Mulheres no agro: ‘Temos que provar mais que os homens a nossa capacidade’

08 março 2025 às 16h55

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No Dia Internacional da Mulher, celebrado em 8 de março, o Jornal Opção mergulhou na trajetória de três mulheres que estão redefinindo o papel feminino no agronegócio de Goiás. Ângela Maria Sebastiani van Lieshout, Fabíola Magalhães e Lia Helena Katzer representam um movimento crescente de mulheres que, longe de serem coadjuvantes, assumem posições de liderança, administram propriedades e influenciam decisões estratégicas em um setor historicamente dominado por homens.
A presença da mulher no agronegócio não é novidade — ela sempre existiu, mesmo que, por muito tempo, tenha permanecido invisibilizada. No Censo Agropecuário de 1980, por exemplo, 88% das mulheres rurais foram declaradas como ‘membros não remunerados da família’, mesmo exercendo funções fundamentais para a sobrevivência da produção agrícola. Hoje, no entanto, esse cenário vem se transformando.
Essa transformação, embora recente, é resultado de décadas de luta por reconhecimento. O trabalho rural feminino, por muito tempo desvalorizado, era visto como uma extensão das tarefas domésticas e, muitas vezes, classificado como “não trabalho” pelas ciências econômicas. Ainda assim, mesmo diante de obstáculos históricos, as mulheres seguiram ocupando todos os espaços do setor.
Segundo o Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea), em parceria com a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), cerca de 11 milhões de mulheres atuam hoje no agronegócio brasileiro. De acordo com levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), elas administram 30 milhões de hectares — o equivalente a 8,5% de toda a área ocupada por sítios e fazendas no país.
Além da atuação no campo, a luta por direitos também foi decisiva para ampliar a presença feminina no agro. Por muitos anos, o acesso à previdência social era um direito concedido apenas ao “chefe” ou “arrimo de família”, geralmente o homem. Mulheres casadas perdiam direitos, e as que tinham carteira assinada recebiam benefícios inferiores. Essa realidade começou a mudar a partir de 1963, com o Estatuto do Trabalhador Rural e o Funrural, mas apenas com a Constituição Federal de 1988 veio o reconhecimento oficial da categoria “produtoras rurais”.
A partir desse marco legal, foram assegurados direitos como a aposentadoria por idade aos 55 anos e a licença maternidade remunerada. Ainda assim, a equiparação das condições só foi consolidada com as Leis nº 8.212/1991 e nº 8.213/1991, e a ampliação do benefício por acidente de trabalho em 1992 e do salário maternidade em 1994. O protagonismo conquistado nos últimos 40 anos não apenas alterou a estrutura interna das propriedades como também influenciou diretamente políticas públicas e iniciativas coletivas voltadas à valorização da mulher rural.
Em Goiás, estado onde o agronegócio movimenta bilhões anualmente, essa transformação se torna cada vez mais visível. As três entrevistadas desta reportagem representam com firmeza esse novo agro: elas são formadas, experientes e engajadas em causas que ultrapassam os limites de suas propriedades.
Ângela Sebastiani destaca avanços e desafios das mulheres no setor
Ângela Maria Sebastiani van Lieshout, de 52 anos, é presidente da Comissão das Produtoras Rurais da Federação da Agricultura e Pecuária de Goiás (FAEG) e um exemplo emblemático dessa transformação. Em entrevista ao Jornal Opção, ela destacou a crescente participação feminina no setor. “Eu vejo uma mudança muito rápida. As mulheres estão mais presentes não apenas no escritório, mas também na operação, no campo, na ‘bota suja’, como costumamos dizer”, afirmou.

“Eu vejo uma crescente das mulheres dentro do agronegócio. A gente percebe isso porque, além de presidente da Comissão das Mulheres, atuo diretamente na fazenda. Sou responsável pelo departamento financeiro do nosso grupo, e vejo cada vez mais mulheres se envolvendo ativamente no trabalho rural”, afirmou.
Ângela ressaltou que o trabalho das mulheres no agronegócio não se deve a cotas ou políticas de diversidade, mas à competência e à capacidade de liderança. “Estamos ocupando espaços porque provamos nossa capacidade. Temos que provar mais que os homens nossa capacidade. Não é uma questão de gênero, mas de mérito”, disse. Ela também destacou a importância de despertar nas mulheres a consciência de seu papel como produtoras rurais.
O papel da FAEG Mulher
A Comissão das Produtoras Rurais da FAEG tem desenvolvido iniciativas para fortalecer o papel das mulheres no campo. Um dos principais projetos é a criação de comissões femininas dentro de cada sindicato rural do estado.

