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Pressão internacional e medidas do governo contra queimadas ignoram o cerne dos problemas ambientais: a questão fundiária brasileira precisa ser regularizada

Queimadas
ST Dennis / CBMGO

O fogo no Brasil saiu de controle, literal e figurativamente. Em comparação com o mesmo período em 2018, neste ano o país teve 84% mais focos de incêndio. Foram 77 mil queimadas cuja fumaça pôde ser vista do céu de São Paulo até o espaço, pelos satélites Aqua, Terra e Suomi NPP. Os dados, recolhidos por agências espaciais internacionais e processados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) chegaram ao presidente francês Emmanuel Macron, que disse que levaria o assunto à reunião do G7, fazendo com que o fogo se alastrasse para o nível internacional. 

Enquanto a região amazônica lidera o ranking, hospedando 52% das queimadas do Brasil, Goiás toma sua parte no problema com 1.681 focos, 24% a mais do que no mesmo período do ano passado. A situação é mais preocupante se considerarmos que o estado não sofre apenas diretamente com as chamas, mas também que está no curso da Massa Equatorial Continental (MEC), a massa de ar que vem da Amazônia e que perde umidade com o material particulado lançado à atmosfera pelas queimadas. Somado ao fato de estarmos em ano de El Niño, a fumaça do norte faz com que o prognóstico para Goiás seja preocupante. 

A Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Goiás (Semad) afirma que todo o Estado tem alto risco de incêndios florestais e o Corpo de Bombeiros da Polícia Militar afirma operar com brigadistas temporários além do efetivo regular nos meses de seca. Entretanto, Fernando Moreira de Araújo, geógrafo que trabalha com mapeamento de áreas queimadas no Cerrado a partir de dados gerados pela Nasa, afirma: “As discussões são superficiais. De ano em ano, ouvimos onde queima e onde deixa de queimar, mas precisamos entender quem ateou o fogo, o porquê, e de determinação política para resolver a questão”.

Quem ateou o fogo

Segundo a Terrabrasilis, plataforma que reúne dados de programas de monitoramento ambiental, as duas categorias de destruição ambiental que mais ocorrem no Brasil são o desmatamento e o incêndio florestal, com 6.6 e 5.1 mil quilômetros quadrados de área respectivamente, até agosto deste ano.  Fernando de Araújo afirma que grande parte dessas áreas é coincidente: “As queimadas estão, em sua maioria, associadas ao desmatamento. A limpeza dos pastos com a utilização do fogo ocorre em pastagem de produção extensiva (grandes áreas), as quais tem baixa produção. O fogo é inexistente nas áreas produtivas.

Queimadas
Foto: ST Dennis / CBMGO

O uso do fogo como técnica de manejo não está associado a produtividade e progresso, mas sim a baixa produtividade. Fernando de Araújo afirma que a prática é ineficiente: “O grande agricultor faz investimentos como cerca, adubação, fertilizantes, agrotóxicos, mas o fogo recorrente acaba com propriedades do solo. Obriga o produtor a fazer correções, jogando dinheiro fora”. O pesquisador afirma que produtores rurais escolhem essa prática por uma miopia econômica, já que atear fogo é barato a curto prazo e só traz prejuízos com correções do solo ao longo de dois a quatro anos.

Fernando de Araújo afirma que homologação de terras de proteção vêm sendo “empurrada com a barriga” pelo Estado há décadas | Foto: Fernando de Araújo

Além disso, Fernando de Araújo afirma que há um componente cultural na prática. “Com 8,5 milhões de quilômetros quadrados, proprietários rurais pensam que a área do Brasil é infinita.” Anualmente, a área destinada à agricultura no país cresce quase o equivalente a um Estado do Acre, segundo o Censo Agropecuário. No Cerrado, a prática de queimadas para a rebrota da vegetação gramínea, mais palatável para o gado, ocorre em áreas de pastagens de baixa produtividade e degradadas. 

Onde queima  

A Lei do Fogo (Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo) regulamenta o uso da técnica das queimadas. Segundo o texto, um agrônomo, engenheiro florestal ou outro profissional habilitado deve preencher formulários que serão analisados pelas agências municipais do meio ambiente e poderão resultar em uma guia que autoriza o proprietário de terras a queimar uma área de forma controlada. “Mas na maior parte das ocorrências de incêndios do Brasil você não tem essa guia”, afirma Fernando de Araújo. 

