Reforma tributária: o que pode ser bom para o Brasil tem tudo para não ser para Goiás

16 julho 2023 às 00h01

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Quem acompanhou o noticiário nacional nas últimas semanas percebeu que a proposta de reforma tributária foi certamente a mais festejada entre todas as matérias de lei que passaram pela Câmara dos Deputados nos últimos anos. Entre outros aspectos, ressaltaram o tempo que o Brasil aguardava por uma nova legislação sobre impostos que não fosse apenas um remendo, bem como a necessidade de simplificar a taxação, facilitando a vida de pessoas físicas e jurídicas contribuintes. Nesse sentido, pelo menos, o Imposto sobre Valor Agregado (IVA) é uma espécie de alíquota única para substituir inúmeros tributos municipais, estaduais e federais.
Mas quem buscou ver um pouco além do Jornal Nacional e observou como foi a reação “localmente”, não ficou tão convencido nem tão maravilhado assim. Principalmente os goianos olharam meio de lado para tudo o que está acontecendo em Brasília nesse tema, já que o governador Ronaldo Caiado (UB) tornou-se o principal crítico antes e depois da aprovação da proposta, que teve no economista Bernard Appy seu principal idealizador.
Caiado está certo: do jeito que está, a reforma prejudica muito mais do que ajuda Estados que buscam seu desenvolvimento, principalmente nas regiões Centro-Oeste, Norte e Nordeste. Há várias observações que podem ser feitas e trabalhar com números, tributos, taxações e siglas mil confunde a cabeça até de quem é do meio – ainda mais levando-se em conta o emaranhado tributário do Brasil, que é o que justamente se quer resolver.
Mas há algo que especialmente detona as unidades federativas emergentes da configuração geopolítica nacional: a tributação exclusiva no destino (consumo) e não na origem. “Mexer da origem para o destino arrebenta com Estados do Norte, do Nordeste e do Centro-Oeste”, resume o economista e professor da Universidade Estadual de Goiás (UEG) Júlio Paschoal. Parece difícil entender, mas com um exemplo fica mais fácil explicar: uma mercadoria que seja produzida em Goiás só vai ter seu imposto recolhido no local em que for adquirido, de alguma forma. Ou seja, se a receita vai deixar de vir para Goiás para ficar, por exemplo, em São Paulo – para onde vai, por exemplo, grande parte dos carros produzidos pela Hyundai, em Anápolis, e Mitsubishi, em Catalão.
Nas últimas quatro décadas, o Estado de Goiás se industrializou de forma mais acelerada por conta de conseguir trazer para cá grandes indústrias de vários setores. Alguns exemplos: a antiga Arisco (depois Unilever, hoje Cargill), em Goiânia (1985); Neo Química (depois Hypermarcas, hoje Hypera Pharma), em Anápolis (1989); Mitsubishi, em Catalão (1998); Perdigão, em Rio Verde (2003); e Caoa Hyundai, também em Anápolis (2007).
Mas o que fizeram todas essas empresas virem para Goiás em vez de se localizarem em pontos mais próximos dos grandes mercados consumidores? As palavras-chave são “Fomentar” e “Produzir”, os programas de incentivo fiscal do governo que desde a década de 80 fizeram com que se tornasse atraente montar uma planta industrial em Goiás. Resumindo, para ter grandes indústrias, o Estado abria mão de parte da receita, o que seria compensado, de médio a longo prazo, pela criação de empregos e de uma cadeia logística que geraria muito mais dividendos.
Parece lógico: ainda que as empresas tivessem benefícios e mesmo privilégios, o saldo ficava positivo para o Estado. E Júlio Paschoal ressalta: “Uma coisa é isenção, outra é incentivo”. Isso porque todas essas empresas, apesar de subsídios, dão sua contribuição ao erário.
A reforma tributária acaba com essa possibilidade. O argumento utilizado é que, apesar dos empregos criados nas regiões e Estados em que há incentivos fiscais, o conjunto da população, no fim, sai prejudicado, porque o ICMS e ISS não gerados deixariam de servir para atender saúde, educação e segurança, por exemplo, prioridades de qualquer prefeitura ou governo. Sendo assim, os mais carentes seriam as principais vítimas das consequências da chamada “guerra fiscal”.

