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A seca pela qual a capital passa chama atenção para a situação dos recursos hídricos e revela medidas paliativas e falta de entendimento da situação de fato 

Uma das diversas nascentes do Córrego Rosão que alimenta o Meia Ponte tem suas margens degradadas | Foto: Fernando Leite / Jornal Opção

Pelo fundo dos bairros Jardim Conquista, Dom Fernando I e Dom Fernando II passa o Córrego Rosão, um dos afluentes do Rio Meia Ponte. Há mais de uma década, o rompimento de uma adutora da Saneago causou um enorme processo erosivo que viria a ficar conhecido como “buracão”. O buracão foi aterrado em 2017 e o esgoto, que era despejado no córrego, foi devidamente canalizado, mas, embora haja decisão judicial para recuperação da área degradada, o local continua sofrendo com invasões, despejo de lixo doméstico e uso ilegal dos recursos hídricos. A situação não é melhor no restante da cidade. 

Quando a vereadora Dra. Cristina chamou a atenção para a situação dos moradores da região e conseguiu reparar a erosão com fundos de emenda parlamentar municipal, foi acordado que a Agência Municipal do Meio Ambiente (Amma) apresentaria um Plano de Recuperação de Áreas Degradadas (Prad), mas nunca o fez. Os moradores que formaram a Associação Comunitária do Jardim Conquista (Ascojaco) relatam que o problema está longe de definitivamente solucionado. 

Raquel Alves Batista, vice-presidente da Ascojaco relata que o interesse da associação é transformar o local em um parque, com isolamento das nascentes, reflorestamento da vegetação nativa e desocupação de invasões no local. “Até que isso aconteça, vão continuar aparecendo processos erosivos nesta, que já é uma Área de Preservação Permanente (APP). Isso não é respeitado. Hoje mesmo (1 de outubro) a Amma apreendeu uma fábrica de gelo clandestina que retirava água do córrego para vender no centro da cidade”, afirma a vice-presidente da associação de moradores. 

Região ainda não tem um Plano de Recuperação de Área Degradada | Foto: Fernando Leite / Jornal Opção

Manda-chuvas

Há 187 mananciais identificados e que estão distribuídos por todas as regiões de Goiânia. Segundo a assessoria de imprensa da Amma, os principais problemas constatados nestes cursos hídricos são: descarte de entulho e lixo doméstico, lançamento clandestino de esgoto, desmatamento de mata ciliar resultante de invasão de APPs. Não há, entretanto, estudo que monitore a qualidade das águas ou verificação do grau de degradação dos mananciais. 

Gilberto Marques Neto, presidente da Agência Municipal do Meio Ambiente, afirma que a fiscalização tem sido um dos focos do órgão: “Através de parceria com o Comando de Policiamento Ambiental (CPA) da Polícia Militar, a Amma passou a ter suporte nas abordagens aplicando não apenas medidas administrativas, mas judicializando infratores que podem ser criminalmente processados”. Gilberto Marques Neto afirma também que a Medida Provisória (MP) da Liberdade Econômica já facilitou o licenciamento ambiental de 775 processos através do programa Licença Ambiental Fácil. O presidente do órgão espera que, ao modernizar a concessão de licenças, parte da equipe possa ser alocada no monitoramento ambiental. 

De forma semelhante, a Secretaria de Estado de Meio-Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad) também fiscaliza e pune infrações, mas não tem estudos para controlar nível ou qualidade hídrica. Como o licenciamento ambiental é descentralizado – compartilhado entre Governo Estadual e município –  ambos os níveis têm a obrigação de supervisionar o uso de recursos hídricos. Entretanto, a estadual Semad tem uma obrigação a mais, pois autoridade sobre as águas subterrâneas é sua, exclusivamente. A autorização para abrir poços artesianos não depende de licenciamento ambiental, mas sim de outorga, que tem encargo estadual.

Apesar de ser uma Área de Preservação Permanente, Córrego Rosão tem diversas ocupações ilegais | Foto: Fernando Leite / Jornal Opção

Marcos Menegaz, superintendente de recursos hídricos e saneamento da Semad, afirma que o nível dos lençóis freáticos em Goiânia o preocupa, pois sabe empiricamente pelo número de pedidos de abertura de novos poços artesianos que uso da água subterrânea se multiplicou. “Tivemos uma reunião recentemente e pretendemos monitorar essa atividade. Queremos criar um grupo de trabalho para definir diretrizes para avaliar o balanço hídrico. Mas hoje nada é feito nesse sentido”, afirma Menegaz.

O superintendente cita como ações da Semad em prol da manutenção do nível hídrico a revitalização da bacia do Meia Ponte, que consiste em ações de conscientização, educativas e operacionais para recuperar os afluentes do Rio Meia Ponte. Entre os exemplos práticos deste último grupo de ações estão a melhoria da infiltração da água no solo, que envolve ainda mais um órgão governamental, a Secretaria Municipal de Planejamento Urbano e Habitação (Seplanh), por meio da seção do Plano Diretor.