“Nosso objetivo é estreitar o caminho entre a federação e as produtoras. Com comissões femininas nos sindicatos, conseguimos capacitar e empoderar mais mulheres, tornando-as ainda mais atuantes dentro do agronegócio”, explicou.
Além disso, há um foco especial na sucessão familiar, para que mais mulheres assumam gestão e liderança das propriedades rurais. “Muitas mulheres ainda dizem que não são produtoras porque seus maridos estão à frente dos negócios. Queremos mudar essa mentalidade, pois elas têm responsabilidades e direitos iguais”.
Projetos voltados à comunidade
Desde 2021, quando passou a atuar diretamente na fazenda da família, Ângela iniciou uma série de ações para fortalecer a comunidade local. Um dos projetos mais impactantes é o “Dia das Mulheres na Fazenda”.
“No primeiro evento, tivemos 57 mulheres. No ano seguinte, 180. Agora, em 2025, esperamos 250 participantes. A ideia é proporcionar um dia de acolhimento, onde elas possam conhecer melhor a realidade do campo e também cuidar do seu bem-estar, com serviços como corte de cabelo, manicure e maquiagem”, detalhou.
Outro avanço importante foi a implantação do projeto “Segurança da Mulher no Campo”, criado em parceria com o Batalhão Maria da Penha e o Batalhão Rural. A iniciativa busca prevenir a violência doméstica e ampliar a proteção às mulheres no meio rural.
“Sabemos que a violência contra a mulher é um problema que atinge vários setores da sociedade. No campo, muitas mulheres vivem em locais isolados e não sabem como denunciar abusos. Esse projeto leva informação e cria uma rede de proteção, facilitando o acesso a ajuda”, explicou Ângela.
A trajetória de Fabíola Magalhães
Fabíola Magalhães, advogada e produtora rural, é outra voz importante no agronegócio goiano. Coordenadora do Comitê Elas pela Credi, da Credi-Rural, e membro da Comissão Feminina do Sindicato Rural de Rio Verde, ela começou sua trajetória há 10 anos, sem nenhum conhecimento prévio sobre o setor. “Eu mudei para Rio Verde e comecei a auxiliar a família do meu esposo na gestão de uma propriedade rural. Eu não tinha conhecimento sobre pecuária ou agricultura, era totalmente crua. Tive que me capacitar para superar os desafios”, contou.
Para superar os desafios iniciais, Fabíola buscou capacitação. “Me calei, ouvi e decidi me preparar. Fiz diversos treinamentos em gestão, produção de leite, pecuária de precisão e agricultura de precisão. Também procurei a cooperativa, pois meu esposo já era cooperado, e ela me ajudou na questão de negociação de valores e produtos, além de oferecer capacitação”, contou.

Hoje, Fabíola atua como gerente administrativa na propriedade da família do esposo e é proprietária de gado de corte. “Eu e meu esposo temos nossa própria produção, e também administro a propriedade dos meus sogros, que trabalham com agricultura e pecuária de leite e corte”.
Ela também destaca que o agronegócio funciona de maneira diferente de outros setores. “Não competimos com o vizinho, e sim o apoiamos. Quando um cresce, o outro cresce junto. Há uma irmandade muito grande”. Como exemplo, Fabíola citou um episódio em que precisou da ajuda de um vizinho. “Tínhamos três tratores, e todos estragaram ao mesmo tempo. Liguei para meu vizinho e, sem hesitar, ele enviou um funcionário com a máquina dele para nos ajudar”.
Barreiras e conquista de espaço
Apesar do avanço feminino no setor, a resistência inicial ainda é uma realidade. “No começo, quando eu ia negociar, ouvia: ‘Quero falar com o proprietário’. Respondia: ‘Se for sobre gado de corte, sou proprietária e posso tratar disso'”, contou. No entanto, com o tempo, a presença feminina foi sendo reconhecida. “Os fornecedores começaram a perceber que a mulher tem poder de decisão porque ela estuda, pesquisa o que precisa comprar e negocia prazos e valores”.
Para Fabíola, as mulheres trazem características essenciais para o agronegócio. “Nós somos mais resilientes e empáticas. Temos um olhar mais amplo, o que faz toda a diferença. O homem é focado em um ponto específico, enquanto a mulher consegue ver o todo”, afirmou. Ela também defende a necessidade de políticas públicas e privadas que incentivem a inclusão feminina no setor. “Precisamos eleger representantes que entendam nossa realidade e nos defendam”.
Como conselho para outras mulheres que desejam ingressar no agronegócio, ela é direta: “Capacite-se. Descubra seu potencial e suas habilidades. Quando você tem conhecimento, tem condições de se posicionar e conquistar seu espaço”.
Lia Helena Katzer: “O agronegócio não tem gênero”
Lia Helena Katzer, de 51 anos, é produtora rural de Jataí e representa a quarta geração de sua família no agronegócio. Veterinária por formação, ela acredita que a capacitação e a tecnologia têm sido fundamentais para a inserção das mulheres no campo.

