Especialistas goianos comentam decisão do STF que prevê responsabilização judicial da imprensa por entrevistas

01 dezembro 2023 às 17h17

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Uma ala do Supremo Tribunal Federal (STF) defende a necessidade de restringir a abrangência da decisão proferida pela própria Corte, que estabelece a possibilidade de responsabilização judicial de órgãos de imprensa por entrevistas.
Isso porque, na sessão de quarta-feira, 29, a Corte deliberou que os meios de comunicação podem ser responsabilizados civilmente quando publicam entrevistas que atribuem de maneira falsa crimes a terceiros, desde que haja indícios concretos de falsidade nas declarações.
“A plena proteção constitucional à liberdade de imprensa é consagrada pelo binômio liberdade com responsabilidade, vedada qualquer espécie de censura prévia, porém admitindo a possibilidade posterior de análise e responsabilização”, diz o texto aprovado.
“Na hipótese de publicação de entrevista em que o entrevistado imputa falsamente prática de crime a terceiro, a empresa jornalística somente poderá ser responsabilizada civilmente se: (i) à época da divulgação, havia indícios concretos da falsidade da imputação; e (ii) o veículo deixou de observar o dever de cuidado na verificação da veracidade dos fatos”, consta na tese do STF.
Em entrevista ao Jornal Opção, o jornalista e advogado Valério Luiz Filho membro do Observatório Nacional de Violência contra Jornalistas do Ministério da Justiça, diz que a decisão só faz sentido se for comprovado o dolo do veículo de imprensa, ou seja, se a informação é flagrantemente falsa e o veículo de imprensa publicou próximo do que seria como uma linha editorial do veículo.
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“É uma decisão complicada, porque existem muitas situações que precisam ser minuciadas e eu entendo que não tem como você responsabilizar o veículo. Por exemplo, entrevista em período eleitoral, em que é muito comum os candidatos se acusarem uns aos outros, falarem coisas uns dos outros, que é não seria obrigação do veículo de imprensa verificar procedência de todas as informações, e ainda por cima ele estaria influindo na equivalência de disputa entre os candidatos”, explicou.
Para o jurista, o veículo de imprensa não pode fazer esse julgamento por si só, no que diz respeito a candidato no período eleitoral, por exemplo.
“Se um candidato falou uma inverdade, o outro tem que entrar com pedido de resposta. Então, a imprensa não poderia fazer esse juízo. É impossível você responsabilizar os veículos de imprensa em entrevistas nessas condições”, argumenta.
Já para o advogado criminalista Gilles Gomes, “a decisão do STF não inova na medida em que reafirma que o ‘compromisso fundamental do jornalista é com a verdade no relato dos fatos, razão pela qual ele deve pautar seu trabalho pela precisa apuração e pela sua correta divulgação’, conforme disposição expressa contida no Código de Ética do Jornalismo.”
“Também no que alude à observância ao dever de cuidado, a decisão reproduz a regra segundo a qual cabe a todo aquele que der causa a dano a direito alheio, reparar esse dano, desde que comprovada a causalidade entre a ação ou a omissão e o dano”, completa.
Tese
A tese, elaborada pelo ministro Alexandre de Moraes, sofreu alterações propostas pelos ministros Luís Roberto Barroso, Cármen Lúcia e Cristiano Zanin. Em uma entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, o ministro Gilmar Mendes indicou que essa decisão do STF poderá passar por ajustes.
“Se houver erros fáticos ou provas que, de fato, a tese está a dizer algo para além de determinados juízos, se pode fazer algo.”
Existe a expectativa no tribunal de que associações de empresas jornalísticas apresentem recursos, possibilitando que os ministros esclareçam o entendimento do Supremo. Um grupo de ministros trabalha para reduzir a margem de punição de jornais e emissoras de TV em instâncias inferiores.
Uma possível área de ajuste, segundo membros do STF em conversas reservadas, é a falta de explicação sobre a extensão da decisão. Uma ideia em discussão é deixar claro que entrevistas ao vivo, por exemplo, não estão abrangidas pela tese aprovada pelo tribunal.
A compreensão é que o caso em questão refere-se a uma publicação em jornal impresso, implicando que a tese só deveria ser aplicada a um produto semelhante, excluindo programas televisivos ao vivo.
Dado o reconhecimento da repercussão geral da ação julgada, a decisão do STF precisa ser seguida por todo o Judiciário em litígios semelhantes. Assim, parte dos ministros entende que seria apropriado esclarecer que entrevistas ao vivo não estão sujeitas ao entendimento estabelecido.
“Na entrevista ao vivo não tem como saber o que o entrevistado vai falar. Então, nesse caso, por exemplo, uma entrevista ao vivo, seria impossível se responsabilizar o veículo. Não vejo possibilidade e nem acho que seria positivo responsabilizar o veículo de comunicação, ainda que o conteúdo da entrevista não fosse verdadeiro quanto aos fatos”, defende Valério Luiz.

