Deixados de fora do último do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) de 2022, o número de pessoas em situação de rua em Goiânia é praticamente desconhecido. O impacto da pandemia de Covid-19 provocou um aumento significativo no quadro social de indivíduos espalhados por praças e marquises da Capital.

Algumas regiões da cidade concentram um maior número de pessoas nessa situação. Nas proximidades da Avenida Independência e Rodoviária de Goiânia, por exemplo, aos montes, eles se reúnem em torno de pontos de distribuição de alimentos ou de alguns poucos banheiros públicos para sanar as necessidades fisiológicas ou se higienizar.

Barracas improvidas com lonas, tecidos e sacos de lixo servem de abrigo para moradores do Centro | Foto: Leoiran/Jornal Opção

No Centro de Goiânia, com as obras do BRT ainda em curso, essas pessoas tomaram conta do canteiro central, onde fazem casas com lonas, papelão e outros itens que não teriam serventia para mais ninguém. É a região com o maior número dos que sobrevivem em situação de rua, seja com a ajuda de trabalhos sociais, que oferecem de alimentação e abrigo temporário, ou através de pequenos furtos e esmolas.

O último levantamento, feito em 2020 pelo Instituto Mauro Borges (IMB) através dos dados do CadÚnico, traz um número aproximado: a pesquisa revela que essa população em Goiás é estimada em mais de 2,5 mil pessoas. Em sua maioria homens adultos, negros, com escolaridade incompleta e vindos de outros Estados. Além do desemprego, o principal motivo para a condição são os problemas familiares e o envolvimento com drogas e/ou álcool.

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Perdas levam às ruas

“Não tô bem, não tô nada bem. Eu não sou disso aqui, eu não sou da rua”, diz Ricardo Alves, que convive na região da Praça do Trabalhador há alguns meses. Seu “descontrole” começou após a morte da mãe, há cerca de dois anos. Hoje, aos 45, o pernambucano conta que antes de Goiânia, passou por algumas cidades mineiras, onde também morou ‘na rua’.

Ricardo saiu de Pernambuco no final dos anos 90 para trabalhar no Rio de Janeiro. De uma beira de praia à outra, ele se casou, teve uma filha, perdeu o pai e trabalhou como garçom e auxiliar de cozinha. “Meu pai tinha um bar, então eu já tava acostumado com o trabalho”, conta. A mãe, que segundo ele, era o ponto de equilíbrio e que o “controlava” de onde quer que estivesse, alertava: “Não beba, meu filho. Não use droga”, lembra.

Ricardo Alves tem passado os dias nas proximidades da Praça do Trabalhador | Foto: Raphael Bezerra/Jornal Opção

O conselho da mãe, segundo ele, foi seguido quase à risca ao longo da sua caminhada. Mas, abalado pela perda, Ricardo não resistiu e se entregou ao álcool. Desde então, segue a vida sem muita esperança. Ao ser abordado pela reportagem, sentado sob a sombra de uma das palmeiras reais que restaram num dos pontos mais famosos de Goiânia, o homem se derramou em lágrimas e contou os arrependimentos por não ter dado ouvido aos conselhos de mãe.

“Ordem de mãe é lei. Quem desobedece acaba assim”.

Forças para trabalhar

Ricardo é um homem negro, provavelmente com mais de um metro e setenta. Ele exibe três cicatrizes nos ombros, perceptíveis pelas através das alças de uma camisa regata e diz que, apesar das marcas, ainda é capaz de trabalhar. “A gente até acha trabalho e as pessoas confiam. Mas não tenho conseguido fazer nada por causa da bebida, é sem-vergonhice mesmo”, diz.

Ainda que a vida nas ruas seja repleta de violência, drogas e tentação, ao ser questionado sobre seus medos, Ricardo diz não saber o que é isso. “Violência é o que mais tem, isso e droga. Eu nunca fumei droga na vida, nem cigarro. Mas aqui na rua é o que tem”.

Ainda que não tivesse nada além de uma mochila, as roupas do corpo e um corote de pinga com 500ml, há cerca de semanas suas roupas, documentos e a mochila foram roubadas. “Ou eu perdi, não sei. Como não vi, não posso dizer ao certo, mas eu fui dormi com ela e quando dei por mim não tinha mais”, lembra.