O economista Júlio Paschoal não vê essa correlação. Pelo contrário, é taxativo em dizer que, sem os incentivos, cedo ou tarde – ou no prazo limite previsto pela proposta de reforma, em 2032 – as indústrias irão embora, levando consigo dezenas de milhares de empregos diretos e indiretos. “Se tudo for aprovado como está, vamos ver, no século 21, um novo fluxo migratório para o Sul e o Sudeste, saindo das outras regiões”, avisa.
Outro ponto terrível para o Estado foi especialmente ressaltado pelo governador Ronaldo Caiado: é a criação do Conselho Federativo. Pelo texto da reforma, esse conselho seria formado por representantes dos Estados e municípios para ficar responsável pela arrecadação do novo Imposto Sobre Bens e Serviços (IBS), que substituirá os atuais Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e Imposto sobre Serviços (ISS). Para alguns governadores, a medida afronta a autonomia de cada Estado. Caiado, particularmente, chamou a novidade de “coisa de venezuelano”, referindo-se ao regime autoritário do país vizinho.
Pela proposta que foi aprovada, a criação de tributos e sua distribuição passarão pelo Conselho Federativo. O governo de São Paulo, que ficou contra a proposta durante quase todo o transcorrer da discussão, foi “convencido” ao apagar das luzes com as mudanças de última hora. Uma das razões foi a introdução, no texto-base, de que algo que fosse para votação no conselho só seria aprovado se a maior parte das unidades federativas concordassem e – esta parte favoreceu bastante aos paulistas – se o total das que estivessem de acordo representasse pelo menos 60% da população brasileira. Ou seja, Tarcísio de Freitas (Republicanos), o governador paulista, não tem motivos de que se queixar: o “voto” de São Paulo passa a valer mais de 6 vezes o voto de Goiás, para ter ideia.
Mais: se os governos do Sudeste se juntarem contra qualquer proposta, já constituem em si todo o poder de veto, já que a população dos quatro Estados – além de São Paulo, também Minas Gerais, Rio de Janeiro e Espírito Santo – soma 85 milhões, ou 44% do total da população nacional.
Mas por que o poderoso Arthur Lira (pP-AL), o presidente da Câmara dos Deputados, trabalharia para, no fim, desfavorecer seu próprio Estado? Afinal, Alagoas é uma das unidades federativas mais carentes do Brasil, sempre em baixa nos principais índices marcadores de desenvolvimento humano e de desigualdade social.
Para Júlio Paschoal, a questão é simples: “Lira não olhou para Alagoas, olhou para o próprio umbigo”, acredita. O professor considera que outro fator a pesar para que os nordestinos não tenham ficado contra a proposta de reforma tributária foi a inclusão da isenção tributária para os produtos da cesta básica. “Infelizmente, há também uma questão política e cultural envolvida: o Norte e o Nordeste se acostumaram a viver de pires na mão junto ao governo federal.”
Mas nem mesmo por lá a situação parece pacificada – e nem mesmo entre governantes ligados diretamente ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). O governador do Ceará, Elmano de Freitas, também petista, mostra preocupação com a situação futura do Estado e, ainda que com mais tato do que Caiado, vem mostrando a necessidade de “aprofundar o diálogo” em relação à reforma.
A esperança de Elmano, como agora também a do governador de Goiás, é que o Senado corrija as distorções apresentadas na proposta que saiu da Câmara. Caiado, em especial, não acredita que os fundos propostos para compensar o fim dos incentivos vão conseguir repor as perdas de receita. Isso sem falar na falta de definição sobre os detalhes do novo regime tributário. Não se sabe, por exemplo, qual a alíquota que terá o IVA, embora o próprio Bernard Appy, autor da proposta, garanta que o teto é de 30%. Governadores acham demais. Ou seja, apesar da euforia por avançar com algo entalado no bolso do contribuinte há 35 anos, é cedo demais para comemorar. Quem mora em Goiás, pelo jeito, tem menos razões ainda.
Bernard Appy e Aguinaldo Ribeiro, o “casal” da reforma tributária
Bom ou ruim, foi o primeiro texto de uma reforma tributária que chegou ao plenário na era da redemocratização. Antes, haviam se passado três décadas e meia de promessas de fazê-la, feitas por todos os presidentes – inclusive o próprio Lula –, que assumiam o poder e então davam sequência a uma crônica protelação da discussão.
Se saiu essa e não outra reforma, isso se deve a Bernard Appy. Economista graduado na Universidade de São Paulo (USP) e com mestrado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), ele trabalhou como diretor de Estudos e Políticas Fiscais do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), foi assessor econômico do PT na Câmara dos Deputados, ainda na década de 90 e, depois, tornou-se secretário de Política Econômica no segundo mandato do então presidente Lula, de 2008 a 2009.

Appy é reconhecido como um dos principais especialistas em tributação no País e há muito tempo tem contribuído com suas análises e propostas para a melhoria do sistema fiscal brasileiro. Está debruçado sobre o atual projeto há oito anos ininterruptos. Não foi por acaso, portanto, que, assim que foi confirmado como ministro da Fazenda, Fernando Haddad o convidou a assumir uma secretaria exclusiva para tratar da proposta de reforma tributária.
Se o especialista da área foi quem fez o trato econômico da proposta, o ajeitamento político ficou nas mãos do relator, o deputado Aguinaldo Ribeiro (pP-PB), que, além de ser do mesmo partido, é ligado umbilicalmente a Arthur Lira. Todas as “introduções” foram feitas por ele. No fim, o que está agora nas mãos dos senadores é uma mistura da técnica de Appy com o jogo de cintura de Aguinaldo. Não à toa, no meio político, o texto-base chegou a ser chamado de “Appynaldo” pelos mais sagazes.