“Sempre fui de uma família que acolheu muitas mulheres, nunca houve extinção na minha família. Meu pai me chamou e falou: ‘você vai trabalhar comigo, você vai ser minha funcionária na fazenda’. Eu nunca me senti discriminada e, na verdade, sempre fui bem aceita. Competia para cargos e era aprovada, muitas vezes no lugar de homens”, relatou.
O impacto da tecnologia no campo
Segundo Lia, a modernização do agronegócio abriu caminho para que mais mulheres ocupem espaços operacionais na gestão das fazendas. “A vinda da tecnologia permitiu que a mulher consiga trabalhar o operacional da fazenda. Hoje, podemos pilotar tratores, colheitadeiras e maquinários em geral, pois agora eles têm conforto. Não é mais aquela época em que tudo era poeira e trabalho braçal”, explicou.
Ela destaca que o verdadeiro obstáculo para muitas mulheres no agronegócio está dentro das próprias famílias. “Não é a sociedade que rejeita a mulher no agronegócio. Muitas vezes, o próprio pai ou marido não permite sua participação. O que precisamos é buscar competência e conquistar o espaço através da nossa capacidade”, pontuou.
O preço da dedicação ao agronegócio
A produtora rural também destacou os desafios enfrentados pelas mulheres que decidem seguir carreira no setor. “As fazendas são distantes da cidade. Muitas vezes, temos que abrir mão de uma academia, de uma manicure, porque passamos o dia todo na fazenda. Mas isso não significa abrir mão da vaidade, apenas adaptar-se aos horários”, observou.
Para Lia, muitas mulheres estão no agronegócio por serem herdeiras, mas nem todas assumem a gestão dos negócios. “Eu coordeno a fazenda, administro e planejo tudo. Mas minha irmã, por exemplo, prefere cuidar das questões burocráticas, e está tudo certo. Cada um tem que encontrar seu papel”, afirmou.
Ela ressaltou que a presença feminina no setor vem crescendo, mas com limitações em algumas áreas. “A tecnologia abriu muitas portas, mas há serviços que as mulheres não querem, como mecânica e manutenção pesada. Isso é uma escolha, e não um problema”, destacou.
Com mais de 15 anos de experiência no setor, Lia reforça que a diferença entre homens e mulheres no mercado está na capacitação. “O agronegócio não tem gênero. Ele exige pessoas com garra e conhecimento. Sempre que competi por uma vaga, fui escolhida porque minha capacitação era melhor. Era um jogo de saber, de metodologia, não de força física”, pontuou.
Ela também aconselha as mulheres a definirem qual área desejam seguir dentro do agronegócio. “Elas precisam escolher entre agronomia, gestão, sustentabilidade ou outra área. Depois disso, buscar conhecimento e cativar seu espaço com comunicação e competência”, disse.
Por fim, deixou um recado para o Dia Internacional da Mulher, celebrado em 8 de março: “Se você quer estar no agronegócio, capacite-se. Se quer estar em cima de um trator, aprenda a pilotar. Se quer coordenar equipes, desenvolva essa habilidade. Seja aquilo que você der conta de ser. Se for uma excelente mãe ou esposa, parabéns. Se for uma produtora rural de sucesso, parabéns também. O importante é se preparar para o que deseja ser”.
As histórias de Ângela, Fabíola e Lia ilustram um movimento irreversível no agronegócio brasileiro. Apesar dos desafios, as mulheres estão conquistando espaços, inovando e transformando o setor. A tecnologia, a capacitação e as redes de apoio são ferramentas nessa jornada e a tendência é que a participação feminina no agronegócio continue crescendo, transformando o setor e garantindo um futuro mais inclusivo e equitativo.
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