A holandesa Zahira Mous, de 39 anos, foi a primeira a expor publicamente os assédios que sofreu por parte de João de Deus, em 2018, utilizando as redes sociais como plataforma para sua denúncia.

Em entrevista à Folha de S. Paulo, ela comentou mais uma condenação do ex-médium. Zahira afirma que a condenação de João de Deus por centenas de anos é uma prova contundente da monstruosidade dos crimes atribuídos a ele. “Mas isso não ameniza as feridas das vítimas. Elas continuam por causa dos traumas e os assédios.”

Durante os dois primeiros anos após a denúncia, Zahira viu sua vida completamente envolvida pelo caso, dedicando grande parte de seu tempo a entrar em contato e conversar com outras vítimas do médium. “Isso consumiu a minha vida, mas também estava disposta a ajudar outras vítimas, com uma sensação da irmandade. Eu escolhi ajudar”, revela.

A sentença do caso dela foi proferida apenas na última segunda-feira, 10. “Agora, é como se tivesse um novo espaço na minha cabeça. Esse caso ocupava grande parte dela.”

Desta vez, João de Deus foi condenado em mais três casos de estupro de vulnerável e violação sexual mediante fraude, incluindo o caso de Zahira. As penas atribuídas a ele totalizam quase cem anos de prisão. Os crimes ocorreram entre 2010 e 2018 e afetaram oito vítimas. Além disso, o médium foi condenado a pagar indenizações por danos morais, que podem chegar a R$ 100 mil, às vítimas.

Total de processos

O médium enfrenta acusações de abuso sexual cometidos contra dezenas de mulheres durante suas sessões espirituais na cidade de Abadiânia, em Goiânia. Até o momento, suas penas já somam 370 anos de prisão. De acordo com o Tribunal de Justiça de Goiás, ainda há quatro processos pendentes de sentença no juízo de Abadiânia, e todos estão na fase das alegações finais.

No caso específico de Zahira, João de Deus recebeu uma sentença de 58 anos de prisão, pois seu caso foi julgado junto com o de outra vítima. Após lutar por tanto tempo por justiça, Zahira expressa uma mistura de sentimentos. Por um lado, sente alívio, mas, por outro, uma sensação de injustiça devido ao fato de João de Deus cumprir sua pena em prisão domiciliar e ter se casado com uma advogada no ano passado.

“O caso se encerrou, me sinto bem aliviada, porque esse espaço posso dar para outra coisa, mas ele está em casa. Ele está em sua mansão, vivendo na sua vida, como se nada tivesse acontecido, enquanto isso, nós estamos sofrendo muito”, lamenta.

Zahira diz que a espera pelo resultado do seu caso foi longa. Ela relembra que era encorajador ver outros casos sendo concluídos gradualmente, porém, ansiava por uma condenação específica para o seu caso. “Sentia que estava na prateleira. Esse período foi como uma sala de espera com muita angústia para mim.”

Zahira Mous | Foto: Arquivo pessoal

Dias atuais

Atualmente, Zahira se autodenomina uma “artivista”, uma combinação de artista com ativista, e acredita que é por meio de seu trabalho artístico que consegue chamar a atenção para questões como feminicídio e assédio.

Além de ser bailarina, escritora, coreógrafa, coach e produtora cultural, Zahira acredita que apenas falar sobre traumas sexuais não é o bastante. Por essa razão, ela vê a dança como uma maneira de libertar o corpo e integrar o trauma. “É uma forma de liberar o estresse e reencontrar (alguma) alegria”.

Mous tinha 30 anos de idade quando procurou a Casa Dom Inácio de Loyola em busca de espiritualidade e também para encontrar cura para um trauma sexual que vinha enfrentando desde os 19 anos. No entanto, sua vida tomou um rumo ainda mais difícil, pois ela relata ter sido estuprada pelo então médium. Mous levou quatro anos para finalmente denunciar o caso.

“Tentei colocar para debaixo do tapete, mas isso foi me consumindo. Estava em um estado de esgotamento”, contou, quando decidiu revelar o ocorrido nas redes sociais. Ela recorda que não tinha temor da morte, mas ressalta que assumiu muitos riscos. “É a única forma de passar por isso. Eu arrisquei meu casamento, minha vida, minha família e minha carreira”.

A artista enfatiza que João de Deus deveria ser enviado para a prisão, para que “possa sofrer” e responder pelos crimes que cometeu. “Ele ainda tem seguidores, ainda há pessoas que dizem que a verdade vai aparecer. A verdade já saiu e as pessoas dizem que estão rezando para a saúde dele. Isso é muito estranho para mim porque elas não querem ver. Não querem saber a verdade.”

Apesar da coragem de revelar o caso, ela reconhece que estava em uma posição privilegiada que lhe permitia, caso se sentisse ameaçada, fugir do Brasil. “Espero que outras mulheres encontrem uma forma de falar sobre abusos com líderes espirituais. A vergonha disso não deve ser da vítima, mas do perpetuador.”

Ela também afirma que denunciar não é uma obrigação para todas as pessoas. “É importante encontrar algo maior que você, como a fé, fé em si mesmo, em seu próprio eu superior. A cura está dentro de você.”

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