Janamaina Costa Bezerra de Azevedo, funcionária técnica da Seplanh afirma que, desde 2013, a secretaria obriga a construção das caixas de recarga na capital. Segundo a lei Nº 246, de 2013, que altera o Plano Diretor vigente, tratam-se de: “reservatórios de armazenamento das águas pluviais coletadas dos telhados e de áreas impermeabilizadas, tais como estacionamentos, ruas e avenidas, podendo ser destinadas ao reuso, em unidades residenciais ou não residenciais, para fins não potáveis. O reservatório de retenção deverá permitir, sempre que viável, a infiltração da água armazenada, funcionando também como caixa de recarga do lençol freático.”

Uma das nascentes da região do Jardim Conquista é utilizada para descarte de lixo doméstico e bebedouro de gado | Foto: Fernando Leite / Jornal Opção

Entretanto, Janamaina Costa Bezerra de Azevedo afirma que a Seplanh também não verifica se a lei foi obedecida ou não. Marcos Menegaz, superintendente de recursos hídricos e saneamento da Semad, diz: “Os projetos antigos não se adequaram. O problema de impermeabilização do solo em Goiânia é antigo. Novos empreendimentos observaram esses índices e obedecem as regras adequadamente, mas, como não temos monitoramento, não há como determinar se houve melhora”. 

Conversa com quem entende

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Luziano Carvalho afirma que proteção ambiental não deve ser apenas caso de polícia | Foto: Fernando Leite / Jornal Opção

Luziano Carvalho é delegado titular da Delegacia Estadual de Repressão a Crimes Contra o Meio Ambiente (Dema) há 20 anos. O delegado trabalha diariamente com a recuperação de mananciais em Goiás e na capital e conta como tem percebido a situação hídrica mudar ao longo dos anos. Apesar de relatar diversas ocasiões em que seu trabalho foi feito apenas para ser frustrado posteriormente, ele afirma não perder esperança de ver uma mudança na cultura da preservação socioambiental.

Qual é a situação dos córregos goianienses atualmente?

Praticamente todas as nascentes de Goiânia foram cercadas e reflorestadas até onde é possível. Algumas têm danos irreversíveis ou construções ao redor, mas já fizemos o que poderia ser feito: reflorestamento, isolamento, monitoramento. Estão isoladas, mas quando se faz fundações que chegam ao lençol freático, isso uma agressão; se fizerem uso irregular das águas, é uma agressão; se descartarem lixo e esgoto clandestinamente, isto é uma agressão. 

Na Serrinha, por exemplo, se recuperou a nascente, mas uma rede pluvial desvia a água. No parque Cascavel fizemos esse trabalho, mas foi assoreado. Recuperamos o parque Macambira Anicuns, mas foi construída uma rua em cima. Quando se faz esse tipo de coisa, acabou. Recuperamos cerca de 80% das nascentes, a maioria se tornou parque, Área de Preservação Permanente, mas isso não significa que serão completamente recuperados.

Existe legislação para proteger mananciais, plano diretor, diversos outros dispositivos legais. Por que a lei não está sendo suficiente?

Tome por exemplo a obrigação de guardar 50 metros de mata ciliar. Não se pode construir mais próximo de córregos do que isto, mas é uma medida que simplesmente não é obedecida. A realidade é que não entenderam que Área de Preservação Permanente é PERMANENTE. O shopping Passeio das Águas, por exemplo, foi feito em cima de uma APP desta forma:

Se constrói em APP de qualquer forma e, depois que se é questionado judicialmente, envia-se uma composição para a justiça, um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), ou uma compensação ambiental como reflorestamento em outra área. Qualquer coisa do tipo funciona. A justiça entende que, uma vez que a já construção foi feita e a natureza já foi destruída, é melhor que não se tenha também a perda econômica, ninguém manda demolir. 

Agora, está acontecendo novamente no setor Parque Oeste Industrial.

Não há falta de legislação então?

De forma alguma. Se alguém quiser fazer uma lei para proteger o meio ambiente não aparece quem discorde, mas isso não resolve o problema. Nosso grande desafio é colocar tudo que está em lei na prática. É muito fácil criar leis, mas é também uma transferência de responsabilidade. 

Cria-se a lei mas não a cultura os mecanismos para fazê-la valer. Aí acontece a infração, vem a polícia, o Ministério Público, e esses se tornam os culpados porque serão incapazes de arranjar um jeito de fazer a lei ser cumprida. Eu tenho agora 80 requisições do Ministério Público na minha mesa. Me pergunte se eu tenho estrutura para resolver.

O senhor não vê o que pode ser feito?

O problema só será solucionado com uma evolução da cultura. É preciso uma adequação social, as pessoas precisam fazer sua parte. Tem que compatibilizar o econômico com o socioambiental. É obrigação do poder público e da comunidade proteger o meio ambiente, criar estratégias de conscientização, prevenção, planejamento, fiscalização e punição. Mas isso tem uma ordem para funcionar. 

Veja, como se consegue resolver o problema da impermeabilização do solo sem prejudicar crescimento urbano? O único jeito é investir em tecnologia, pesquisa e ciência. Estamos indo no caminho oposto, mas não podemos perder a esperança.