Sem normas de segurança, o fogo não fica restrito às áreas produtivas. O Banco de Dados de Queimadas mostra que os incêndios ocorrem mais em áreas de vegetação natural do que em propriedades agrárias. Fora do controle dos produtores rurais, as chamas se alastram para Unidades de Conservação (UCs), como o Parque Nacional das Emas, que em 2010 foi 90% incinerado, ou a Chapada dos Veadeiros, que em 2017 foi quase completamente destruída no maior incêndio da história do país. 

Foto: ST Dennis / CBMGO

O major Éberson Holanda, do Corpo de Bombeiros de Goiás, lembra que incêndios também acompanham as estradas. “Temos muitas ações de incendiários, que propositalmente colocam fogo às margens de rodovias. Por conta da baixa visibilidade, ocorrem acidentes com veículos que entram na fumaça. Além disso, nossa maior preocupação é com as Áreas de Proteção Ambiental (APA), que monitoramos com drones e para as quais enviamos um número extra de bombeiros logo que detectamos incêndios, na tentativa de contê-lo no início.”

Além da ação do Corpo de Bombeiros, a Semad também se dedica à conter a situação. “A Semad está em colaboração com o Serviço Florestal Americano para transferência de tecnologia, formação de brigadistas, elaboração do Plano Estadual de Combate a Incêndios Florestais em Unidades de Conservação. Além disso, trabalha na captação de recursos para equipar as UCs com unidades completas de pronto atendimento a incêndios florestais”, afirma o porta-voz da secretaria.

As queimadas acompanham períodos de seca. Segundo informações da Semad, em 2019 há um déficit de chuvas que torna a serrapilheira do Cerrado ainda mais inflamável. 

Quantidade inferior de chuvas deste ano promete incêndios, segundo dados da Semad

Onde deixa de queimar

Segundo estudos publicados pela Universidade de São Paulo e internacionalmente, o desmatamento na Amazônia alterou o regime de chuvas na região Norte. Isso porque o processo de evapotranspiração das árvores faz com que a floresta lance na atmosfera o equivalente a um rio caudaloso de vapor de água. Este rio voador flui para o Centro-Oeste e posteriormente segue para o Sudeste, precipitando chuvas em seu caminho. 

A umidade lançada ao ar pela Amazônia alimenta a própria floresta, e os 5.5 milhões de quilômetros quadrados de vegetação densa da Amazônia Legal necessitam de muita água para sobreviver. Por isso, o desmatamento e as queimadas fazem com que a ameaça à floresta seja assustadoramente maior do que parece. Não é necessário derrubar todas as árvores deste bioma para destruí-lo. Diversos cientistas, de várias nacionalidades, verificaram e publicaram extensivamente o ponto de não-retorno ou ponto de inflexão da Amazônia. 

Só é possível desmatar de 20 a 25% da floresta – mais do que isso e ela não é capaz de vaporizar a água suficiente para gerar chuvas sobre si mesma. 20% da área original já foi destruída. Em uma publicação da Agência Fapesp, o repórter Elton Alisson entrevistou Carlos Nobre, coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Mudanças Climáticas, que afirmou: “Apesar de não sabermos o ponto de inflexão exato, estimamos que a Amazônia está muito próxima de atingir esse limite irreversível. A Amazônia já tem 20% de área desmatada, equivalente a 1 milhão de quilômetros quadrados, ainda que 15% dessa área [150 mil km²] esteja em recuperação.”

Foto: ST Dennis / CBMGO

Determinação política

Conforme mostrou entrevista publicada pelo Jornal Opção, não é necessário desmatar ou queimar mais nem um hectare para suprir as demandas produtivas. Segundo Sérgio Henrique Nogueira, pesquisador do Laboratório de Processamento de Imagens e Geoprocessamento da Universidade Federal de Goiás (Lapig-UFG), se houvesse a recuperação de pastagens degradadas e investimento em produtividade, o equivalente a 11 milhões de hectares seriam disponibilizados para a agricultura em Goiás. É um número superior ao da expansão da soja entre 2000 e 2017.