“Indícios concretos de falsidade”
Outro ponto que tem gerado controvérsia nos bastidores é a interpretação da expressão “indícios concretos de falsidade da imputação”, presente na tese do STF.
Pelo menos três ministros do Supremo, ouvidos de maneira confidencial pela Folha, argumentam que seria mais apropriado esclarecer o significado dos “indícios” mencionados, a fim de reduzir a possibilidade de punição aos meios de comunicação.
Nesse contexto, a avaliação é de que será necessário realizar negociações adicionais nos bastidores para que os ministros alcancem um consenso sobre a redação mais apropriada para aprofundar esse trecho da tese.
A previsão é que esses ajustes somente ocorram no próximo ano. Após a decisão da última quarta-feira, o tribunal tem um prazo de 60 dias para a publicação do acórdão do julgamento, sendo que o recesso não é contabilizado nesse período.
“Eu considero impossível você estabelecer hipóteses assim como conseguir prever todas as ocasiões. Então, indícios claro de falsidade, penso que poderia ser colocado se há algum prejuízo à honra objetiva de outras pessoas. Por exemplo, você imputa fatos claramente falsos sobre uma terceira pessoa, fatos que são facilmente verificáveis pelo veículo de comunicação e isso é veiculado. Mas, é a única hipótese que eu consigo ver”, afirmou.
Após essa etapa, os envolvidos apresentam os chamados embargos de declaração, um recurso utilizado para esclarecer pontos da decisão. Posteriormente, o tribunal terá que revisitar o tema. Nos bastidores, os ministros destacam que a tese não deve ser aplicada nas instâncias inferiores antes da publicação do acórdão, o que diminui a pressa para definir a decisão.
Para aplacar as críticas, os magistrados também têm enfatizado em conversas privadas que uma parte do tribunal se esforçou para evitar uma decisão ainda mais desfavorável para a imprensa. O então relator do caso, Marco Aurélio, votou contra qualquer possibilidade de punição à imprensa pouco antes de se aposentar.
O ministro Alexandre de Moraes, por sua vez, pediu vista e apresentou uma tese amplamente criticada por entidades que representam empresas jornalísticas. Ele propôs um entendimento mais abrangente, que previa a “possibilidade posterior de análise e responsabilização por informações comprovadamente injuriosas, difamantes, caluniosas, mentirosas”.
Diante das preocupações expressas por entidades de classe, Luís Roberto Barroso, atual presidente do tribunal, articulou internamente uma tese alternativa para evitar possíveis casos de censura. No final, Moraes aderiu à sugestão de Barroso e concordou com a tese aprovada em plenário, ainda que moderada, gerando, no entanto, manifestações de preocupação por parte da imprensa.
Bastidores
Nos bastidores, os magistrados frequentemente destacam o papel desempenhado pelo STF na preservação da liberdade de imprensa. A corte possui uma jurisprudência robusta contra a censura, unanimemente seguida pelos membros do tribunal, independentemente de suas filiações.
Um exemplo é o ministro André Mendonça, indicado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que, durante as eleições do ano passado, revogou uma decisão que censurava reportagens sobre a aquisição de imóveis pela família do ex-mandatário.
Já Barroso, em resposta à decisão do STF, rejeitou qualquer possibilidade de censura, enfatizando a importância da liberdade de expressão para a democracia.
“Não existindo censura em qualquer hipótese, toda e qualquer pessoa, inclusive pessoa jurídica, pode eventualmente ser responsabilizada por comportamento doloso por má-fé ou por grave negligência”, destacou.
O presidente do STF reiterou a proibição explícita de qualquer forma de censura prévia. “A imprensa é um dos alicerces da democracia e tem aqui no Supremo um dos seus principais guardiões. Nós temos dezenas de reclamações acolhidas para assegurar a liberdade de imprensa e a liberdade de expressão.”
Ainda segundo Valério Luiz, mesmo que uma pessoa dê uma entrevista mentindo, o fato do entrevistado mentir também é uma informação.
“Por exemplo, você pode pegar uma entrevista da pessoa, olhar e você fala que a pessoa é uma mentirosa. Você publicar informações, mesmo que informações inverídicas, mas que estão sendo atribuídas a uma determinada pessoa, isso é uma informação sobre essa pessoa, sobre o que ela pensa”, explicou.
Na opinião de Gilles Gomes, é preciso um diálogo institucional com o Congresso Nacional. “Estimo que a decisão, que ainda pode ser modulada sobre seu alcance, é uma medida de diálogo institucional com o congresso nacional com o objetivo de buscar-se um tratamento adequado sobre a divulgação de desinformação ou fakenews.”

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