes e metas para o setor, à médio ou longo prazo, e norteie ações para o desenvolvimento turístico; 2) Oferta escassa de cursos para capacitação e qualificação profissional da mão de obra local; 3) Carência de informações e centros de atendimento ao turista.”

O modelo Disney

Segundo pesquisadores, o próprio modelo de exploração do local parece ter sido mal planejado, ou alcançado resultados indesejados.  A Companhia Thermas do Rio Quente (comumente chamada de Pousada do Rio Quente) foi adquirida em 1979 pelos Grupos Algar e Gebepar. O formato dos mega parques que encontramos na região começou em 1997, com a inauguração do Hot Park, explica Ycarim Melgaço. “Com consultoria do grupo Disney, os projetos passaram a contar com estrutura estudada pela gestão de organizações e marketing que resultaram na tematização, a teatralização no mundo dos negócios e o consumo coletivo”. 

Foto: Reprodução

Ycarim Melgaço ressalta que o fato não é negativo em si. Como consequência positiva, houve a popularização do lazer, já que a antiga Pousada do Rio Quente era altamente elitizada. O aspecto que o pesquisador critica é a deformação do regional, o desvio da vocação natural do turismo. “O aspecto bucólico e mítico das águas terapêuticas foi substituído pela expansão do negócio. A natureza foi substituída pelo artificial, por um mundo do ‘faz-de-conta’, falso e irreal: tobo-águas, piscinas de ondas e campos de golfe.”

A modernização também é falsa pois não ultrapassa os muros dos resorts (resorts que Ycarim Melgaço compara a shopping centers, confinamento turístico). Nos municípios , não existe formação em turismo ou hotelaria. O Índice de Competitividade do Turismo Nacional aponta o tamanho dos muros: a mão de obra utilizada durante a alta temporada é informal, existe deficiência de profissionais com domínio do inglês e de profissionais de nível técnico-administrativo, há pouco envolvimento da comunidade local com a atividade turística e nenhuma campanha de sensibilização do turista para o respeito com a cultura e o patrimônio.

Meio ambiente

Ao contrário do que afirma a crença popular, Caldas Novas e Rio Quente não foram construídas sobre um vulcão. As crônicas sobre o vulcanismo na Serra de Caldas se originaram do conhecimento científico, talvez popularizadas pelo artigo “As Fabulosas Águas Quentes de Caldas Novas”, de Tufi Caibud (1982). 

“Casa de Banho” em Rio Quente, 1910 | Foto: Domínio Público

O fato geológico é que as águas que se infiltram principalmente no Parque Estadual da Serra de Caldas, principal local de recarga do aquífero termal, são aquecidas a enormes profundidades pelo calor do manto terrestre. A água percola as rochas da região há mais de 60 milhões de anos. Isso não significa, porém, que a água do aquífero é infinita. Enquanto as águas surgiam espontaneamente no passado, a extração exacerbada do recurso reduziu a pressão de forma que o fenômeno do surgimento de novas nascentes termais não ocorre mais.

Atualmente, é proibida a perfuração de novos poços artesianos na região, mas os empreendimentos locais continuam a bombear a água nos poços já existentes. “Hoje, há dificuldade de reposição dessas águas, de modo que muitos estabelecimentos as aquecem com aquecedores elétricos”, diz Ycarim Melgaço, que há 15 anos estuda os impactos ambientais na Serra de Caldas com auxílio do CNPq e Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de Goiás (Fapeg).

O pesquisador afirma que o problema ambiental na região vai além da escassez das águas termais. “Fala-se muito da temperatura e abundância da água, mas talvez o mais sério problema enfrentado por essas cidades atualmente seja o manejo de resíduos sólidos. O turismo é uma atividade econômica que produz lixo demais. Turistas saem de seus estados com bens não-duráveis embalados em plástico, os consomem na região, e deixam o lixo. Todo resíduo vai para aterros por falta de um programa de sustentabilidade ambiental. Os municípios não se adequaram à Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS, lei nº 12.305/2010).”

A culpa não é apenas do poder público, o pesquisador comenta. Os empreendimentos da região atraíram o problema, mas não criaram soluções para ele. “Esses empresários não incorporam esse aspecto aos seus negócios. Eu entendo que deveria haver uma associação público privada para aproveitar as oportunidades de fortalecer o turismo ecológico, compostagem e reciclagem. Também não vejo campanhas de conscientização e educação para o turista. Também aquele que visita a região tem obrigações. Mas nas últimas duas décadas, o modelo de negócios na Serra de Caldas tem sido a exploração predatória dos recursos, enquanto eles ainda existem.”