Num calor de cerca de 35º de Goiânia, o homem usava as mesmas peças de roupa há 15 dias. Durante uma hora de conversa, ele repetiu, por muitas vezes com os olhos marejados, o arrependimento pela desobediência à mãe. Quase como um mantra, sempre que contava como era “viver” naquelas condições, ele lembra da mãe e da família em Pernambuco.

Apesar do desejo de voltar para casa e da oportunidade de receber abrigo pela irmã mais nova, Ricardo não se sente a vontade para dar esse passo.

“A rua vicia”, conta moradora

Rebeca Teixeira, 30 anos, veio de uma família evangélica. Casou-se aos 16 anos e abandonou os estudos. Da relação que durou por mais de 10 anos, ela teve uma filha, hoje com 13. Ela conta que passou a viver em situação de rua após iniciar um relacionamento com um morador e usuário. Ele, viciado em drogas e álcool, “ensinou” a mulher a ter apreço pela falta de um teto e de responsabilidades. “A rua vicia, tem a questão da dificuldade, tem. Mas você não tem o compromisso de todo mês pagar aluguel, água, energia, isso te deixa mais aliviada”, conta.

O ‘amor’ que a levou às ruas quase tirou sua vida em diversos momentos de surtos de ciúmes ou enlouquecido pelo abuso das drogas. Rebeca, cuja filha mora com o pai, revela que o relacionamento começou há cerca de dois anos e que nem viu quando estava estava morando na rua com o namorado.

“Ele mora na rua. Eu morava perto da minha família em Campinas. Ele usa drogas. Eu não sei o que me levou para as ruas.”

Rebeca explica que apesar de ter abrigo, e de não ter se envolvido com drogas ou bebidas alcóolicas, não se arrepende de ter saído de casa.

O gênio forte, o convívio difícil com a madrasta e os três irmãos fazem com que ela não consiga “ficar dentro de casa”.

Estupro, violência e ameaças

Nesses dois anos de vivência perambulando por ruas e praças da cidade, Rebeca viu e foi vítima de violência e abusos. Uma noite, enquanto dormia no Lago das Rosas, dois homens se aproximaram e forçaram sexo com ela. “Veio um noiado e como eu tava um dia sem dormir eu apaguei. Ele chegou com uma faca e falou que se eu não ficasse com ele, ele ia me matar. Ele fez sexo comigo sem eu querer duas vezes. Foi um trauma muito grande, eu peguei gonorreia e sífilis dele e fiz o tratamento depois com antibiótico”, conta.

As violências também são cometidas pelo homem com quem ainda se relaciona. Ela lembra que durante um dos muitos surtos do homem, ele a agrediu com um soco e seguiu com ameaças de morte. “Vou te matar, sua vagabunda”, lembra.

Acolhimento multiprofissional

Para o gerente da gerência especializada em população em situação de rua da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Humano e Social, Marcos Prado, a série de fatores que influencia no desamparo exige um atendimento multidisciplinar. Prado revela que os desarranjos familiares são substanciais para que a situação ocorra. “O filho se envolve em algum delito, ainda que pequeno, e o pai expulsa de casa dizendo que não criou filho bandido. Ou a filha que começou a namorar e engravidou ou até mesmo a orientação sexual são muitas vezes fatores que motivam essa desavença”, conta.

O coordenador explica que Goiânia conta com o CentroPop que funciona de segunda a sexta-feira, das 7h às 16h, e oferece café da manhã, almoço e banho para os moradores em situação de rua. “Ele recebe ainda um kit de higiene, tem a liberdade de escolher uma roupa para se vestir, além de receber atendimento psicossocial”, relata.

Porém, um dos motivos relatados por Prado para a permanência dessas pessoas nas ruas é a dificuldade ou resistência em seguir regras, sejam elas impostas dentro de casa ou nos abrigos e casas de acolhidas. “Na casa de acolhida tem que ter uma organização, ele não pode chegar drogado, alcoolizado, nem comercializar. Eles não querem seguir essas regras”, argumenta.

De acordo com o coordenador, o último levantamento em Goiânia apontou que cerca de 380 vivem e permanecem nas ruas. Ele explica que é preciso fazer uma separação entre pessoas que vivem das ruas e quem está temporariamente vivendo nas ruas. “Temos, por exemplo, pessoas que pedem nos sinaleiros, vendem balas, limpam para-brisas, mas que voltam para casa com o anoitecer. Mas temos também também pessoas que decidiram permanecer assim”, conclui.

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