Para isso, não seria necessária a criação de nenhuma legislação especial, explica Sérgio Nogueira. “Seriam áreas de restauração em cumprimento ao que já estabelece o Código Florestal. No Cerrado, de acordo com o Código Florestal, precisamos ter 20% das áreas de vegetação natural preservadas em todos os municípios.” Portanto, cabe a pergunta: por que o Código Florestal não vem sendo cumprido?

Fernando Moreira de Araújo explica que tudo passa pela questão fundiária. O pesquisador exemplifica: “Em 2003 foi criado pelo Estado de Goiás o Parque Estadual da Serra Dourada (municípios de Goiás, Buriti de Goiás e Mossâmedes). Eu perguntei ao ex-secretário do Meio Ambiente do município de Goiás, Pedro Vieira, como andavam as desocupações. Ele afirmou que não foi feita nenhuma desapropriação da área para que anexassem o parque estadual. Ou seja, você cria UCs mas não as homologa”.

O Código Florestal atualmente vigente é a Lei 12.651 de 2012 ou Lei da Proteção a Vegetação Nativa; e o Código anterior, Lei 4.771 de 1965, já preconizava indenizar e apropriar áreas de proprietários rurais. Diversas áreas de proteção foram criadas desde então, mas sua homologação jamais ocorreu. O jornal “O Estado de S.Paulo” revelou no dia,  no dia 25 de maio, que o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, pretendia utilizar o Fundo Amazônia para indenizar os pecuaristas. Países europeus que financiavam o fundo discordaram da iniciativa, afirmando que a verba deveria ser utilizada para monitoramento e preservação; e grupos ambientalistas lembraram que parte dos pecuaristas compensados seria na verdade grileiros, detentores ilegais de terras públicas. 

Pressão internacional

Uma publicação da ong Greenpeace, de 2005, revelou que importadores de commodities brasileiras eram responsáveis pelo desmatamento, deixando empresas estrangeiras com uma reputação ruim. Em acordo com produtores de soja, ongs internacionais fizeram o pacto ambiental que ficou conhecido como Moratória da Soja e que posteriormente foi adotado pelo próprio governo. 

Queimadas
Foto: ST Dennis / CBMGO

Fernando de Araújo explica que a Moratória da Soja foi um marco em 2006, freando o boom do desmatamento no Mato Grosso e instaurando sistemas de prevenção e controle que até hoje funcionam muito bem. Entretanto, o Matopiba (região que abrange o norte de Goiás, Tocantins, Maranhão, Piauí e Bahia) foi uma alternativa para a expansão da área agrícola de parte do produtores do Mato Grosso, devido a disponibilidade de terras aptas a produção agrícola, baratas e sem sistemas de controle e prevenção no Cerrado.

“O Matopiba tinha terras baratas e grandes áreas planas de chapadão com solo desenvolvidos”, afirma Fernando de Araújo. “O Matopiba de 2010 para cá perdeu milhares de hectares de área natural, e, por ser área de transição com a caatinga, é muito frágil. A região possui água, mas o seu sistema hídrico é frágil, sobretudo em função quantidade de chuvas anuais serem reduzidas – resultando em menor recarga da água subterrânea – em relação as outras regiões do Cerrado, sobretudo por ser um região de transição Cerrado-Caatinga. Dessa forma, parte da água utilizada para a produção agrícola possui como sua fonte as águas subterrâneas e ou de aquíferos.

Sérgio Nogueira completa: “O problema é que há uma falsa impressão de que o desmatamento está diminuindo. O que ocorre é que o desmatamento está migrando para áreas ambiental e socialmente mais frágeis, causando conflitos por terra e uma série de problemas”.

Junto com a nuvem de fumaça brasileira, a pressão internacional sobe novamente. Outra vez, atenções estão voltadas para “onde queima e onde deixa de queimar”. Ricardo Salles, após repercussão dos incêndios, anunciou uma força-tarefa para preservação da floresta. A medida, que não toca questão fundiária ou oferece incentivos para preservação, promete ser mais um paliativo para a Amazônia e uma nova razão para desmatar o Cerrado.