“Questão de saúde pública”: Goiás realizou 23 abortos legais em 2024

17 junho 2024 às 16h27

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Informações da Secretaria Estadual de Saúde (SES) mostram que o estado de Goiás realizou, até maio deste ano, 23 interrupções legais de gestações. Destes casos, 19 se deram devido à gestação oriunda de violências sexuais e quatro por diagnóstico de anencefalia fetal. Vale ressaltar que o único estabelecimento em Goiás autorizado a realizar interrupções legais de gestações é o Hospital Estadual da Mulher (Hemu).
Na unidade, vinculada ao Sistema Único de Saúde (SUS), existe um ambulatório de Atendimento à Vítimas de Violência Sexual que fornece atendimento e acompanhamento multidisciplinar para essas mulheres, incluindo psicólogos. Até maio deste ano, foram 1.324 atendimentos realizados pela equipe do Hemu, dos quais resultaram em 23 abortos legais. Em nota, o Hemu disse que “o ambulatório se destaca por seguir as normativas que estabelecem a realização de Interrupção Legal da Gravidez (ILG) anteriormente às 22 semanas de gestação”.
Em entrevista ao Jornal Opção, o ginecologista obstetra e ex-titular do ambulatório de Apoio às Vítimas de Violência Sexual do Hemu, José Ricardo Lopes, reforça que “no estado de Goiás, nós só realizamos interrupções abaixo de 22 semanas”. O especialista afirma que os critérios para definição do aborto legal são estipulados pela lei, e não pelas diretrizes de cada hospital. Nesse sentido, só se realizam interrupções legais de gravidez em três casos: anencefalia fetal comprovada por dois médicos diferentes (e em momentos diferentes da gestação), risco à vida da gestante e casos de gravidez oriundas de estupro.
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Projeto que equipara aborto a homicídio também penaliza vítimas de estupro
O Hemu explica que os atendimentos às vítimas de violência sexual “incluem exames físicos, anticoncepção de emergência, profilaxia de doenças sexualmente transmitidas, atendimento psicológico e orientações legais”. No ano passado, foram realizados no ambulatório 3.857 atendimentos, dos quais 44 levaram à interrupção legal das gestações antes da 22° semana de gravidez. Qualquer interrupção legal em Goiás após esse período, deve acontecer via determinação judicial.
Após a 22° semana
Quando questionado sobre os motivos que levam as pacientes a procurarem o sistema de saúde após a 22° semana de gestação, o ginecologista obstetra afirma que a desinformação é um dos principais motivos. A maioria das pacientes que buscam o atendimento de forma tardia, segundo afirma o especialista, são meninas e adolescentes vítimas de violência. “É difícil para essa criança, muitas das vezes, identificar que foi vítima de uma violência sexual”, explicou.
Ciclos menstruais irregulares, descrença por parte dos familiares quando a criança denuncia a violência e educação sexual inexistente (o que impossibilita as crianças lerem os sinais do próprio corpo) podem atrasar o diagnóstico da gravidez. “Essa violência vem geralmente de um familiar ou conhecido da família”, elencou outro ponto que pode dificultar qualquer tratamento à vítima.
PL 1904/24
José Ricardo comenta o projeto de lei em tramitação no Congresso Nacional, o PL 1904/24, que prevê igualar abortos após a 22° semana de gestação ao crime de homicídio, mesmo em casos de gravidez oriunda de estupro. Após destacar que a maioria dos casos de aborto legal no país acontecem antes da 22° semana, o especialista diz que “se esse PL fosse votado, aprovado e sancionado, ele estaria condenando essas crianças a uma gestação, com 11, 12 anos”.
Na perspectiva do ginecologista, a forma como essa discussão surgiu dentro do Congresso Nacional foi equivocada, evitando as comissões de Constituição e Justiça e de Defesa dos Direitos da Mulher. O médico afirma que a discussão surgiu com caráter político, religioso e eleitoreiro. “O aspecto de saúde pública foi deixado de lado, e a questão do aborto é uma questão de saúde pública”, declarou.
Quando questionado sobre a intenção do PL de também aumentar a pena para profissionais de saúde que realizam os procedimentos, o ginecologista é categórico ao afirmar: “Criminalizar a ação do médico é interferir na saúde pública, interferir na profissão e interferir no corpo feminino”.
Procedimento
Todo procedimento legal de interrupção de gestação, seja anterior ou posterior à 22° semana, é determinado por instituições internacionais, a Organização Mundial de Saúde (OMS) e a Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (FIGO). José Ricardo conta que, segundo os parâmetros internacionais adotados pelo Brasil, abortos anteriores à 22° semana de gestação se dão por via medicamentosa, enquanto aqueles posteriores a esse período demandam a assistolia fetal (procedimento para parar o batimento cardiáco do feto fazendo uso de técnica de medicina fetal guiada por ultrassom) junto ao procedimento medicamentoso.
“Ninguém gostaria de que ele [interrupção após a 22° semana de gestação] acontecesse. A paciente não gostaria, o serviço de saúde não gostaria e o profissional de saúde não gostaria de realizar esse aborto”, resumiu o especialista.
José Ricardo acredita que o endurecimento legal sobre o assunto não garante o fim da realização de abortos, só um aumento no caso de interrupções ilegais, que contam com procedimentos variados, clínicas clandestinas e em situações de desespero. “Proibir o aborto não diminui o número de procedimentos, só torna com que eles sejam inseguros, caros e com muitas mortes”, resumiu.