“Superávit” de Bolsonaro é fruto de calote em precatórios, redução de investimentos e despesas não pagas, apontam economistas

15 fevereiro 2025 às 21h17

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O superávit de R$ 54,1 bilhões que o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) alega ter deixado nas contas públicas ao final da sua gestão em 2022 é fruto de manobras fiscais e de uma “maquiagem nas contas públicas”, afirmam economistas. O presidente Lula da Silva (PT), comentou, na última semana, que a gestão de Bolsonaro terminou o mandato com um déficit de 2,6% do Produto Interno Bruto (PIB). A disputa da narrativa tem dois focos: a mudança dos parâmetros de medição dos resultados fiscais e a articulação, junto ao Congresso Nacional, para a aprovação de medidas que durante o governo da ex-presidente Dilma Rousseff foram consideradas como pedaladas fiscais.
De acordo com o Tribunal de Contas da União (TCU), em 2021 houve uma redução significativa do déficit para R$ 35,9 bilhões, sendo que em 2022 ocorreu uma inversão de sinal de superávit de R$ 54,9 bilhões. No entanto, o TCU aponta que houve autorização legislativa para efetivar deduções no cálculo do resultado primário e, no ano de 2023, houve um déficit de R$ 264,5 bilhões. O superávit primário representa a diferença entre as receitas e os gastos do governo sem considerar o pagamento dos juros da dívida pública.

O secretário do Tesouro Nacional, Rogério Ceron, disse que o déficit histórico nas contas públicas ultrapassa os 10% do PIB. Ao comentar sobre o superávit supostamente deixado por Bolsonaro, Ceron disse que o debate não era completamente técnico, especialmente devido aos gastos da pandemia de Covid-19.
Calote nos precatórios instalou bomba relógio
Ao Jornal Opção, o professor e economista Sérgio Duarte, pós-doutorado em Ciência Econômica pela Università Degli Studi de Roma Tre e professor titular da Pontifícia Universidade Católica, lembra que o governo Lula herdou uma dívida de R$ 141,7 bilhões com precatórios, conforme dados atualizados pelo Tesouro Nacional, com levantamento até dezembro de 2022. Foi um aumento de 41,3% em relação a 2021, quando eram R$ 101 bilhões. “O Brasil tem tido uma trajetória de déficits de precatórios sempre crescente. Para resolver isso, os precatórios precisam ser pagos a medida que essa obrigação vai sendo colocada e não empurrando com a barriga. Ou seja, se você tiver uma queda, você demonstra que está havendo uma solução estrutural do problema”, diz.

Precatórios são requisições de pagamento expedidas pelo Judiciário para cobrar valores devidos por governos federal, estadual ou municipal a pessoas físicas ou jurídicas, após sentença definitiva (transitada em julgado). Eles representam dívidas que o Estado é obrigado a pagar após perder um processo judicial e podem resultar de ações relacionadas a indenizações, desapropriações, salários de servidores públicos, benefícios previdenciários, entre outros.

Para dar o calote, Bolsonaro limitou o montante a ser desembolsado para cumprir as decisões judiciais que resultaram nos precatórios por meio de uma Proposta de Emenda à Constituição. Em 2021, em um cenário de ajustes de contas e uma economia ainda travada na recuperação, o governo fez a manobra da PEC dos Precatórios e deixou de pagar R$ 22 bilhões, o que levou a um aumento do estoque da dívida, tendo em vista que foi estabelecidos limites para o pagamento dos precatórios.
O pagamento dos precatórios atrasados, segundo o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, resultou no déficit das contas públicas em 2023. O resultado negativo de R$ 230,54 bilhões, só foi menor que em 2020, quando o resultado negativo atingiu R$ 743,23 bilhões. Segundo o Tesouro Nacional, sem o pagamento dos precatórios, as contas do Governo Central – Tesouro Nacional, Previdência Social e Banco Central – teriam fechado o ano passado com resultado negativo de R$ 138,1 bilhões, equivalente a 1,3% do Produto Interno Bruto (PIB, soma dos bens e dos serviços produzidos no país).
Despesas contratadas e não pagas
Professor de economia na Universidade Federal de Goiás (UFG), Everton Rosa aponta que foram “adotados procedimentos para gerar números positivos a despeito das promessas de superávit no primeiro ano”, enquanto no final da gestão foram deixadas contas a pagar para o governo seguinte, entre eles os precatórios, além da elevação dos Restos a Pagar que subiram de R$ 22 para R$ 250 bilhões. “Para fazer o superávit, portanto, não foram executadas as despesas que deveriam ser executadas. Elas não foram contabilizadas e isso quer dizer que do ponto de vista do indicador você conseguiu o superávit naquele momento, mas ao custo do déficit maior para o governo seguinte”, aponta.

“Você teve a chamada PEC Kamikase que criou uma série de despesas bilionárias no ano eleitoral, entre elas o aumento do Auxílio Brasil, auxílio caminhoneiro e as mudanças nas regras do ICMS sobre os combustíveis”, reforça. Rosa explica que apesar da aparência de superávit, quando há uma desoneração, como foi feita sobre o ICMS, o problema é jogado para frente, ou seja, para o próximo governo. “Acaba virando uma série de aumento de despesas obrigatórias que vão ser cobradas pelos governos estaduais mais na frente”, diz.
Em restos a pagar, o governo Bolsonaro deixou mais de R$ 255 bilhões em despesas contratadas e não pagas para 2023. Os chamados (RAPs) são os valores transferidos de um ano para outro e se transformam em um orçamento paralelo, competindo por espaços com novos gastos. O Tesouro Nacional já bloqueou mais de R$ 33,7 bilhões de RAPs deixados pelo governo passado após a avaliação da necessidade de manutenção dos gastos.
Acúmulo
Os Restos a Pagar (RAPs) acumulados para este ano registraram um aumento de R$ 21,6 bilhões em relação ao ano anterior. Entre 2021 e 2022, o volume totalizou R$ 233,6 bilhões. Esse crescimento expressivo foi impulsionado pela liberação, nos últimos dias do governo Bolsonaro, de R$ 20 bilhões em crédito orçamentário para novas despesas. Como não houve tempo hábil para a execução desses recursos, eles foram transferidos para 2023, ampliando o Orçamento do ano seguinte.
A autorização para esses novos créditos, concedida no fim de 2022, só foi possível devido à Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Transição, articulada pelo governo Lula junto ao Congresso. A PEC permitiu um gasto extra de R$ 23 bilhões fora do teto de gastos ainda naquele ano e também viabilizou o empenho das chamadas emendas de relator – conhecidas como orçamento secreto –, mecanismo revelado pelo Estadão, utilizado para distribuir verbas a parlamentares em troca de apoio político.
Em 2018, Mansueto Almeida, então secretário do Tesouro, implementou uma regra determinando o cancelamento dos RAPs após três anos, o que inicialmente reduziu o estoque dessas despesas. No entanto, o volume voltou a crescer durante a pandemia de covid-19, quando o governo ampliou os gastos por meio do chamado “orçamento de guerra”.
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